A percepção de violência está explodindo no Rio de Janeiro e o mais recente episódio foi a chacina que deixou três médicos mortos e um ferido em um quiosque de praia, na área nobre da Barra da Tijuca, nesta quinta-feira (5). A resposta do Ministro da Justiça, Flávio Dino, para combater facções criminosas no Estado, foi anunciar o investimento de R$ 247 milhões, diluídos em três anos. Esses recursos representam apenas 16% do que foi aplicado na última tentativa consistente do governo federal de combater a violência no Rio: a Intervenção Federal de 2018, que durou 10 meses.
No início de 2018, as facções criminosas do Rio diversificavam suas operações criminosas com grande ênfase no roubo de cargas, modalidade de crime que havia atingido o ápice de mais de 10 mil casos em 2017. As favelas eram usadas como fortalezas para a desova das cargas de caminhões roubados nas rodovias de acesso ao Estado. A polícia, sem efetivo suficiente e equipamentos, não ousava interferir.
No meio do Carnaval daquele ano, uma linha vermelha foi cruzada: câmeras de segurança registraram uma série de arrastões nas praias mais famosas da zona sul carioca e o então presidente da República, Michel Temer, decretou Intervenção Federal somente na área de segurança do Estado (o governador Luiz Fernando Pezão não foi afastado). Temer tentava também criar um fato positivo enquanto estudava a possibilidade de disputar a reeleição.
Situação muito semelhante está acontecendo agora no Rio. Os crimes de violência letal (homicídios, lesão seguida de morte e roubo seguido de morte) aumetaram 10% no primeiro semestre de 2023 em relação ao ano anterior. Foram 2.262 casos. Mas sensação de insegurança, que não se mede só pelas estatísticas criminais, virou fato político com a divulgação em setembro, na TV, de imagens aéreas mostrando criminosos tendo aulas sobre táticas de guerrilha em um clube no meio do complexo de favelas da Maré.
Dino, que disputa a indicação para uma vaga no Supremo, tentou criar um fato político anunciando o Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (ENFOC). Ele disse que a ideia era frear o crime organizado tanto no Rio quanto na Bahia.
Mas as ações destinadas pelo programa à segurança do Rio atualmente são um mero paliativo, se comparadas ao esforço da Intervenção Federal em 2018, que reverteu todos os índices de criminalidade e reestruturou as polícias do Rio.
A Intervenção Federal investiu em 10 meses um total de verbas de segurança de R$ 1,2 bilhão (R$ 1,5 bilhão em valores atuais). O ENFOC, que não é uma intervenção federal, prevê a disponibilizaçnao R$ 247 milhões em verbas federais para o Estado em três anos.
“O plano agora anunciado pelo Ministério da Justiça parece muito mais uma resposta às críticas crescentes à pasta pela ausência de um programa nacional de segurança pública do que uma ação que resulta de um efetivo planejamento", disse o especialista em segurança pública, e realizador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança, Fabrício Rebelo.
"Tanto assim que é um plano de Dino é absolutamente genérico, com termos abstratos já contidos na própria lei do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), tendo como única ação efetiva o repasse de verbas. Trata-se de um plano emergencial, mas que parece ser focado em apresentar alguma ação, não em resolver qualquer crise efetiva”, disse o analista.
De forma similar ao que aconteceu há cinco anos, a violência voltou às praias da área nobre do Rio nesta semana. Dessa vez com os assassinatos dos médicos Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro Almeida e Diego Ralf de Souza Bomfim em um quiosque na Avenida Lúcio Costa, a mais badalada da Barra da Tijuca. Como fez Temer, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva prepara o envio emergencial de uma força de segurança, baseada na Força Nacional e na Polícia Rodoviária. Mas dessa vez a ação aparenta ser muito mais limitada.
Rio terá só 190 agentes a mais por dia para patrulhar avenidas
As verbas anunciadas por Dino fazem parte do Plano de Ação na Segurança (PAS). Os R$ 470 milhões em investimentos correspondem a cerca de 1,5% do orçamento previsto pelo governo do Rio para a segurança só neste ano, segundo a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023.
A ação de Dino também prevê o envio de 300 homens da Força Nacional, 50 viaturas, 270 agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), um veículo de resgate e um helicóptero para o Rio de Janeiro.
Esses agentes farão patrulhamento ostensivo principalmente no entorno do Complexo da Maré, em rodovias que dão acesso ao Rio. A ideia é tentar impedir a entrada de armas e drogas nas favelas. Mas os agentes não entrararão no Complexo. Na prática, esse tamanho de efetivo significa que haverá só 190 agentes a mais por dia nas ruas. Isso porque os policiais não podem ficar 24 horas por dia no terreno e tendem a fazer turnos de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso.
Em 2018, a Intervenção Federal aconteceu em paralelo com a Operação Furacão, de Garantia da Lei e da Ordem, que disponibilizava milhares de combatentes das Forças Armadas simultaneamente. Operações em favelas eram realizadas com efetivos de mais de 2 mil militares agindo simultaneamente.
"O que o Programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas de Dino estabelece é um mero auxílio às forças de segurança locais, com muito menos recursos e sem um plano específico, mas apenas a ideia de, sob o manto de um programa, cumprir o que já está previsto o Sistema Único de Segurança Pública", disse Fabrício Rebelo.
Intervenção Federal criou legado de planejamento e restruturação ds polícias
Por ser uma intervenção federal, a operação de que vigorou no Rio entre março e dezembro de 2018 tinha muito mais agentes e recursos financeiros. Mas diferente do plano de Dino e da intervenção federal de Ricardo Capelli no Distrito Federal neste ano, a operação de 2018 tinha um plano consistente.
Em vez de simplesmente mandar dinheiro e agentes para o Estado, a Intervenção Federal no Rio tinha um plano bem definido. A equipe comandada pelo interventor, general Walter Souza Braga Netto, com o auxílio do então secretário de segurança, general Richard Nunes, fez uma reestruturação abrangente nas polícias do Rio.
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que ficaram desfuncionais foram desativadas e seus efetivos deslocados para batalhões de policiamento ostensivo da Polícia Militar. Operações militares de grande envergadura foram feitas em favelas para prender criminosos, apreender armas e derrubar barricadas. O objetivo era desestabilizar as facções criminosas, mas não havia a pretenção de se acabar com elas. Essas foram ações pontuais e não ocupações prolongadas como ocorreu nos anos de 2010.
Funcionários da Secretaria da Segurança do Rio foram treinados para fazer licitações corretamente. Antes disso, o Estado não conseguia gastar todo seu orçamento anual pela incapacidade de realizar licitações.
Foram comprados 1.510 carros de polícia, 710 motos, 35 mil armas e 17.655 coletes à prova de balas, além de equipamentos policiais, pequenas embarcações e dois helicópteros. As aquisições ocorreram em paralelo à elaboração de planos de logística e manuntenção para evitar o sucateamento, como ocorria anteriormente.
Também foram criados procedimentos para melhorar a integração entre órgãos de inteligência e otimizar as estruturas de comando e controle das polícias. Policiais foram treinados por Forças Especiais do Exército e agentes receberam instrução de especialistas da inteligência das Forças Armadas. Além disso, mais de 150 funcionários da Secretaria de Segurança foram treinados em gestão e administração.
Comparando as ações de 2018 com as deste ano, o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) Paulo Storani, autor do livro “Vá e vença: Decifrando a tropa de elite” (Ed. Best Seller), explica que na ocasião da Intervenção Federal de 2018 foi feito um planejamento baseado nas reais necessidades do Rio de Janeiro. “Foi feito um plano. Não foi um investimento a fundo perdido no estilo 'toma aí e vocês fazem o que quiserem'”, afirmou.
“Na época da intervenção houve muita organização. Tiveram o cuidado de não fazer nenhuma compra por emergência para depois não sofrer qualquer tipo de crítica. O general Braga Neto foi muito criticado por evitar compras de emergência. E a situação era de emergência. Eu teria feito a mesma coisa, porque quando você faz uma compra por emergência, os valores são sempre superiores aos valores conseguidos através de um processo licitatório, que sempre busca o menor preço”, disse.
Intervenção reverteu alta de índices criminais no Rio, mas mudanças foram descartadas
Após dez meses de intervenção, a tendência de alta nos índices criminais no Rio foi revertida. Os roubos de carga caíram 13% entre 2017 e 2018 (9.182). Os homicídios foram reduzidos em 7%, para 4.950 casos e os latrocínios (roubos seguidos de morte) caíram 36% (para 174 casos).
“Fui nomeado o comandante desta inédita e urgente missão na história de nosso país. Mesmo diante de muitos obstáculos logramos êxito. Isto pode ser comprovado por resultados tangíveis e intangíveis, tais como a redução significativa dos principais índices de criminalidade, além da valorização, o fortalecimento e a integração dos órgãos de Segurança Pública, que passaram a trabalhar com sinergia em prol de um Rio mais seguro", disse Braga Netto à Gazeta do Povo.
Braga Netto foi ministro do ex-presidente Jair Bolsonaro e concorreu à vice-presidência em sua chapa no ano passado. Ele é cotado para uma eventual candidatura à prefeitura do Rio.
"Estou consternado com os crimes brutais que ocorreram na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, na madrugada de quinta-feira. Expresso minhas condolências aos familiares e amigos das vítimas neste momento de dor e tristeza", escreveu o ex-interventor em uma rede social.
A Intervenção Federal no Rio deixou uma série de planos como, por exemplo, uma sugestão para a Assembleia Estadual votar uma lei reestruturando as carreiras da Polícia Militar. Autoridades policiais suspeitas de ligação com facções criminosas foram afastadas e políticos que impediam a realização de operações policiais foram indiciados.
Mas o legado não durou muito. Os deputados estaduais ignoraram as sugestões dos interventores e Wilson Witzel, o governador eleito em 2019, não só jogou os planos no lixo como extinguiu a Secretaria de Segurança PúblicaO órgão era a base de todas as mudanças administrativas feitas pela Intervenção Federal. Em pouco tempo, políticos locais voltaram a exercer influência em operações policiais e departamentos fundamentais das polícias foram loteados. Witzel sofreu impeachment por corrupção em 2021.
Em 2023, o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) finalizou uma auditoria na Intervenção Federal de 2018. Foram identificadas falhas na não formalização de registros, na subutilização do banco de perfis genéticos para a resolução de crimes e na operacionalização do sistema de inteligência.
O órgão ainda criticou o legado da intervenção, mas não deixou claro se as supostas falhas teriam acontecido em 2018 ou na administração de Witzel, já que o Gabinete de Intervenção Federal perdurou por mais alguns anos para receber compras feitas em licitações.
"Qual o indicador de desempenho dos tribunais de contas para avaliar se a intervenção foi favorável ou desfavorável? Se for morte violenta, houve uma redução. Se houve uma diminuição nos crimes, é óbvio que houve uma alteração provocada pela intervenção federal", questionou Storani.
Segundo o ex-capitão do Bope, ao invés de anunciar um plano emergencial como o de Dino, o Governo Federal deveria tentar criar um plano nacional de integração de dados, de informações, de sistema de inteligência.
"Esse plano deveria criar um encadeamento em todo o território nacional. Ele deveria pensar não só na estrutura de equipamento, mas também na de pessoal. O sistema deveria coletar dados e deixá-los em um banco de dados para que o tomador de decisão pudesse acessá-lo e utilizá-lo”, disse o ex-policial.
Mas por ora o ministro Dino prefere optar por ações paliativas e culpar por todos os problemas de segurança do país a facilitação do comércio de armas para cidadãos de bem implementada durante o governo de Jair Bolsonaro.
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