A invasão das sedes do Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF), no último domingo (8) deverão dar novo impulso, no âmbito do Judiciário, à defesa de uma teoria conhecida como “democracia militante”, também chamada de “democracia defensiva” por alguns autores.
Trata-se de uma ideia desenvolvida em 1937 pelo jurista alemão de origem judia Karl Loewenstein (1891-1973). Ele propunha que a democracia tinha de ter mecanismos para se proteger de atores que poderiam usar de suas liberdades para destruí-la.
Era uma crítica à Constituição da República de Weimar, que emergiu na Alemanha 1919, após a Primeira Guerra, e adotava uma linha de neutralidade em relação às várias ideologias em disputa na época, o que favoreceu a ascensão do nazismo e seu sufocamento em 1933. Ficou célebre a provocativa frase de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista, de que “sempre será uma das melhores piadas da democracia o fato de que ela dá aos seus inimigos mortais os meios para destruir a si própria”.
Desde então, várias democracias na Europa têm adotado a teoria para limitar a formação de partidos extremistas e, no caso da Alemanha, para proibir a negação do holocausto.
No Brasil, o tema vem ganhando força nos últimos anos em razão de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), concentradas no ministro Alexandre de Moraes, que têm restringido diversos direitos fundamentais – como a liberdade de expressão e, agora também a liberdade de reunião para manifestações – em nome da "proteção" do regime democrático.
Embora nunca tenha usado o termo ou feito referência explícita à teoria, Moraes costuma fundamentar essas decisões com essa premissa. “A Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias a ordem constitucional e ao Estado Democrático, nem tampouco a realização de manifestações nas redes sociais visando o rompimento do Estado de Direito”, escreveu, por exemplo, em fevereiro de 2021, na ordem de prisão do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que havia elogiado a cassação de ministros do STF pelo AI-5 em 1964.
Moraes argumentava que a liberdade de expressão não poderia servir à destruição das instituições republicanas, notadamente o STF, que seria o garantidor, em última análise, da democracia, e por consequência, da própria liberdade de expressão.
Nesta semana, por ocasião dos atos de vandalismo nos edifícios-sede dos Três Poderes, o ministro passou a impor duras restrições ao direito de reunião, pelo mesmo motivo. Por entender que a manifestação representou tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, proibiu ocupação de rodovias, espaços e prédios públicos, bem como determinou a prisão de quem tentasse realizar manifestações nesses locais. Dias antes, ministro já havia mandado prender manifestantes acampados em frente a quartéis do Exército que pediam intervenção das Forças Armadas. Nesta decisão, fez referência a personagens históricos que combateram o nazismo.
“A democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrada na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois, como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”, escreveu o ministro.
Mas antes mesmo dessa demonstração evidente de “democracia militante”, Moraes já vinha recebendo elogios de setores da intelectualidade e da comunidade acadêmica no campo do direito, pela atuação combativa contra militantes, apoiadores e políticos próximos do ex-presidente Jair Bolsonaro, a partir da suposição de que ele era uma ameaça à democracia.
Em novembro, num artigo publicado no site jurídico Conjur, o criminalista Sidney Duran Gonçalez, mestre e doutorando em Direito Penal pela Universidad de Salamanca, escreveu que as manifestações dos quartéis, por reivindicarem uma intervenção das Forças Armadas contra o Poder Judiciário, especialmente sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que organizou as eleições, a partir de interpretação equivocada da Constituição, mereceria uma reprimenda com base na ideia de autoproteção da democracia.
“As manifestações que temos visto ultimamente, são claramente uma projeção daquilo que tem pregado já há muito, o seu maior incentivador, o presidente da República, que eleito pelo voto popular de maneira democrática, volta-se contra o sistema e incentiva desconfianças acerca das eleições, colocando em descrédito todo o sistema”, escreveu.
No mesmo mês, o cientista político e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro publicou artigo defendendo a relevância das reflexões de Loewenstein para o Brasil. Argumentava que as instituições não foram capazes de conter uma “escalada de extrema direita com conteúdo neofascista, liderada pelo presidente da República”, e que uma “desconstrução do estado de direito contou com a cumplicidade das Forças Armadas” e “inércia” da Procuradoria-Geral da República e do Congresso pela recusa em responsabilizar Bolsonaro por supostos ataques à ordem constitucional. Passada a eleição e a derrota do presidente, Pinheiro sugeria a possibilidade de continuidade de medidas de defesa da democracia ante os atos contra a eleição de Lula em frente aos quartéis.
Tese é controversa por poder facilitar abuso de autoridade
Antes da invasão aos poderes, havia mais críticas ou ressalvas à aplicação, no Brasil, da teoria da democracia militante. “A doutrina é controvertida, pois governos mal-intencionados ou tribunais cooptados podem abusar de sua autoridade para impor limites àqueles que os criticam e desafiam. A questão sobre quem guarda os guardiões sempre reaparece quando se atribui a alguém o poder de censurar ou restringir direitos”, escreveu em março de 2020, na Folha de S.Paulo, o professor da faculdade de direito da FGV em São Paulo Oscar Vilhena Vieira. Ainda assim, ressalvava que convocações de protestos contra o Congresso e o STF deveriam levar cidadãos e instituições a se empenharem na tarefa de impor limites para conter “tudo aquilo que conspire contra a democracia”.
Em maio de 2021, o sociólogo e doutor em geografia humana pela USP Demétrio Magnoli se manifestou de forma mais dura contra a ideia de democracia militante ao comentar o texto do projeto de lei que viria a substituir a antiga Lei de Segurança Nacional, norma também inspirada na teoria de Loewenstein. Criticava, principalmente, trechos da proposta que permitiam criminalizar a defesa de ideias autoritárias.
“[Daniel] Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação”, escreveu no artigo, também publicado pela Folha. “Já temos leis suficientes sobre as fronteiras da liberdade de palavra. A Lei do Estado Democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições. Nossa democracia não milita”, concluía.
Uma crítica ainda mais contundente da democracia militante foi publicada em novembro de 2022 pelo professor do Insper Fernando Schüler, cientista político e doutor em Filosofia. Em artigo na revista Veja, ele lembrou que, em nome da teoria, o STF bloqueou contas do banco Rodobens, pelo fato de ter, no passado, concedido empréstimo para a aquisição de caminhões que foram levados a Brasília para engrossar o ato em frente ao QG do Exército contra Lula.
Também citava como exemplos exagerados da aplicação da teoria, no Brasil, a suspensão das contas, nas redes sociais, do economista Marcos Cintra, que expressou dúvidas sobre a apuração das urnas eletrônicas; e também do empresário Luciano Hang, por causa de conversas privadas no WhatsApp. Seu argumento era de que uma teoria usada contra o nazismo não poderia ser aplicada de modo vulgar em democracias em funcionamento.
“Quem teria a prerrogativa de decidir quem é o inimigo existencial e a quem deveríamos entregar o poder de agir para além das leis e da Constituição, uma vez definida a situação “excepcionalíssima”? E mais: que instrumentos a democracia militante nos daria para nos proteger dela mesma? Se um ministro decide censurar e banir um deputado, mesmo que a Constituição diga claramente que ele não pode fazer isso, o que fazer? E se um filme censurado, quando as leis dizem que isso não pode ser feito?”, questionava.
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