Apesar da grande repercussão, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de investigar o dono da rede social X (antigo Twitter), Elon Musk, tende a se resumir a mais um artifício para constranger e tentar silenciar um crítico de suas decisões. Do ponto de vista prático, a fragilidade das imputações feitas ao empresário e as dificuldades para cumprir diligências típicas de um inquérito contra um cidadão americano tendem a tornar a investigação inócua, com chances remotas de denúncia e condenação pelo Supremo.
Ademais, o bloqueio da rede social no território brasileiro, apesar de tecnicamente possível, por meio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), é uma medida extrema e vista hoje, dentro do próprio STF, como uma hipótese longe de se concretizar, uma vez que há alternativas menos graves para sancionar o X caso descumpra determinações de Moraes. É o caso da multa já comunicada por Moraes, de R$ 100 mil por dia, para cada usuário vetado por determinação do ministro que eventualmente tenha o perfil reativado na plataforma.
Um eventual bloqueio geral da rede, mesmo possível, seria desproporcional – afetaria milhões de brasileiros que usam a plataforma para finalidades sem qualquer ligação com o caso, tais como troca de ideias e informações e a divulgação de vídeos e entretenimento, fora o impacto em empresas que pagam para anunciar produtos e serviços, como também faz o governo para promover suas ações ou comunicar campanhas de esclarecimento à sociedade.
A Gazeta do Povo apurou que Moraes deve enviar o caso para avaliação da Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem caberia analisar provas ao final de um inquérito para eventualmente formular uma denúncia, se entender que houve crime.
A coleta de provas num caso assim, porém, seria bastante lenta e difícil, pois dependeria de cooperação com autoridades dos Estados Unidos, que também verificariam a fundo se houve crimes no caso – detalhes desse procedimento estão expostos ao longo desta reportagem.
O que motivou a investigação de Moraes contra Musk
Na noite de domingo (7), Moraes decidiu incluir Musk no inquérito das “milícias digitais”, aberto em 2021 para investigar uma suposta organização criminosa, formada por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), para difamar seus opositores, incluindo ministros do STF – em síntese, uma extensão do inquérito das “fake news”, aberto em 2019. Foi uma resposta a postagens de Musk que questionaram o ministro por atos de “censura” impostos a brasileiros na plataforma e ao anúncio de que ele, como dono, iria desbloquear perfis retirados do ar por ordem do ministro e divulgar decisões sigilosas que impuseram restrições à plataforma.
Na semana passada, vieram à tona e-mails internos de advogados da filial da empresa no Brasil relatando pressão do STF, do Congresso e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sob o comando de Moraes, para obter dados pessoais de usuários que criticavam os tribunais e o processo eleitoral – o material, chamado Twitter Files, foi divulgado no X e publicado na Gazeta do Povo.
Moraes imputou a Musk os delitos de incitação ao crime (cuja pena é de detenção, de três a seis meses, ou multa); desobediência a decisão judicial (com pena de três meses a dois anos de detenção, ou multa); e obstrução de Justiça, por suposto embaraço a investigação de infração penal que envolva organização criminosa (punível com 3 a 8 anos de reclusão, mais multa).
Segundo o ministro, de forma dolosa (intencional), o empresário estaria permitindo uma “permanente e habitual instrumentalização criminosa” da plataforma X para atividades “atentatórias ao regime democrático brasileiro”.
Para Moraes, a plataforma não teria atuado para coibir ameaças ao Supremo e outras instituições, incluindo chamamentos para a manifestação de 8 de janeiro de 2023, que resultou na invasão e depredação das sedes do STF, do Congresso e do Palácio do Planalto – ato que a Corte, desde sempre, recriminou como tentativa de golpe.
O ministro escreveu que as críticas e questionamentos de Musk a suas decisões seriam parte de uma “campanha de desinformação” sobre a atuação do STF e do TSE, “instigando a desobediência e obstrução à Justiça”, sobretudo pela declaração de que ele iria reativar no X “perfis criminosos e que espalham notícias fraudulentas” – casos notórios são de Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre; do empresário Paulo Figueiredo Filho; e da juíza Ludmilla Lins Grilo – todos hoje nos Estados Unidos e continuam a criticar a atuação de Moraes.
“A conduta do ‘X’ configura, em tese, não só abuso de poder econômico, por tentar impactar de maneira ILEGAL a opinião pública mas também flagrante induzimento e instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas no INQ 4.874, com agravamento dos riscos à segurança dos membros do Supremo Tribunal Federal – como facilmente é constatado pelas diversas mensagens com conteúdo de ódio realizadas em apoio àquelas postadas por Elon Musk – e do próprio Estado Democrático de Direito”, escreveu o ministro.
Acusações frágeis contra Elon Musk
Vários juristas criticaram a decisão e consideraram as imputações pouco sólidas, principalmente pelo fato de que, apesar do anúncio, nenhum perfil censurado por Moraes foi reativado para usuários brasileiros. Nem nessa situação, entendem alguns, haveria crime. Além disso, nenhuma decisão sigilosa do ministro foi divulgada pela plataforma, como Musk afirmou que ocorreria.
André Marsiglia, constitucionalista especializado em liberdade de expressão, questionou a ligação que Moraes faz entre as declarações de Musk e a suposta prática de crimes por terceiros. Para haver incitação ao crime, argumenta, é necessário vincular a fala de alguém à ação criminosa de outrem. “A fala de Musk precisaria explicitamente incentivar a agressão de terceiros. Não vi nada nesse teor. Não me pareceu haver conexão possível entre fala dele e eventual agressão de terceiros”, postou na própria rede X.
Outra fragilidade da decisão é a suposição de que Musk estaria propositalmente manipulando a rede social para mobilizar a opinião pública contra o STF. “Dizer que suas manifestações foram criminosas parece ser controverso, dizer que ele usou a estrutura de sua rede para impulsionar sua crítica é um passo grande. Dizer, por fim, que possuía intenção dolosa de desestabilizar a opinião pública, atentando contra a soberania do país é um passo e tanto, que não pode ser suposto, exige indícios robustos que não encontrei na decisão”, escreveu Marsiglia.
À reportagem, ele explicou que o crime de desobediência não se configuraria caso a rede reativasse perfis. Isso porque o próprio ministro estipulou multa em caso de descumprimento da decisão de bloqueio. “Sempre que há sanções administrativas, não há crime. É comum que em ordens de censura, um veículo avalie arcar com multas enquanto recorre para derrubar uma decisão que considere injusta. Não há ilícito algum nisso”, argumenta.
Para ele, é pouco provável que a investigação resulte em denúncia e condenação. “É mais um recado à sociedade e a Elon Musk do que qualquer outra medida efetiva”, disse à reportagem.
Doutora em direito comercial pela USP, Érica Gorga criticou, também na rede X, as inferências de Moraes sobre as manifestações de Musk. “Fazer perguntas, defender impeachment, pedir renúncia de cargo são formas de pleno exercício da liberdade de expressão constitucionalmente assegurada que jamais poderiam se configurar em ‘instrumentalização criminosa das redes’ em uma democracia”, postou. “A frase utilizada é somente retórica jurídica vazia que não explicita qual o crime que a pessoa teria supostamente cometido, como requer a lei processual/penal brasileira que exige a tipificação clara do delito ou crime.”
Professora de direito constitucional, Vera Chemim entende que Musk apenas criticou as crescentes restrições à liberdade de expressão previstas no artigo 5º da Constituição. “Essas críticas não são passíveis de sanções de qualquer natureza. O que está ocorrendo é uma simulação para fazer algo parecer o que não é, e, por essa razão, não pode ser efetivamente comprovado”, disse. Ela destaca que Musk não é brasileiro e suas críticas são comuns nos Estados Unidos, protegidas pela liberdade de expressão. “Sejam elas ácidas ou duras, o que prevalece é a liberdade de expressão em todas as suas formas.”
Especializado em direito digital, o advogado Hélio Moraes considera exagerado o procedimento adotado por Moraes, principalmente ao alegar desobediência e obstrução da Justiça. “O juiz apresentou indícios de intenção criminosa ou ameaças, mas sem uma sustentação técnica adequada. Falar em risco para a soberania foi também um exagero. No final das contas, tratou-se de uma disputa verbal transformada em questão institucional”, observou.
“As manifestações de Musk nas redes sociais parecem ser uma alternativa que as empresas usam para questionar decisões judiciais que contestam. Muitas acreditam que influenciar a opinião pública é uma forma de agir, criando constrangimento para autoridades. Mas chamar isso de desobediência é exagerado”, acrescentou Hélio Moraes, lembrando que a única forma de contestar as decisões de Moraes contra o X seria recorrer ao próprio STF, o que limita a defesa.
Fora isso, a investigação tem problemas já conhecidos nos inquéritos de Moraes: falta de competência para apurar a conduta de alguém sem foro privilegiado na Corte; conexão pouco clara com as chamadas “milícias digitais” (termo aliás, cunhado pelo ministro e também mal conceituado para fins penais); além da iniciativa própria em abrir a investigação, sem qualquer provocação da Polícia Federal e da PGR, órgãos a quem caberia apurar crimes.
“Parece indiscutível que ele violou a inércia da jurisdição, as regras de competência originária, o sistema acusatório e a garantia de imparcialidade, mas, ainda fiquei com uma dúvida sincera: qual foi o post que o Elon Musk publicou que caracteriza o crime de incitação ao crime? E de obstrução da Justiça? Na decisão do Alexandre de Moraes ele não indica qual, só faz uma afirmação genérica”, postou no X o procurador de Justiça do Paraná e professor de processo penal Rodrigo Chemim.
Prisão, quebras de sigilo e interrogatórios dependeriam dos EUA
Mas, se apesar de tudo isso, a PF e a PGR decidirem seguir adiante com uma investigação, o cumprimento de diligências seria complicado. Para efetuar uma prisão preventiva, uma busca e apreensão, um interrogatório, uma quebra de sigilos, o STF teria de pedir uma cooperação internacional aos Estados Unidos, enviando – por intermédio do Ministério da Justiça – indícios robustos do cometimento dos crimes pelo empresário.
Caberia ao Departamento de Justiça analisar as imputações. O órgão verificaria que os crimes apontados contra Musk não estão na lista de 33 delitos passíveis de extradição, conforme um tratado assinado entre Brasil e EUA em 1962. Só com isso, já poderia descartar a cooperação.
Se o Brasil ainda insistisse na coleta de provas contra Musk, o Departamento de Justiça ainda analisaria se há justa causa para a investigação, isto é, a presença de fortes elementos que ligariam Musk a um crime grave, também punível nos EUA. Um problema para o STF é que a Constituição e a Justiça americana protegem de forma muito mais efetiva o discurso.
Exemplo recente foi a negativa do país em extraditar Allan dos Santos, dono do Terça Livre. Para os americanos, ele estaria sendo perseguido por Moraes apenas em razão de palavras, sem demonstração de que como poderia efetivamente agir para ameaçar a existência ou afetar minimamente o funcionamento das instituições. Provavelmente, segundo fontes consultadas pela reportagem no STF e na PGR, o mesmo poderia ser alegado pelos EUA em relação a Musk.
Na remotíssima hipótese de o Departamento de Justiça admitir um pedido de cooperação, ainda caberia ao procurador-geral dos EUA – atualmente o jurista e advogado Merrick Garland – enviar o caso para um juiz federal de primeira instância, que também faria uma análise do caso para autorizar qualquer medida contra Musk. Todo o procedimento pode levar meses ou até anos, a depender da complexidade da investigação.
Em março, a PGR enfrentou um caso semelhante, mas dentro do próprio Brasil. No início do ano passado, Moraes abriu inquérito contra executivos do Google e do Telegram por terem defendido, nas suas plataformas, a rejeição do Projeto de Lei 2630/2021, também conhecido como PL da Censura. Assim como Musk, foram acusados de atacar as instituições, por se posicionarem contra a proposta. A PGR descartou a ocorrência de qualquer crime.
“A divulgação de ideias contrárias ao disposto na proposição legislativa não é suficiente para a configuração de crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP). O tipo penal aventado pela representante pressupõe a intenção de abolição do Estado Democrático de Direito com o emprego de violência ou grave ameaça, sendo necessário, ainda, que se impeça ou restrinja o exercício dos poderes constitucionais. Os elementos trazidos pela investigação não permitem concluir pela incidência do delito em questão, não havendo comprovação do emprego de violência ou grave ameaça nas condutas”, escreveu o subprocurador Hindenburgo Chateaubriand Filho.
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