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Inteligência

Investigação do STF na Abin abre caminho para controle judicial sobre ações de inteligência

Sede da Abin em Brasília (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

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A investigação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes sobre a utilização, dentro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), do software israelense FirstMile – que fornece a localização aproximada de celulares a partir do número da linha – tem preocupado oficiais de inteligência. Para eles, há riscos não só de criminalização da ferramenta ou controle judicial de seu uso mas também do Judiciário tentar determinar quais outras técnicas de coleta de dados podem ser usadas e quem pode ser monitorado pelo serviço de inteligência.

Nas decisões do caso, Moraes reprova o uso do FirstMile “sem a necessária e imprescindível autorização judicial”, numa indicação de que o monitoramento de dispositivos móveis deveria passar pelo controle prévio dos juízes. Trata-se de um entendimento não previsto até o momento nas atividades de inteligência. No caso atual, o temor é de que os dados sejam expostos ou vazem, especialmente a partir da pressão do Congresso sobre o Supremo Tribunal Federal para obter a lista dos alvos.

Acredita-se que haja, por exemplo, o monitoramento de agentes de inteligência estrangeiros no país e a divulgação desses dados pode causar crises diplomáticas. Recentemente foi comprovado que espiões russos operavam no Brasil para acobertar ações contra órgãos internacionais.

Fora isso, há ainda o receio de nova politização da agência, em razão da disputa por seu comando, desencadeada com a investigação. No inquérito, a Polícia Federal diz que uma organização criminosa se instalou no comando da Abin, entre 2019 e 2022, quando foi dirigida pelo deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), para atender a interesses políticos do ex-presidente Jair Bolsonaro, monitorando opositores com o FirstMile e colhendo informações sigilosas para a defesa de seus filhos.

A disputa pelo controle da Abin foi deflagrada a partir da acusação da PF de que a cúpula da agência estaria em conluio com dirigentes da antiga gestão para protegê-los. Dentro da Abin, a acusação de que a direção estaria atrapalhando as investigações foi vista como uma tentativa da Polícia Federal de trocar o comando da agência.

Na última terça (30), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dispensou o delegado Alessandro Moretti do cargo de diretor-adjunto, segundo na hierarquia, e trocou titulares de sete departamentos centrais (Contrainteligência, Operações, Administração e Logística, Escola de Inteligência, Inteligência Interna, Inteligência Externa e Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Segurança das Comunicações). Mas manteve na direção-geral o delegado aposentado PF Luiz Fernando Corrêa, homem de sua confiança.

“A gente nunca está seguro. O companheiro que eu indiquei para ser o diretor-geral da Abin foi meu diretor-geral da PF entre 2007 e 2010. É uma pessoa em que tenho muita confiança e por isso chamei, já que eu não conhecia ninguém da Abin”, disse o presidente no dia da troca.

Mesmo com a reformulação quase total, havia pressão, por parte de parlamentares e também de ministros do STF, pela saída de Corrêa, sob o pretexto de que ele também poderia estar protegendo dirigentes da gestão anterior acusados pela PF de monitorar opositores de Bolsonaro, incluindo membros da Corte e políticos de vários partidos.

Moretti entrou na linha de tiro porque o delegado da PF Daniel Nascimento, que toca as investigações sobre a Abin, recriminou sua conduta no relatório sobre o caso enviado ao ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no STF. Narrou que, em março do ano passado, quando começaram as apurações, inicialmente focadas no uso do FirstMile, Moretti teria dito a agentes investigados que o caso tinha “fundo político e iria passar”. A declaração teria sido feita na presença de Corrêa, que ainda não havia assumido a direção-geral, e do oficial da Abin Paulo Maurício Fortunato, investigado por operar o FirstMile. Nesta reunião, teria sido comunicada uma “estratégia” da Direção Geral, então ocupada por Moretti, para “tentar acalmar a turma”.

Nascimento ainda relata que, numa sessão da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, no Congresso, um integrante da Direção Geral teria dito aos parlamentares que a investigação estaria relacionada a “politização e disputas mesquinhas de poder com a inteligência de Estado” – possivelmente, a declaração foi de Corrêa, que esteve na comissão para falar do assunto em outubro, logo após a deflagração da primeira operação do caso, batizada de Última Milha, com buscas na Abin.

Demitido por Lula da Abin, o delegado Alessandro Moretti diz que colaborou para as investigações da PF (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A acusação de que a Abin estaria prejudicando as investigações revelou um racha com a Polícia Federal, que alimentou a pressão por trocas. Em nota divulgada nesta quarta (31), após a demissão, Moretti se defendeu dizendo que boa parte das provas coletadas pela PF partiram de uma apuração interna da Abin. “Todo o material probatório coletado e produzido pela Abin foi compartilhado com a Polícia Federal, que também teve atendidas todas suas solicitações à Agência. Por esta razão, grande parte do material que instrui o inquérito da PF é fruto da apuração conduzida com total independência na Abin.”

De fato, a Abin conduziu uma sindicância durante o ano passado e, conforme mostrou no domingo (28) uma reportagem da Folha de S.Paulo, colaborou com a PF em ao menos seis ocasiões, fornecendo a lista de quem foi monitorado pelo FirstMile, por quais motivos, e também a lista de servidores que operavam o sistema, tudo compartilhado com o STF.

Em outubro, numa sessão da CCAI no Congresso, Luiz Fernando Corrêa defendeu a apuração interna da Abin. “Imediatamente foi instaurada uma sindicância com todo o suporte necessário para a corregedoria, que tem autonomia e mandato, e assim procedeu e vem procedendo em total parceria com a Polícia Federal e informando o Supremo”, afirmou Corrêa.

Homem de confiança de Lula, Luiz Fernando Corrêa ainda está com o cargo na Abin sob disputa (Foto: Lula Marques/ Agência Brasil)

Disputa externa pelo comando da Abin preocupa agentes

Para oficiais de inteligência, a disputa pelo comando da Abin incomoda. Há tempos, servidores de carreira defendem que a direção-geral fique com quadros da própria agência, e não nas mãos de delegados da PF ou sob a tutela de militares, como esteve desde sua criação em 1999. A agência foi subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) durante a maior parte deste período – as exceções ocorreram no governo Dilma Rousseff (2011-2016), quando estava vinculada à Secretaria de Governo, e a partir do ano passado, quando o órgão voltou a integrar a estrutura da Presidência da República, debaixo da Casa Civil.

A preocupação entre os oficiais é que a proximidade com o Palácio do Planalto contamine a atuação da agência, cuja finalidade é fornecer informações que representem riscos internos ou externos, para a melhor tomada de decisão por parte do Poder Público. O temor de que a produção de informações sirva mais para o interesse político do presidente, do que para a defesa do Estado, da ordem constitucional e da segurança do país, é uma constante.

Para piorar, houve pressão de ministros do STF por mudanças na agência, inclusive pela nomeação de um novo diretor-geral. Alguns ficaram receosos de terem sido monitorados no período em que a agência era comandada pelo deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), muito próximo de Bolsonaro.

Na atividade de inteligência, a avaliação entre oficiais é que a crise ocorre num momento delicado. O órgão acaba de ser reestruturado, inclusive com a publicação de uma Doutrina da Atividade de Inteligência. As ameaças, nos últimos anos, tornaram-se mais alarmantes: vão desde a presença de terroristas do Oriente Médio em solo brasileiro, passam pela atuação de agentes russos e chineses no Brasil (interessados em informações de setores estratégicos, como defesa e energia), chegando aos alertas sobre ataques cibernéticos. No plano interno, há uma miríade de preocupações, envolvendo, por exemplo, rotas do narcotráfico, disputas por terras, invasões no campo, proteção da Amazônia e riquezas minerais, entre outros temas.

A Abin tem agentes espalhados por órgãos públicos, universidades e embaixadas no exterior. Mas nas últimas décadas, à forma tradicional de colher informações – por meio de fontes inseridas em setores sensíveis – somou-se o uso de ferramentas tecnológicas. É o caso do FirstMile, adquirido em 2018, durante o governo do ex-presidente Michel Temer. Perícias realizadas pela PF indicam que, entre fevereiro de 2019 e abril de 2021, foram realizadas 60.734 consultas no software, que resultaram em 21.309 geolocalizações.

O número espantou o mundo político, que passou a cobrar do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, a obtenção, junto a Alexandre de Moraes, da lista dos alvos. Isso preocupou ainda mais os oficiais da Abin, porque a ferramenta era usada para atividades regulares de inteligência. Uma devassa em sua operação, se vazada, seria muito perigosa para a segurança nacional.

O jornalista Rodrigo Rangel, do portal Metrópoles, revelou, por exemplo, que havia entre os monitorados diplomatas russos suspeitos de darem suporte a Serguei Cherkasov, espião que passou anos no Brasil até ser descoberto e preso em 2022. Também havia vigilância sobre um investigado supostamente ligado ao grupo terrorista libanês Hezbollah, que circulou pelo Brasil durante longo tempo. Caso dados como esses sejam revelados, serviços secretos estrangeiros que colaboram com a Abin perderiam a confiança na inteligência brasileira, por não conseguir proteger informações altamente sensíveis.

Criminalização do monitoramento de inteligência é risco

Há preocupação também com o risco de criminalização do uso da tecnologia. Em várias decisões na investigação sobre a Abin, Alexandre de Moraes afirmou que o monitoramento com o FirstMile exigiria uma autorização judicial. Até o momento, dentro da Abin, o aval do Judiciário não era condição para operar a ferramenta. O deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), principal investigado pela suspeita de comandar o suposto monitoramento ilegal no período que dirigiu a Abin, disse em entrevistas recentes que foi ele quem iniciou, em 2019, um procedimento interno para verificar a legalidade da aquisição e do uso da tecnologia. Disse ter obtido aval da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU).

Em nota publicada no último dia 25, quando Ramagem foi alvo de busca e apreensão, a União dos Profissionais de Inteligência da Abin (Intelis), sindicato da categoria, ressaltou “a importância de a Agência ser gerida por seu próprio corpo funcional, e não por atores exógenos politicamente condicionados”, e defendeu o uso de ferramentas de inteligência como o FirstMile, também usadas em “democracias consolidadas”.

No dia 11, a Intelis também defendeu o software (também classificado como arma cibernética), lembrando de sua aprovação pela AGU. “É preciso que se separe a utilização correta da ferramenta, amparada em Planos de Operação aprovados, de eventual uso indevido, como pode ocorrer com qualquer sistema de qualquer órgão”, disse em nota, ressaltando que o FirstMile não invade celulares, nem dá a localização precisa. “Outros órgãos públicos o utilizam, e podem facilmente atestar sua forma de operação”, afirmou, acrescentando ser preciso “não demonizar ferramentas tecnológicas”.

“Os atores que constituem ameaças aos interesses nacionais e à segurança da sociedade e do Estado atuam, em muitos casos, com emprego de alta tecnologia. Vivemos em mundo digital, em constante evolução tecnológica. A inteligência de Estado não pode ser tão somente manual e analógica, apegada a técnicas e instrumentos que hoje são artigos de museu em outros serviços de inteligência”, disse ainda a Intelis no comunicado.

Judiciário no controle da Abin?

Dentro da agência, oficiais admitem uma normatização mais clara sobre os limites no uso da ferramenta, inclusive com controle do Judiciário, mas por juízes especializados. Formalmente, o único controle externo é feito pela Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, do Congresso, cuja fiscalização é considerada quase inexistente.

Não é o que ocorre atualmente. Na atual investigação sobre a Abin, Alexandre de Moraes assumiu a condução do caso dentro da competência, que ele mesmo se atribui, por tocar o inquérito das fake news, aberto em março de 2019, época em Alexandre Ramagem nem havia assumido a Abin e tampouco era alvo de qualquer investigação.

Nas decisões, ele repete a necessidade de autorização judicial para uso do FirstMile. O tema é controverso do ponto de vista jurídico. Isso porque a legislação e a jurisprudência dos tribunais exigem decisão judicial para a quebra de sigilo telefônico e interceptação em investigações criminais, mas ainda não há norma nem consenso entre os juízes quanto à geolocalização, menos ainda no caso de atividades de inteligência, que não se destinam a investigar e responsabilizar criminosos.

“O teor das comunicações é sigilosa, os dados não são necessariamente”, resume o procurador do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Marcio Sergio Christino. Ele diz que esses dados não são públicos, mas podem entrar numa categoria de meio-termo: restritos. “Mas isso deixa um campo vago. Poderia um ministério do Executivo pedir esses dados se o fizesse justificadamente? E um terceiro? O Ministério Público tem poder requisitório previsto na sua lei orgânica; seria preciso que o órgão público tivesse este poder de requisição também? A falta de regulamentação deixa um vácuo muito grande”, explica.

Ele entende que a Abin, nas atividades de inteligência, pode obter dados de geolocalização, mas ressalva que um uso arbitrário da tecnologia pode sim configurar um ato ilícito. “A própria Lei 9.883/99, que regulamente as atividades da Abin, prevê como condicionantes a observação da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, e a preservação das garantias individuais. O que significa que o uso arbitrário desta prerrogativa constitui ato ilícito, embora não crime de interceptação telefônica”, diz.

Um crime possível seria de abuso de autoridade que, se cometido por um grupo de pessoas, que poderiam ainda ser denunciadas por organização criminosa.

Em suas decisões, Moraes aponta o possível cometimento dos crimes de organização criminosa, interceptação ilegal e invasão de dispositivo informático, cujas penas, somadas, podem alcançar 16 anos de prisão. Para Christino, o enquadramento do FirstMile no crime de interceptação ilegal parte da premissa de que a autorização judicial prévia é necessária. “Há aqueles que entendem existir a necessidade de decisão judicial por aplicarem a Lei 9.296/96 por analogia. Isto porque os juízes são muito ciosos de suas prerrogativas”, comenta.

Mas além da disputa sobre como normatizar o uso FirstMile, a intervenção do STF abre caminho para um controle maior do Judiciário sobre as ações de inteligência.

Na recente decisão que autorizou mandados de busca relacionados ao alegado uso político da agência entre 2019 e 2022, o STF diz que teria ocorrido uma tentativa ilegal por parte de agentes de inteligência de tentar ligar o Supremo à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque uma organização não governamental supostamente ligada aos criminosos teria tentado fazer contato com membros do Supremo. Não há indícios, por ora, de que isso seja verdadeiro.

O temor é que a coleta legítima de dados de inteligência pela Abin em casos que envolvem a segurança de do Estado, como uma possível tentativa de infiltração do crime organizado no Judiciário, no Legislativo ou no Executivo, seja criminalizada ou cerceada por motivações políticas ou jurídicas.

O embate sobre até onde pode ir a independência da Abin está apenas no início. O assunto deve captar nas próximas semanas não só a atenção do Judiciário, mas também dos parlamentares e do governo federal.

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