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O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão de pesquisa do governo federal, divulgou um estudo sobre violência afirmando que a taxa de homicídios no país caiu 18,3% entre 2011 e 2021, sendo que o maior percentual de redução, 26,1%, foi registrado entre os anos de 2016 e 2021. O órgão governamental afirmou, sem apresentar provas, que a redução poderia ter sido ainda maior, caso as políticas favoráveis ao acesso da população a armas promovidas pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não tivessem ocorrido.
As conclusões estão no Atlas da Violência no Brasil, divulgado pelo Ipea, nesta terça-feira (5). De acordo com o coordenador do estudo, o economista Daniel Cerqueira, a conclusão foi obtida a partir da metodologia econométrica. Segundo ele, é um “método sacramentado na metodologia internacional de pesquisas sociais que a gente utilizou para, com base nos dados brasileiros até 2021, para chegar a essa conclusão”.
Cerqueira ainda destaca que o governo Bolsonaro foi "negacionista", pois teria ignorado uma “avassaladora literatura internacional e nacional científica mostrando que mais armas geram mais crimes”. A negação deste conhecimento científico teria redundado na maior proliferação de armas o que levou o Ipea a concluir que, não fosse o armamentismo, a taxa de homicídios teria caído ainda mais.
O pesquisador em segurança pública e responsável pelo Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), Fabrício Rebelo, alega que a metodologia é questionável. “Se insiste na matemática do absurdo, com o projecionismo de homicídios, renovando a “estatística dos não mortos”, para dizer que mais pessoas poderiam ser salvas”.
O jurista e pesquisador afirma que o estudo usa um artifício retórico pautado no discurso da infalibilidade, que busca convencer quem não tem conhecimento sobre o tema. Para tanto, cria-se uma retórica imune ao erro, que não se preocupa em apurar os reais efeitos de políticas de armas nos crimes, mas que tão somente quer reforçar que, haja o que houver, o desarmamento é positivo.
“Na lógica do estudo, se menos armas são vendidas e os homicídios caem, a restrição às primeiras salvou vidas; se mais armas são vendidas e os homicídios sobem, a culpa será diretamente daquelas; se a venda de armas cai e os homicídios aumentam, dizem que “poderia ser pior”; e quando se vende muito mais armas e os homicídios despencam, aí inventam que poderiam ter despencado mais”.
O estudo usou dados muito similares aos que já haviam sido divulgados no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo ele, em 2011, o Brasil registrou uma taxa de 27,4 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2021, essa taxa foi de 22,4 assassinatos por 100 mil habitantes.
Argumentos falaciosos são usados para justificar o desarmamento da população
Conforme as projeções do Ipea, caso o governo Bolsonaro não tivesse adotado políticas armamentistas, o número de homicídios entre 2019 e 2021 poderia ter uma redução de 6.379 casos em todo o país.
Conhecedor da realidade policial e dos homicídios no Brasil, o deputado federal Delegado Palumbo (MDB-SP) discorda das conclusões do instituto. “Eu não concordo com isso. É uma falácia. Se for assim a gente vai ter que proibir a faca, vai ter que proibir outros objetos”, afirma.
Em defesa dos CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores), que recentemente tiveram restrições impostas ao acesso às armas de fogo, Palumbo ainda argumenta que essas limitações também são falaciosas.
“Eles [defensores do desarmamento] não fazem uma pesquisa com armas que estão nas mãos de traficantes, na mão de quadrilheiros, nas mãos do crime organizado. Eles querem desarmar a população, subjugar a população e deixar essas pessoas, que só querem ter a liberdade de se defender, sem direito nenhum”.
Tese de homicídios ocultos distorce realidade
Outro ponto destacado pelos pesquisadores do Ipea é a ocorrência de homicídios ocultos, as chamadas Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI). De acordo com o estudo, entre 2011 e 2021 foram registradas 126.382 MVCIs.
“Neste cenário de elevada incerteza sobre intencionalidade dos óbitos, ignorar a ocorrência das MVCIs pode influenciar negativamente diagnósticos e formulações de políticas públicas e impedir intervenções em aspectos sensíveis”, aponta do documento.
Com base em técnicas de Inteligência Artificial (IA) de Machine Learning [Aprendizado de Máquina], Cerqueira e os pesquisadores do Atlas desenvolveram um algoritmo que analisa as características associadas às vítimas e aos aspectos situacionais de homicídios, acidentes e suicídios para buscar a reclassificação dos MVCIs.
Dessa forma, o Atlas estima que 39,1% dos casos classificados com MCVI, ou 49.413 mortes, seriam, na verdade, homicídios que poderiam ter sido identificados. O número equivale a uma média anual de 4.492 casos.
Segundo Rebelo, a estimativa não apenas não condiz com a realidade, como tenta alterá-la. “Nesta edição, o estudo transparece a aplicação de métodos cientificamente vergonhosos, inclusive numa absurda tentativa de mudar o passado e inflar os registros oficiais de homicídios, criando o rótulo de “homicídios ocultos”, para combater a realidade de que o governo anterior experimentou recordes simultâneos na venda de armas e na queda de homicídios”.
Discrepância de dados entre o Atlas e o Anuário de Segurança Pública
Os dados do Atlas apresentam discrepâncias em relação àqueles de outra publicação que busca analisar a situação da violência no país, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública neste ano.
O recorte oferecido pelo Atlas vai de 2011 a 2021, enquanto o Anuário já provê números de homicídios em 2022. Segundo Cerqueira, a diferença ocorre em razão das fontes utilizadas para a composição de ambos os estudos.
O Anuário é elaborado com base nos dados fornecidos pelas Secretarias e Institutos Estaduais de Segurança Pública e ou de Defesa Social, e pelas Polícias Civis, que possuem maior agilidade em compilar e disponibilizar esses dados.
Já o Atlas tem como base o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, que apenas disponibilizam dados até o ano de 2021.
Mas os documentos também apresentam diferenças nos números de homicídios em cada ano. Distinções nos procedimentos e até na nomenclatura para classificação das mortes justificam essa disparidade. Em 2017, quando houve um ápice no número de homicídios, o Atlas registrou 65.602 casos, enquanto o Anuário trouxe 64.078.
Segundo o estudo do Ipea, o pico foi resultado de uma guerra entre as duas principais facções criminosas do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), que teria ocorrido entre 2016 e 2017. Já em 2019, quando houve o menor índice de homicídios, o Atlas reporta 45.503 casos, enquanto o Anuário chega ao total de 47.765.
2021 teve a segunda menor taxa de homicídios desde 2011
De acordo com o Atlas, o ano de 2021 teve a segunda menor taxa de homicídios desde 2011, com 22,4 mortes por 100 mil habitantes, atrás apenas de 2019, com 21,7 assassinatos por 100 mil habitantes. Entre 2011 e 2021, os registros indicam que foram assassinadas 616.095 pessoas, o equivalente à população de cidades como Joinville (SC) e Feira de Santana (BA).
O documento chama a atenção para a ocorrência de homicídios por raça ou cor de pele. Em 2021, dos 47.847 homicídios registrados, 77,1% foi de pessoas negras e pardas, ou cerca de 8 em cada 10 mortes. A publicação atribui a alta incidência de mortes violentas entre a população negra ao racismo estrutural no país.
Mesmo com a redução geral na taxa de homicídios no país ao longo dos 11 anos (18,3%), alguns estados apresentaram aumentos substantivos no período, como Roraima (91,3%), Amapá (72,2%) e Piauí (65,6%). Entre 2020 e 2021, os campeões no aumento de mortes violentas também estão na Região Norte, com Amazonas (34,9%), Amapá (17,1%) e Rondônia (16,2%), sendo que o Piauí, que fica no Nordeste brasileiro, apresentou variação de 13%.
Por outro lado, Distrito Federal (-62,7%), Alagoas (-55,6%) e São Paulo (-52,8) apresentaram a maior redução na taxa de homicídios entre 2011 e 2021. Minas Gerais (-44,5%) e Paraná (-37,1%) também obtiveram quedas significativas.
Premissas diferentes de avaliação denotam viés ideológico
Em relação à taxa de São Paulo, a menor em todo país, com 6,6 homicídios para 100 mil habitantes em 2021, o Atlas faz uma ressalva sobre a “fragilidade desse dado como representativo da realidade do Estado”.
Segundo o documento, a fragilidade se deve à “piora na qualidade da informação sobre a taxa de Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI), que termina por ocultar várias mortes causadas por agressão”.
Segundo o documento, os estados com maior população, como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais seriam responsáveis por 72,5% dos homicídios ocultos no país, embora mediana das taxas também indique alta ocorrência em Roraima e no Rio Grande do Norte.
Por outro lado, ao comentar a redução do índice da Paraíba, de -34% entre 2011 e 2021, ano em que a taxa de homicídios por 100 mil habitantes chegou a 28,1 (mais de 4 vezes a taxa de São Paulo), o Atlas adotou outra linha de análise.
No estado, os pesquisadores destacaram o lançamento do programa Paraíba Unida pela Paz em 2011, quando a taxa de homicídios era de 42,6 por 100 mil habitantes. Segundo o documento, o planejamento apoiado em diagnóstico e orientado por resultados, foi importante para a redução do índice.
Além disso, teria sido determinante a atuação pessoal de governador como o “fiador e condutor da política”, assim como a “continuidade política no processo, uma vez que não apenas os governadores nessas quatro últimas gestões pertencem ao mesmo grupo político, bem como os gestores da segurança e defesa social permanecem entre os profissionais que ajudaram na formulação e introdução do programa naquele estado”.
Em 2011, Ricardo Coutinho, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), assumiu o governo do estado, para o qual seria reeleito em 2014. Em 2019, João Azevedo, da mesma legenda, assumiu o governo estadual, onde permanece após a reeleição em 2022.
“Lamentavelmente, mais uma vez nos deparamos com um material produzido por uma fundação pública, ou seja, com recursos públicos, firmando-se com um nítido viés ideológico, no propósito de forçar a aceitação de uma narrativa”, afirma Rebelo.