O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) lançou na terça-feira (18) um estudo afirmando que houve uma estagnação e não uma redução dos índices de homicídio no país durante os anos de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro - ao contrário do que mostravam estatísticas anteriores. O Instituto reforça essa nova conclusão através de uma revisão de dados de anos anteriores feita por meio de ferramentas de inteligência artificial. Mas analistas ouvidos pela reportagem afirmaram que o novo documento pode ser uma tentativa do Ipea de sustentar uma narrativa negativa para Bolsonaro.
O estudo divulgado pelo Ipea diz: "ao contrário do propalado, não houve qualquer sinal de melhoria na conjuntura da segurança pública no Brasil no período Bolsonaro. A tendência de queda das Mortes Violentas Intencionais se exauriu, no rastro de uma legislação armamentista negacionista".
Para sustentar essa afirmação, o Ipea diz que em 2019, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes era de 21,7 e que ela se repetiu em 2022 - o que representaria estagnação e não redução. De acordo com os dados compilados pelo Ipea, em 2019 houve 45.503 homicídios, e em 2022, 46.409. O Instituto utiliza o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), ambos do Ministério da Saúde para fazer suas aferições.
Por outro lado, em uma estatística anterior, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, cujos dados são organizados com base nas informações das Secretarias de Segurança Pública, demonstram que em 2019 ocorreram 41.286 mortes no país, enquanto em 2022, foram 40.748, uma redução de 1,2%. Também não foi ressaltado no estudo do Ipea que os assassinatos caíram cerca de 18% no primeiro ano de Bolsonaro em relação ao ano anterior, de 2018.
Para reforçar sua tese da estagnação durante a gestão Bolsonaro, os pesquisadores do Ipea criaram uma aplicação de Inteligência Artificial com o objetivo de estimar o número de possíveis homicídios que estariam ocultos em mortes violentas cujas causas são indeterminadas. Para tanto, o instituto alimentou sua ferramenta de Inteligência Artificial com dados de homicídio ocorridos no Brasil desde 1996, para que pudesse "aprender" com base nos parâmetros do crime, como hora, local, idade da vítima, etc.
Com base nos padrões reconhecidos, a Inteligência Artificial seria capaz de, ao analisar as fichas de mortes que não tiveram suas causas determinadas, determinar quais delas seriam homicídios ocultados pela falta de categorização ou pela classificação incorreta. Deste modo, o Instituto afirma que o número de mortes a cada ano seria superior ao revelado pelos dados oficiais e corrobora sua tese da estagnação no combate à violência durante o governo Bolsonaro.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo contestam as avaliações do Ipea. Doutor em Ciências Policiais e coronel da reserva da Polícia Militar da Paraíba, Onivan Elias de Oliveira, avalia que a impressão que fica da publicação é de que os autores desejam induzir o leitor para uma narrativa em que o governo federal no período 2019-2022 teria sido senão um “indutor” da violência letal.
De forma contrária às conclusões do Atlas, o coronel afirma que há uma unanimidade entre os dados do DATASUS do Ministério da Saúde, do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública do Ministério da Justiça, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública/FBSP e do próprio IPEA, nas versões anteriores do Atlas, que atestariam as reduções nos indicadores de homicídios dolosos, latrocínios e lesão corporal seguida de morte no mesmo período.
Dados oficiais indicam redução no número de homicídios e latrocínios entre 2018 e 2022, à exceção de 2020
Ele também destaca que no ano de 2019, o primeiro da gestão Bolsonaro, todos os Estados do Brasil conseguiram reduções nesses indicadores. Este fato nunca havia sido visto desde o início dessas mensurações anuais e, tampouco, se repetiu até o momento.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no qual o Fórum Brasileiro de Segurança Pública reúne os dados oficiais das Secretarias de Segurança Pública, em 2019, o primeiro ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, houve 41.919 homicídios e latrocínios (roubos seguidos de morte), uma redução de 18% diante das 50.897 mortes desse tipo ocorridas em 2018.
De 2019 para 2020, houve um crescimento nesse número, da ordem de 6,3%, índice bastante inferior à queda registrada entre 2018 e 2019. Já em 2021, esse aumento foi praticamente revertido, quando foram registrados 41.692 homicídios e latrocínios, uma diminuição de 5% em relação a 2020, com 43.919 mortes dessa natureza.
Entre 2021 e 2022 foi registrado novo decréscimo, embora em um percentual menor do que nos anteriores. No último ano do governo Bolsonaro, foram registrados 40.748 homicídios e latrocínios, uma redução de 2,2% em relação a 2021. Ou seja, à exceção de 2020, em todos os outros anos entre 2019 e 2022 a soma dos números de homicídios e latrocínios no país apresentou redução. Se compararmos 2019 a 2022, a redução foi 1,2%.
Atlas usa dados para adequar realidade a narrativas
De acordo com a versão de 2024 do Atlas, a grande redução nos números de homicídios e latrocínios ocorrida no primeiro ano do governo Bolsonaro não seria senão um reflexo de uma tendência de queda nos números que vinha de anos anteriores.
No entanto, o próprio Atlas afirma que em 2016 e 2017 foram registrados os números mais altos de violência no país, em razão de uma alegada "guerra" entre as facções Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC). Ou seja, a suposta tendência de redução quebrada a partir da gestão Bolsonaro se resumiria ao ano de 2018, pelo argumento do Ipea.
O estudo segue dizendo que, se não fossem as políticas de ampliação do acesso à armas no governo Bolsonaro, os homicídios teriam sido menores do que foram nesse período. A versão do Atlas de 2023 já trazia esse argumento, conforme foi mostrado pela Gazeta do Povo, mas a edição atual vai além, pois cria tabelas que incluem os supostos homicídios descobertos pela Inteligência Artificial para destacar que até mesmo as reduções em 2018 e 2019, aferidas com dados oficiais, não foram tão amplas como divulgadas pelo governo do ex-presidente.
De acordo com a publicação, a diferença entre os homicídios estimados (a soma dos homicídios registrados e dos ocultos) e os registrados caminhou de forma paralela até 2018, quando o número de homicídios ocultos teria aumentado, distorcendo ainda mais os dados oficiais sobre esses crimes - coincidentemente, durante a gestão de Bolsonaro.
O jurista e pesquisador em Segurança Pública, responsável pelo Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), Fabrício Rebelo, afirma que não se pode atribuir valor científico a algo que, como o algoritmo criado pelo Ipea, em vez de trabalhar a partir dos indicadores oficiais, os modifica para que passem a exprimir outra realidade. “Isso é verdadeiramente absurdo do ponto de vista de pesquisa, porque retira completamente a isenção do universo de dados pesquisado”.
Homicídios ocultos elevariam índices de violência no país
A partir da aplicação do algoritmo de Inteligência Artificial os pesquisadores do Ipea chegaram à conclusão de que das 131.562 mortes violentas por causa indeterminada ocorridas entre 2012 e 2022, 51.726 configurariam, em realidade, homicídios ocultos que não foram corretamente identificados.
Se fosse oficial, esse acréscimo nos dados faria com que a taxa de homicídios por 100 mil habitantes calculada com base em dados oficiais pelo Instituto saltasse de 27,9 para 30,4 em 2018; e de 21,7 para 25,2 em 2019. Essa diferença, faz parecer bem menores os avanços relatados na segurança pública nesses anos.
Fabrício Rebelo, questiona a técnica aplicada pelo Ipea e seus resultados. Ele avalia que esse uso subverte a matriz de dados oficial, além de submetê-la aos vieses desejados pelos pesquisadores do Ipea. “É uma verdadeira “tortura” dos dados para que mostrem as conclusões antecipadamente definidas, mais um tipo de malabarismo estatístico com puro viés de confirmação”, afirmou o jurista.
O coronel Onivan também questiona o método e não vê respaldo robusto na aplicação da técnica. Ele avalia que o uso de Inteligência Artificial para fazer “suposições ou estimativas” se mostra temerário para a credibilidade da informação. Na sua visão, se ao examinar o cadáver, o perito oficial e os policiais envolvidos na cena e na investigação não conseguiram chegar a uma conclusão objetiva e científica, uma aplicação de Inteligência Artificial tampouco conseguirá fazê-lo.
Além disso, também destaca que, de forma subliminar, o Atlas do Ipea indica que os delegados e promotores de Justiça podem ter se omitido ou distorcido dados referentes às mortes violentas por causas indeterminadas em todos esses casos, principalmente a partir do ano anterior e durante o governo Bolsonaro.
Estatuto do Desarmamento teria gerado redução na violência a partir de 2003, enquanto políticas armamentistas causaram aumento
A publicação também traz a avaliação de que, desde 2003, ações como o Estatuto do Desarmamento levaram à redução consecutiva nas taxas de violência no país. Ao mencionar as políticas de acesso à armas do governo Bolsonaro, o Atlas afirma que, se não fosse essa legislação, a redução dos homicídios teria sido ainda maior do que observada entre 2019 e 2021.
Para tanto, faz uso de um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023a), segundo o qual, entre 2019 e 2021, teriam sido evitados 6.379 homicídios não fosse a legislação que ampliou o acesso a armas. De acordo com esse estudo do Fórum, o aumento de 1% na difusão de armas de fogo gera aumento nas taxas de homicídios e de latrocínios de 1,2%.
Onivam contesta essa colocação. Segundo o Coronel, o que se tem de concreto e mensurável é que entre 2003 e 2017 os homicídios e outros crimes violentos e letais, anualmente aumentaram no Brasil como um todo e que em nenhum ano desse período houve redução nos índices.
Na visão de Fabrício Rebelo, esses argumentos são como uma “batalha desesperada contra a realidade”. O jurista avalia que não parece haver qualquer preocupação séria com a apuração dos reais efeitos das políticas públicas na área de segurança, mas simplesmente justificar padrões ideológicos já antecipadamente definidos.
Rebelo ainda ressalta que as argumentações trazidas pelo Atlas explicam, de certa forma, como o país chegou ao que classifica como um verdadeiro “colapso da segurança pública”. "Ao invés de se combater as causas reais da criminalidade, a opção é pela insistência em narrativas ideológicas que têm por objetivo a afirmação de uma agenda, a exemplo do desarmamento", afirma.
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