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As divergências entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores sobre a necessidade de distanciamento social para frear a propagação do novo coronavírus parecem ter chegado agora ao Judiciário. A Procuradoria-Geral da República (PGR), que chefia o Ministério Público Federal, e o Supremo Tribunal Federal (STF) não se entendem sobre quem tem a legitimidade para decidir acerca das regras de isolamento da população, se a União, estados ou municípios. Isso num momento em que grupos de manifestantes realizam carreatas e protestos a favor da flexibilização da quarentena.
Na segunda-feira (13), o procurador-geral, Augusto Aras, defendeu junto à Corte que a Presidência da República tem o direito de definir sobre o momento oportuno para reduzir o distanciamento social no enfrentamento à Covid-19 em território nacional. O posicionamento de Aras contraria decisões anteriores de ministros do STF que proíbem Bolsonaro de interferir nas medidas adotadas pelos estados, como o isolamento, e de tomar decisões que não tenham respaldo da comunidade científica e de saúde para combater a pandemia.
O ministro Alexandre de Moraes, ao decidir que Bolsonaro não pode interferir em decisões de governos locais sobre isolamento social, reconheceu que a divergência em torno da melhor maneira de lidar com a pandemia causa insegurança e justifica o receio da população.
“Lamentavelmente, na condução dessa crise sem precedentes recentes no Brasil e no Mundo, mesmo em assuntos técnicos essenciais e de tratamento uniforme em âmbito internacional, é fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de Governo, acarretando insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade”, disse.
Enquanto Bolsonaro alega que as medidas restritivas podem prejudicar a economia e os empregos, e prega a volta à normalidade, seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defende que a população siga as orientações e regras adotadas pelos governadores para o enfrentamento à crise. Essa divergência entre Mandetta e Bolsonaro quase causou a demissão do ministro.
O STF tem uma série de ações em andamento para discutir as medidas adotadas para o combate ao coronavírus e a autonomia de estados, do Distrito Federal e municípios para definir estratégias para lidar com a crise de saúde pública.
Nesta quarta-feira (15), o plenário do STF vai julgar duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) sobre a autonomia dos estados e do distrito federal para cuidar da saúde, dirigir o sistema único e executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica, além de adotar medidas de restrição ao transporte, entre outros pontos. As ações são de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello.
PGR: Governo federal tem legitimidade para decidir sobre isolamento
Para o procurador-geral Augusto Aras, o presidente pode decidir sobre o “momento oportuno” para um maior ou menor distanciamento social para combater o novo coronavírus. A manifestação de Aras foi protocolada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que questiona a veiculação da campanha “O Brasil não Pode Parar” do governo federal.
“No Brasil, o isolamento social tem sido uma das ferramentas de enfrentamento da epidemia do Covid-19. O momento adequado para adotá-lo em menor ou maior medida tem sido objeto de grandes debates, consoante amplamente noticiado pela grande mídia, e levam em consideração uma série de dados fáticos atualizados diariamente pelos órgãos de saúde. Na repartição das funções de poder do Estado, repousa sobre o Executivo a estrutura e a expertise necessárias à tomada de decisões rápidas e adequadas ao enfrentamento de crises que repousam sobre cenários fáticos voláteis, tal como o atual enfrentamento da epidemia de Covid-19”, disse Aras na manifestação ao STF.
O procurador-geral também reforça as preocupações com os efeitos do isolamento social para a economia e também para a saúde mental dos brasileiros. “Há, igualmente, preocupação, compartilhada por todos, com os efeitos do isolamento social, que vem sendo adotado como principal meio de controle da velocidade de contágio, não só sob o aspecto da saúde mental e emocional das pessoas, mas sobretudo considerados os impactos para economia local, nacional e global”, diz o PGR.
Aras também afirma ao STF que a decisão sobre o grau de isolamento social pode impactar em outros direitos fundamentais dos brasileiros, como o direito à saúde, à dignidade da pessoa humana, à liberdade, ao trabalho e à livre iniciativa.
“No particular, os impactos estruturais do isolamento social para a economia são potencialmente danosos não só ao direito à saúde, uma vez que a paralisação de estruturas produtivas e de consumo têm o potencial de atingir uma plêiade de outros direitos fundamentais apoiados na dignidade da pessoa humana, sobretudo o da liberdade, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, todos igualmente fundamentos da República Federativa do Brasil”, diz.
O que diz o STF sobre isolamento social e combate ao coronavírus
Os ministros do STF vêm dando indicativos de que não aceitarão nenhuma resposta do governo federal à pandemia de coronavírus que não seja baseada na ciência e nas recomendações internacionais.
Ao decidir que o governo federal não pode interferir em decisões dos estados e municípios sobre isolamento social, o ministro Alexandre de Moraes também reconheceu que “o direito à vida e à saúde aparecem como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil”.
O ministro decidiu que Bolsonaro não pode desacatar medidas impostas pelos governos locais “em respeito ao Federalismo e suas regras constitucionais de distribuição de competência consagradas constitucionalmente”. “A adoção constitucional do Estado Federal gravita em torno do princípio da autonomia das entidades federativas, que pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias”, afirmou Moraes.
“Dessa maneira, não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos”, concluiu o ministro, em ação interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para obrigar o governo a seguir as recomendações da OMS.
Já o ministro Luís Roberto Barroso, na liminar que proibiu o governo de veicular a campanha “O Brasil não Pode Parar”, defendeu o isolamento social e afirmou que “não há qualquer dúvida de que a infecção por Covid-19 representa uma ameaça à saúde e à vida da população”.
“Entre as medidas de redução da velocidade de contágio estão justamente aquelas que determinam o fechamento de escolas, comércio, evitam aglomerações, reduzem a movimentação de pessoas e prescrevem o distanciamento social. A necessidade de tais medidas constitui opinião unânime da comunidade científica sobre o tema”, escreveu Barroso.
O ministro ainda destacou que o STF tem jurisprudência consolidada que define que, “em matéria de tutela ao meio ambiente e à saúde pública, devem-se observar os princípios da precaução e da prevenção”. “Portanto, havendo qualquer dúvida científica acerca da adoção da medida sanitária de distanciamento social – o que, vale reiterar, não parece estar presente – a questão deve ser solucionada em favor do bem saúde da população”, afirmou.
Barroso destacou que a campanha do governo federal era “desinformativa” e sinalizava que “não há uma grave ameaça para a saúde da população e leva cada cidadão a tomar decisões firmadas em bases inverídicas acerca das suas reais condições de segurança e de saúde”.
Para Barroso, ainda, a discussão em torno da campanha não se trata de uma decisão política sobre como conduzir o país durante a pandemia de coronavírus. “Haveria uma decisão política, no caso em exame, se a autoridade eleita estivesse diante de duas ou mais medidas aptas a produzir o mesmo resultado: o bem estar da população, e optasse legitimamente por uma delas. Não é o caso. A supressão das medidas de distanciamento social, como informa a ciência, não produzirá resultado favorável à proteção da vida e da saúde da população. Não se trata de questão ideológica. Trata-se de questão técnica. E o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional de tutelar os direitos fundamentais à vida, à saúde e à informação de todos os brasileiros”, afirmou.
Barroso também afirmou que não há um conflito entre a proteção à saúde e a proteção da economia durante a pandemia. “Caso o Brasil não adote medidas de contenção da propagação do vírus, o próprio país poderá ser compreendido como uma ameaça aos que o estão combatendo, passando a correr o risco de isolamento econômico”, alegou o ministro.
Tema é controverso, diz constitucionalista
Para o advogado André Portugal, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, o tema é controverso e ainda vai gerar muita polêmica. “As discussões sobre federalismo brasileiro foram reativadas em um nível que não se via há muito tempo”, diz.
Para Portugal, a Constituição prevê que o direito à saúde é uma competência conjunta entre municípios, estados, Distrito Federal e União. “A premissa fundamental que se deve ter para avaliar essa situação é que estamos tratando de direito à saúde. A proteção desse direito cabe tanto à União quanto aos estados e municípios. É uma competência comum”, diz. “O isolamento social é uma medida de proteção ao direito à saúde. A União não tem prerrogativa sozinha de tomar medidas a esse direito”, completa.
Portugal também ressalta que a Lei do Coronavírus, aprovada em fevereiro pelo Congresso, também estabelece parâmetros para a tomada de decisões para se lidar com a pandemia no Brasil. “Essa lei estabeleceu que todas as medidas a serem aforas em combate à covid-19 devem estar obrigatoriamente fundadas em evidências científicas. Isso vale para governadores, prefeitos e para o presidente da República”, diz o advogado. “Qualquer medida que contraria evidências científicas que estejam à disposição será fatalmente ilegal”, completa.