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As diretorias da margem brasileira da Itaipu Binacional, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério dos Povos Indígenas devem definir, nos próximos dias, detalhes da aquisição de áreas que serão pagas pela Itaipu para indígenas na região oeste do Paraná, próximo à fronteira com o Paraguai.
Segundo a hidrelétrica, comandada pelo ex-deputado federal Enio Verri (PT), a usina tem uma "dívida histórica com indígenas" e que será paga pelo atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A compra de terras seria uma das formas de compensação pelo alagamento de aldeias na década de 1980 quando o reservatório da usina foi construído.
A aquisição, segundo a própria hidrelétrica, pode envolver neste momento de 1,5 mil hectares a 3 mil hectares (cerca de 30 quilômetros quadrados). De acordo com os valores de mercado, as transações podem variar de R$ 300 milhões a R$ 600 milhões, respectivamente, sem considerar as benfeitorias. Os recursos sairão do caixa da hidrelétrica e negociações serão feitas diretamente com proprietários que procuraram a usina e se mostraram dispostos a vender suas terras.
Uma reunião para tratar do assunto estava agendada para 26 de setembro, mas acabou adiada. A expectativa é de que ocorra nos próximos dias.
Há cerca de duas semanas um grupo da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas esteve na região para encontros com comunidades afetadas, tanto com donos de áreas quanto povos originários que as reivindicam. A região vive conflitos crescentes por terras em uma escalada de tensão nos últimos meses.
Funai e governo devem definir quais áreas serão adquiridas, após acordos com líderes indígenas. Tudo isso vai constar em um relatório que será entregue à Itaipu neste encontro que está prestes a ocorrer.
Verri afirma que registros históricos comprovam que essas comunidades não foram indenizadas no momento em que houve o enchimento do reservatório no Rio Paraná na década de 1980 e que, com isso, ficaram sem seus aldeamentos. Nas últimas décadas, a polêmica em torno do assunto cresceu a níveis preocupantes, com conflitos armados e com intenso debate desde o primeiro governo Lula envolvendo demarcações de áreas.
O que a Itaipu fará, no entanto, não corresponde a demarcações nem desapropriações, o que é de responsabilidade única e exclusiva da União. “A Itaipu vai comprar as áreas, não cabe à hidrelétrica desapropriar nem fazer demarcação”, disse o diretor-geral da hidrelétrica em entrevista à Gazeta do Povo no início deste ano.
Fontes ligadas à Funai informaram que o grupo apresentará um relatório em que serão apontadas as áreas de interesse dos indígenas, porém, o processo ainda depende de uma série de burocracias e pode não ser concluído neste ano.
Os hectares em aquisição estão em uma região altamente produtiva, cuja economia gira em torno do agronegócio, com a produção de grãos e proteína animal. O Paraná é o segundo maior produtor de grãos do Brasil, atrás apenas do Mato Grosso. O Paraná lidera a produção nacional avícola e é o segundo na produção de leite e suínos.
A região dos conflitos, que é responsável por boa parte dessa produção do agro, vive há décadas sob tensão. Somente naquele entorno há neste momento ao menos 22 áreas invadidas, onde estão cerca de 6 mil indígenas.
Entre as áreas ocupadas irregularmente, algumas pertencem à própria Itaipu, às margens do lago que abastece a usina, e as demais são propriedades privadas, em perímetros urbanos e rurais, principalmente nos municípios de Terra Roxa, Guaíra e Santa Helena.
Itaipu vai destinar recursos à Funai, que fará a compra e o pagamento
As áreas em negociação milionárias para destinação aos indígenas serão adquiridas direto com os proprietários sem envolvimento de agências corretoras. A tramitação deverá ocorrer da seguinte forma: a Funai, em consenso com os indígenas, vai indicar as terras a serem adquiridas. Após acordo comercial com os proprietários, a Itaipu fará o depósito dos recursos à Funai que concluirá a aquisição e pagamento.
A avaliação das áreas deve ser feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que ao lado de prefeitos, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal, participa do debate.
Não caberá à Itaipu selecionar nem avaliar as áreas, ficando sob a responsabilidade da Funai a seleção e pagamento mediante avaliação pelo Incra.
A Itaipu não quis comentar esse processo e disse apenas que “não tem novas informações a serem prestadas” e que a empresa segue à disposição das autoridades e aguarda as decisões das instâncias competentes para dar os próximos passos nas negociações.
Ao menos 60 proprietários colocaram suas terras à disponibilização da Itaipu. São 50 conglomerados, que superam a estimativa a ser adquirida neste primeiro momento. Porém, segundo fontes da própria Funai, nada impede que novas áreas sejam avaliadas para a compra, de acordo com a indicação dos indígenas.
Indígenas reivindicam 32 mil hectares em região altamente produtiva
A aquisição de áreas pela Itaipu não deverá pacificar conflitos por terras na região de fronteira com o Paraguai que perdura há décadas. Isso porque as comunidades indígenas da etnia Avá-Guarani no oeste do Paraná reivindicam demarcações de área para criação de um território.
O grupo quer 32 mil hectares (320 quilômetros quadrados), o que inviabilizaria a atividade agrícola em cidades como Terra Roxa, da qual 70% do território do município seria reivindicada, segundo a administração pública local.
O processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá - relacionado aos indígenas da etnia Avá-Guarani - está em curso. Em 2020, uma portaria da Funai no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) havia suspendido a ação e, durante a pandemia, os processos ficaram travados no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
O processo foi destravado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) neste ano. De acordo com informações do site da Corte, em abril, o STF determinou que as ações voltem a tramitar regularmente.
"Os processos haviam sido suspensos em decorrência de concessão de medida liminar do vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, em janeiro deste ano durante o recesso forense. Como consequência, também foi cassada a parte da liminar que havia suspendido as decisões judiciais proferidas nesses processos. A decisão majoritária foi tomada no julgamento do referendo de medida liminar na Ação Cível Originária (ACO) 3555, realizado na sessão virtual encerrada em 3/4, e seguiu entendimento do relator do processo, ministro Dias Toffoli. O relator explicou que a ACO foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para pedir reparação a indígenas afetados por ações e omissões estatais em virtude da construção e da instalação da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional", informou o tribunal.
Governo do Paraná sobe o tom e pede ação imediata da União contra invasões
Desde a derrubada da tese do Marco Temporal pelo STF em setembro do ano passado, as invasões de áreas por indígenas têm aumentado na região. Foram ao menos seis novas propriedades particulares invadidas, todas com registro de conflitos. Em alguns casos, n houve determinação para reintegração de posse, mas até o momento não foram cumpridas.
Diante disso, o governador do Paraná, Carlos Massa Ratinho Junior (PSD), subiu o tom contra as invasões. Ele disse que o estado quer evitar uma escalada da violência na região, cobrou celeridade na desocupação das áreas e salientou que as comunidades vêm recebendo novos indígenas, inclusive vindos do Paraguai.
“Os agricultores estão cobrando uma solução em relação à reintegração de posse e o estado vai ter que se posicionar juridicamente para cumprir a função que é da Polícia Federal. Mas isso é algo que não gostaríamos de fazer, até porque é uma obrigação federal”, disse.
O governo do Paraná tem reforçado a presença policial na região. Diante das ameaças de conflitos, a Força Nacional também está no local desde o fim do ano passado. No início deste mês, indígenas que estão em uma das áreas invadidas fizeram refém um policial da Força Nacional e roubaram o fuzil do agente. A arma foi localizada horas depois.
“Estou muito preocupado com a questão da segurança pública. Estamos reforçando o volume de policiais presentes, e a própria Força Nacional também está enviando mais homens para lá”, disse o governador em manifestação recente.
Para Ratinho Junior, é preciso tomar providências. “Temos decisões judiciais que precisam ser cumpridas [...] Também é necessário que o governo federal, seja através da Itaipu ou outro órgão, busque uma solução para a acomodação desses povos originários. Isso não pode acontecer através da invasão de propriedades privadas que são altamente eficientes para a cadeia produtiva do estado e que há décadas ajudam no desenvolvimento econômico e social da região”.
Demarcação de terras indígenas no PR atinge milhares de hectares de áreas produtivas
Somente das áreas reivindicadas para demarcação no Paraná, aproximadamente 20 mil hectares são em terras agricultáveis e altamente produtivas onde vivem ao menos 200 famílias. Segundo o prefeito de Guaíra, Heraldo Trento (União), uma das cidades que mais regista invasões e uma das que pode ser mais afetadas pela demarcação, 15% de todo o território do município é reivindicado.
Segundo o prefeito, não se trata de ser contrário aos povos originários, mas se defende o direito à propriedade e de famílias que têm posse das áreas há décadas. Para Trento, se as áreas forem adquiridas dos produtores com pagamento de indenizações justas, o processo pode ser pacificado. Mas ele ressalta que os produtores não podem ser despejados de suas áreas. “A condução desse debate nos interessa e preocupa muito”, afirmou.
Assim que surgiram informações de que a Itaipu Binacional faria aquisição de áreas para povos indígenas – o que não envolve desapropriação nem demarcações –, autoridades começaram a relatar que indígenas vindos de outras regiões passaram a se somar aos grupos que já estavam estabelecidos no Oeste do Paraná.
Um dos que denunciou essa questão foi o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), que é presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) na Câmara dos Deputados. Com o acirramento de invasões de áreas, Lupion postou um vídeo em suas redes sociais denunciando as invasãoes. Segundo ele, são feitas por "ditos indígenas" e podem ser denominadas como "mais um fato lamentável".
"É uma vergonha, um absurdo total, a legislação não permite isso, e nós estamos exigindo isso, que Brasília tome conta e tome os procedimentos, as atitudes e as ações necessárias para fazer a desintrusão dessas áreas, porque essas invasões não estão na lei, elas são ilegais, e a gente precisa garantir o direito de propriedade", disse Lupion.
Demarcação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul
Em agosto, sob o comando do ministro Gilmar Mendes, do STF, teve início o trabalho da comissão que analisa as contestações ao Marco Temporal para demarcação de terras indígenas na Suprema Corte. As agendas serão mantidas até 18 de dezembro deste ano.
Uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, promulgada em janeiro deste ano, define que indígenas teriam direito a terras que já eram ocupadas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, condição contrária à decisão do STF sobre o Marco Temporal em setembro de 2023.
Dentro deste grupo de trabalho, ministros do STF falaram do que seria um acordo histórico para solucionar conflitos fundiários entre indígenas e o agronegócio. Eles falavam da demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, no Mato Grosso do Sul, estado vizinho aos pontos de conflito no Paraná.
O acordo foi firmado em 25 de setembro com representantes do agro, líderes indígenas, representantes da Funai, da Advocacia-Geral da União, do Ministério dos Povos Indígenas e do governo do estado de Mato Grosso do Sul. Gilmar Mendes, que é o relator do caso, disse que o acordo ainda precisa ser avaliado e só então seguir para a homologação do Plenário. “Talvez seja este um aprendizado institucional para outras áreas conflituosas”, disse o decano. As áreas em questão somam cerca de 9 mil hectares.
O acordo prevê que a União pague aos produtores rurais R$ 27,8 milhões pelas benfeitorias apontadas em avaliação individualizada feita pela Funai em 2005. O valor foi corrigido pela inflação e a Taxa Selic e será viabilizado por crédito suplementar.
Os proprietários de áreas também devem receber indenização da União no valor R$ 101 milhões pelas terras e o estado de Mato Grosso do Sul deverá efetuar depósito judicial de R$ 16 milhões aos proprietários.
Após os pagamentos, os proprietários devem se retirar do local em até 15 dias. Após esse prazo, a população indígena poderá ingressar no espaço de forma pacífica.
O acordo prevê a extinção, sem resolução de mérito, de todos os processos em tramitação que discutem os litígios envolvendo o conflito da demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu.
O governador do Mato Grosso do Sul Eduardo Riedel (PSDB) classificou a decisão como histórica, “em um ambiente de conciliação”. A terra indígena fica em Antônio João, no sul do estado. Para Riedel, o acordo é o primeiro na busca de uma solução, que deve vir acompanhada de políticas públicas nas comunidades indígenas e de uma decisão do Congresso Nacional sobre o Marco Temporal.
"É um caminho que estamos dispostos sempre a buscar de paz. O estado vem se desenvolvendo e não podemos ficar paralisados nessas discussões de conflito fundiário”, afirmou Riede. O estado do Mato Grosso do Sul concentra hoje cerca de 120 mil indígenas.
Para autoridades que participaram desse processo no STF, as medidas adotadas para o caso no MS podem ser replicadas em outras áreas do Brasil. Segundo o próprio governo federal, existem hoje aproximadamente 200 processos para demarcação de terras indígenas no Brasil. Não foi informado pela Funai o tamanho dessas páreas reivindicadas.
Segundo o governo federal, existiam até abril deste ano no Brasil 736 terras indígenas nos registros da Funai e juntas representam cerca 13,75% do território brasileiro.
Mas, diferente do acordo que pode ser fechado no MS, a possibilidade de demarcações de terras indígenas preocupa agricultores que vivem na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Matéria da Gazeta do Povo retratou a situação em setembro de 2023. À época, donos de pequenas propriedades ouvidos pela reportagem relatavam que a decisão a ser tomada pelo STF poderá impactar suas vidas, seus negócios e a economia de várias cidades da região. De acordo com a publicação, com a possibilidade de desapropriação, as famílias dos pequenos agricultores de SC podem ter que deixar para trás a história que alguns constroem há seis gerações.