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Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro apesar da discordância do ministro Sergio Moro, a criação da figura do juiz de garantias foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) antes mesmo do início de sua vigência. A "nova figura do direito" deveria começar dia 23 de janeiro. Contudo, durante o recesso do judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Dias Toffoli, decidiu prorrogar por 180 dias a implementação.
Dias após a decisão, o ministro relator do caso, Luiz Fux, também do Supremo, assumiu o plantão judiciário e derrubou a liminar de Toffoli e suspendeu a implementação do juiz de garantias. A suspensão valerá até que o Plenário do STF julgue as ações que questionam o instituto na Corte.
O juiz de garantias é o magistrado responsável pela fase de investigação criminal. É a ele que cabe decretar e prorrogar prisão preventiva, decidir sobre quebra de sigilos bancário e telefônico e pedidos de busca e apreensão. É ele também quem decide se aceita a denúncia ou queixa-crime. Caso dê prosseguimento, o caso passa para o juiz de instrução e julgamento, que ouvirá testemunhas e dará a sentença. Atualmente, apenas um juiz é responsável por todas essas funções.
Porém, para Toffoli, o Judiciário precisava de mais tempo para se adequar a essa novidade. "A instituição do juiz de garantias pela Lei 13.964/19 objetivou ressaltar a reserva de jurisdição na adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais na fase de investigação, bem como reforçar a garantia de imparcialidade", afirmou o ministro em entrevista coletiva.
Já Fux foi mais enfático ao revogar a decisão monocrática do colega: "O Plenário poderá decidir o mérito, inclusive, sendo o caso, fornecendo balizas interpretativas mais objetivas para as categorias normativas nele incluídas. Por ora, a eficácia do dispositivo deve ser suspensa para se evitarem prejuízos irreversíveis à operação do sistema de justiça criminal, inclusive de direitos das defesas", relatou na decisão (leia na íntegra).
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entraram, em conjunto, com a primeira ADI no Supremo pedindo a suspensão da medida. Na sequência, o PSL, ex-partido do presidente Bolsonaro, ajuizou outra ADI. A terceira ação é dos partidos Podemos e o Cidadania, que recorreram ao STF de forma conjunta.
Já a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu para ingressar na ADI ajuizada pela Ajufe e AMB, mas para defender a criação do juiz das garantias.
Os argumentos das entidades e partidos contra o juiz de garantias
A Ajufe e a AMB sustentam na ADI que a norma deve se aplicar a todos os tribunais e não apenas aos de primeira instância, o que geraria uma “quebra de isonomia”. Para as duas entidades, o juiz de garantias também que representa uma “ofensa ao princípio do juiz natural”.
O Podemos e o Cidadania reforçam esse mesmo argumento: os custos extras aos cofres públicos. Também reclamam que a implementação do juiz de garantias pode resultar em “um julgamento mais tardio, tendo em vista que o magistrado [de instrução] precisará de mais tempo para firmar sua convicção”.
O PSL argumenta que não foi realizado nenhum “estudo prévio do impacto econômico, orçamentário e organizacional” da criação do juiz de garantias – o que poderia onerar os estados.
Caso está com Fux, mas Toffoli também podia tomar decisão
As três ações foram distribuídas para o ministro Luiz Fux, que assumiu o plantão do STF no dia 19 de janeiro. Entretanto, o presidente Dias Toffoli, que estava de plantão no período de recesso do tribunal, resolver se antecipar e rejeitar parcialmente as ADIs. A discussão sobre o tema seria retomada somente quando o Supremo voltar do recesso, a partir de 29 de janeiro.
Toffoli, que também é o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já se manifestou a favor do juiz de garantias. Ele criou um grupo de trabalho no CNJ para definir como a norma será implementada, adiantando uma possível decisão no sentido de garantir a criação do juiz das garantias, mas optando por alargar o início da vigência.
“A legislação é positiva para a sociedade e é preciso ter consciência disso. O juiz das garantias não é a única mudança da lei e não estabelece um juiz que vai proteger o criminoso, mas que será rígido para acompanhar a investigação”, disse Toffoli durante reunião do CNJ no fim de 2019. “Não há que se falar em aumento de custo e de trabalho. É uma questão de organização interna para atender a legislação e adaptar o trabalho das centrais de inquérito aos parâmetros da norma.”
Além de Toffoli, outros cinco ministros do Supremo se manifestaram favoravelmente à figura do juiz de garantias. Ao jornal O Estado de S. Paulo, Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski declararam que a norma é uma medida positiva. Dessa maneira, a maioria no STF estaria formada quando a questão for levada ao plenário.
Advogado e professor de Direito Penal e Penal Processual, Daniel Gerber acredita que o assunto inevitavelmente será apreciado em plenário. “Sem dúvida irá para plenário. Pode haver uma liminar no período de plantão suspendendo os efeitos da lei até o julgamento final. Mas não é possível nem seria adequado que esse assunto fugisse ao plenário”, diz Gerber. “Acredito que o STF vai entender pela legitimidade do juiz de garantias, mas criando uma solução temporal que permita a implementação de maneira adequada."
Para o advogado e professor de Direito Penal Marcelo Lebre, caso seja esse o caminho, a decisão pode ser rápida. “Eu acredito que a tendência é que seja um julgamento célere porque envolve o interesse dos próprios magistrados.”
Defensores dizem que juiz de garantias assegura imparcialidade
As três ações diretas de inconstitucionalidade que estão no STF demonstram que o assunto está longe de ser unanimidade. Mesmo entre magistrados não há consenso. Apesar de Ajufe e AMB se colocarem contra a medida, juízes e desembargadores de várias partes do país têm se posicionado a favor da criação do juiz de garantias.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, um grupo de 70 magistrados do Tribunal de Justiça (TJ-RS) lançou um manifesto em favor da implementação da norma no último dia 7. “O juiz de garantias é um passo decisivo para a superação do processo penal autoritário e das práticas inquisitórias, que nos distanciavam dos 19 países da América Latina que já adotaram o sistema, pois, sobretudo, delimita qual a função de cada sujeito processual (MP, Defesa, Juiz), indo ao encontro do modelo acusatório consagrado na Constituição da República (arts. 129, I e 144)”, diz o texto.
As vozes contrárias já eram esperadas, especialmente porque a inclusão do artigo ocorreu no Congresso Nacional e carrega um teor político. Segundo o professor Marcelo Lebre, foi uma espécie de imposição dos deputados e senadores, mas que não se trata de nenhuma invenção. “Embora não fosse almejado pelo Ministério da Justiça, faz parte do jogo político essa questão. O parlamento não tirou isso do nada. É um instituto já utilizado e empregado em vários países com tradição jurídica como a nossa”, diz.
A criação do juiz de garantias é defendida como uma medida para evitar decisões parciais dos juízes. Hoje, o mesmo magistrado atua nas fases de investigação, instrução e julgamento, o que joga dúvidas sobre a imparcialidade dele durante o processo. “O juiz de garantias fomenta e solidifica a ideia das garantias legais e constitucionais", diz Lebre. "Se um juiz, na primeira fase, se sente à vontade para decretar prisão cautelar, como ele vai ser puro e imparcial quando receber o processo e fazer o julgamento?”
O professor Gerber segue na mesma linha e opina que o juiz de garantias vai representar vantagens não só para os acusados, mas também para o próprio magistrado. “Do ponto de vista legal e dogmático, a existência do juiz de garantias fornece maior segurança ao processo penal, tanto do lado da defesa como da própria acusação.”
Lebre afirma que as principais críticas estão na forma de implementação da nova figura. “O ponto central das discussões dos magistrados está muito mais relacionado não à figura do juiz de garantias, mas sim à operacionalização desse instituto. E essas críticas têm parcial razão porque a estrutura jurídica no Brasil é um pouco tumultuada.”
Com apenas um mês entre a sanção e a vigência da lei, há muita indefinição sobre como o juiz de garantias será colocado em prática. O próprio texto da lei não se aprofunda – exatamente o que motivou o CNJ a formar o grupo de trabalho nesse sentido.
“Eu entendo que teremos certa dificuldade da implementação do modelo, por questões óbvias de custo pessoal e financeiro do projeto e pela falta de cultura de trabalharmos garantias no momento da investigação. Mas passando a vigorar, terá de haver uma solução. O meu medo é que seja uma solução fantasiosa, que sirva apenas para legitimar a investigação, mas que não permita uma verdadeira análise”, diz Gerber.
Moro foi contra a sanção de Bolsonaro
O juiz de garantias entrou no pacote anticrime à revelia do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. O artigo que criou esse novo tipo de magistrado foi introduzido pela deputada Margarete Coelho (PP-PI) quando o texto era apreciado na Câmara dos Deputados. Moro chegou a sugerir o veto sobre esse ponto específico, mas o presidente Jair Bolsonaro não levou em consideração os argumentos do ex-juiz da Lava Jato.
“O MJSP [Ministério da Justiça e Segurança Pública] se posicionou pelo veto ao juiz de garantias, principalmente, porque não foi esclarecido como o instituto vai funcionar nas comarcas com apenas um juiz (40 por cento do total); e também se valeria para processos pendentes e para os tribunais superiores, além de outros problemas”, disse Moro, em nota, logo após a sanção da lei.
Durante uma transmissão ao vivo no Facebook, Bolsonaro negou que o juiz das garantias represente um ataque à Operação Lava Jato, comandada por Moro na Justiça Federal do Paraná até 2019. “O juiz de garantias, apesar das críticas que recebeu, não é nenhum ataque à Lava Jato. Vai demorar anos para ser colocado em prática. [O instrumento] já existe no Brasil, que são as centrais de inquérito. A própria Lava Jato não teve só o [Sergio] Moro que trabalhou. [...] Foram vários outros juízes do lado dele”, comentou.