Juízes de garantias ou de controle são magistrados que supervisionam a investigação criminal, mas não julgam a culpa ou a inocência dos réus.| Foto: Divulgação/CNJ

As mensagens atribuídas ao então juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, e a integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato – que suscitam acusações de parcialidade contra o ex-magistrado – trouxeram à tona um antigo debate no processo penal brasileiro: a criação dos juízes de garantias. Figura prevista no Novo Código de Processo Penal, aprovado no Senado em 2010 e em tramitação na Câmara desde então, o juiz de garantias é visto como um passo importante na modernização da legislação brasileira, mas enfrenta uma série de empecilhos e críticas.

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Juízes de garantias ou de controle são magistrados que supervisionam a investigação criminal, mas não julgam a culpa ou a inocência dos réus, nem aplicam as penas, funções que cabem a outro juiz ou grupo de juízes. No dia 9 de julho, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), constituiu, com 34 membros, uma nova comissão na Câmara para apreciar o projeto e, talvez, dar fim a uma novela que já dura uma década.

Esse tipo de divisão marca a implantação, na Europa e na América Latina, do que se convencionou chamar sistema "acusatório" de Justiça, em que as atividades de julgar e acusar são rigorosamente separadas, em contraposição ao sistema dito "inquisitório" – que chegou ao apogeu no século 19 e no qual os juízes têm um papel ativo em investigar.

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Um levantamento feito pelo procurador Vladimir Aras, do Ministério Público Federal (MPF), mostra que Brasil e Cuba são os únicos países da América Latina que ainda não aprovaram códigos processuais acusatórios. A Argentina foi o último país a aderir ao modelo, com a aprovação de um novo Código de Processo Penal em 2014, que entrou em vigor somente neste ano, completando uma onda que começou no início dos anos 1990.

No Brasil, embora a Constituição de 1988 preveja o modelo acusatório, o Código de Processo Penal de 1941, ainda em vigor, tem uma forte inspiração inquisitória. Desde a promulgação da Constituição, reformas foram feitas, mas ainda persistem traços do modelo antigo: os juízes podem, por exemplo, pedir a produção de provas contra os réus, intimar testemunhas sem que as partes peçam e até condenar os réus mesmo se o Ministério Público pedir a absolvição.

“Nós temos um problema estrutural: seja quem for o juiz, se tem uma postura mais ativa ou menos ativa, ele é empurrado para dentro da acusação”, avalia Aras, que também é professor de processo penal. “Não é que o juiz seja venal ou ladrão, é que o juiz é um ser humano e se contamina pelas provas. A separação da figura do juiz que julga e dos acusadores é fundamental para que ele tenha o distanciamento e a equidistância necessária das provas”, resume.

“Um sistema acusatório ou um sistema inquisitório são opções político-jurídicas e você segue um sistema processual penal coerente com essa opção. A nossa opção, em 1988, foi o Estado democrático, com garantias e ampla defesa, então você não tem como fugir da busca pelo sistema acusatório”, afirma o advogado Francisco Monteiro, coordenador dos cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

“Cada um dos sistemas tem seus inconvenientes. Qual o inconveniente do sistema inquisitorial? Colocar muitos inocentes na cadeira, porque a culpa está na cabeça do juiz que colhe as provas, é a profecia autorrealizável. O inconveniente do sistema acusatório é que pode haver, eventualmente, culpados que não serão condenados, porque pode acabar faltando provas, por exemplo”, diz Monteiro.

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Como funciona o juiz de garantias

No sistema acusatório, a despeito das particularidades de cada país, o juiz de garantias supervisiona a legalidade da investigação da polícia e do MP – há países em que o MP coordena o trabalho da polícia, porque não há a figura do delegado – e da “contra investigação” que a defesa tem direito de fazer, a chamada investigação defensiva. Cada parte produz suas provas e o juiz autoriza os procedimentos que precisam de uma decisão judicial – no Brasil, seria o caso de interceptações telefônicas, buscas e apreensões e quebras de sigilo bancário, por exemplo.

Uma vez feita e aceita a denúncia, o debate sobre as provas colhidas se desenrola diante de outro juiz, que vai absolver ou condenar e fixar a pena. Para quem conhece os filmes americanos, a divisão vem logo à mente: o julgamento se desenrola diante de um júri que vai definir a culpa do acusado, enquanto o juiz dá as balizas do procedimento, e posteriormente fixa a pena. A colheita das provas é uma etapa anterior, que se desenrola diante de outro júri ou de um juiz togado, que não vai atuar na fase processual. Trata-se do sistema acusatório com júri, diferente do modelo que vem se fixando na Europa e na América Latina.

Uma das dificuldades do modelo é sua implantação. Nos países da América Latina, esse processo tem ocorrido em fases, de cidades e departamentos menores até chegar às capitais, daí a demora, por exemplo, no caso argentino. No Brasil, o principal empecilho conjuntural é o Teto de Gastos (PEC 95/2016): não existe sequer um indicativo preliminar dos gastos necessários para reformular o Judiciário, e um levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2010, mostra que 40% das varas brasileiras têm apenas uma comarca, com um único juiz responsável.

Entre possíveis soluções para isso, estaria: 1) a previsão de comarcas cruzadas, em que os juízes de comarcas vizinhas desempenham o papel de juiz de garantias e juiz da causa alternadamente, o que ainda assim poderia gerar custos de deslocamento, como o CNJ aponta; 2) a previsão de que nas comarcas com um único juiz, ele atuará em ambas as fases, o que para alguns violaria o princípio da igualdade ao instituir duas Justiças diferentes para os cidadãos; 3) a incorporação dos delegados de polícia ao Judiciário na qualidade de juízes de garantias, o que gera críticas por precarizar tanto a polícia quanto a magistratura.

Projeto de Código de Processo Penal traz avanços, mas atrai críticas

Em 2009, a pedido do então presidente do Senado, José Sarney (MDB), uma comissão de juristas preparou um anteprojeto de Código de Processo Penal no modelo acusatório, que acabou aprovado na Casa em 2010 e tramita na Câmara dos Deputados desde então. Uma das mudanças previstas pelo projeto é a criação dos juízes de garantias.

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Tanto o MPF quanto o CNJ pontuaram as dificuldades orçamentárias na criação dos juízes de garantias. Mas o MPF foi além e criticou a redação do projeto por dar a esses magistrados competências que hoje ficam a cargo dos MPs. Segundo nota técnica da instituição, a Constituição coloca “o Ministério Público como responsável pelo controle externo da polícia, bem como por ser o destinatário primeiro dos atos da investigação, o controle da legalidade da investigação, agora, cabe ao Ministério Público, não mais ao Poder Judiciário”.

Além das questões práticas, a principal preocupação do MP é evitar que magistrados se transformem em juízes de instrução – que efetivamente trabalham como acusadores, em países nos quais o MP acaba tendo funções bem mais restritas. Essa é a tradição europeia pré-sistema acusatório, resistente em países como Espanha, França e Bélgica, e que foi legada aos países latino-americanos, como era o caso do Chile, que, até sua reforma processual, em 2000, sequer tinha um MP.

Do lado de advogados, também houve críticas ao projeto, mas em geral por sua timidez em dar poderes ao juiz e garantir sua imparcialidade. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que reúne criminalistas "garantistas", lançou um boletim especial sobre o novo código em 2010.

Entre outras críticas técnicas, sobressaem as seguintes: pelo projeto, o juiz da causa continuaria sendo responsável pelo recebimento da denúncia, afastando-se do princípio acusatório; a redação prevê que os autos do inquérito policial permanecerão apensados ao processo, permitindo que o juiz da causa se contamine pelas discussões probatórias; o juiz do processo fica responsável por resolver “questões pendentes” da fase anterior, o que abriria as portas para que tenha de resolver questões próprias do período de investigação.

A redação final do Senado, no entanto, incorporou várias sugestões de advogados, que são contestadas em notas técnicas do MPF, justamente por darem aos juízes de garantias competências que os procuradores entendem suas de acordo com a Constituição. O projeto já passou por uma Comissão Especial na Câmara, mas voltará a ser analisado pelo colegiado constituído pelo presidente da Casa.

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