As últimas 48 horas interromperam a “maré de azar” que assolou a Lava Jato nos últimos sete meses e foram – por que não – motivo de comemoração nos gabinetes do Ministério Público Federal (MPF). A sorte virou exatamente três semanas depois de a operação sofrer o seu mais duro golpe: a derrubada da prisão em segunda instância, que colocou em liberdade o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após um ano e sete meses de detenção.
Na quarta-feira (27), a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) não só manteve a condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia, como aumentou a pena do petista para 17 anos de prisão. O resultado do julgamento surpreendeu pela postura firme do trio de desembargadores do colegiado.
Eles ignoraram a jurisprudência recente estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a ordem das alegações finais (réus delatados devem apresentar a defesa final depois de réus delatores, para resguardar o direito à ampla defesa), entendimento que já resultou na anulação de duas condenações da Lava Jato.
Na quinta-feira (28), a vitória veio no próprio STF, com o desfecho favorável do julgamento sobre o compartilhamento de dados da Receita e do antigo Coaf. E com uma cereja em cima do bolo: o revés pessoal do presidente da Corte, Dias Toffoli, que se viu isolado em sua tese de impor restrições à troca de informações bancárias e fiscais com o MPF e a Polícia Federal.
Relator da Lava Jato: "STF quis criar norma processual não escrita"
Antes da confirmação da condenação de Lula, havia a expectativa de que o TRF4 decidisse anular a sentença de primeira instância no caso sítio de Atibaia por causa da ordem das alegações finais. O próprio Ministério Público Federal havia sugerido – em decisão revista mais tarde – que o processo voltasse à fase anterior à sentença para que os réus se manifestassem novamente, afastando assim qualquer risco de anulação da condenação em instâncias superiores.
Mas o desembargador João Pedro Gebran Neto, relator das ações da Lava Jato no TRF4, foi incisivo ao rejeitar a tese do Supremo, afirmando que "não comunga desse entendimento". Com preceitos legais, análise processual e convicções pessoais, ele afastou a ordem diferenciada para apresentação das alegações finais. Segundo ele, além de não ter base legal, o entendimento do STF não pode ser usado como regra para processos passados. Deu um banho de autoestima na Lava Jato.
"Parece-me que o que fez o Supremo Tribunal Federal é criar uma norma processual não escrita (…), que só poderia valer com efeito ‘ex nunc’, jamais uma norma processual com eficácia retroativa. Fazendo com que todos os juízes do Brasil tivessem que adivinhar que, em determinado momento, seria criada uma nova norma, e que todos os processos que não implicassem essa nova norma retroativamente seriam eivados de nulidade", afirmou, sendo seguido pelos colegas de turma Leandro Paulsen e Carlos Thompsom Flores.
Plenário do STF corrige deslize de Toffoli
Não houve muito tempo para a decisão do TRF4 repercutir no STF. No dia seguinte, os 11 ministros da Suprema Corte se reuniram para encerrar o julgamento iniciado havia uma semana sobre a legalidade do uso de dados extraídos pela Receita Federal e pelo antigo Coaf, atual Unidade de Inteligência Financeira (UIF), vinculada ao Banco Central, que monitora transações bancárias atípicas. O questionamento foi feito por um réu condenado a partir de informações fornecidas pelo Fisco sem autorização judicial, o que, em tese, configurava quebra de sigilo do contribuinte e feria um direito constitucional.
Relator do caso, Toffoli havia suspendido liminarmente todas as investigações em curso que utilizavam informações fiscais e bancárias sem aval prévio da Justiça. O ministro, num primeiro momento, votou por estabelecer freios ao compartilhamento de dados, permitindo apenas a troca de informações genéricas, sem maiores detalhamentos. Isso seria péssimo para a Lava Jato e criaria um obstáculo à máxima “siga o dinheiro”, uma das principais armas de investigação contra a corrupção e outros crimes de colarinho branco.
Mas a maioria esmagadora dos colegas de Corte divergiu, garantindo o acesso amplo e irrestrito dos dados de suspeitos pelo Ministério Público, sob os termos da lei vigente. O entendimento foi de que o compartilhamento pressupõe a transferência do sigilo de um órgão para outro, sem quebra de confidencialidade. Quando o resultado do julgamento já estava definido em 8 a 3 pelo compartilhamento sem restrição, o presidente do STF refez o seu voto e seguiu a maioria.
Foi uma derrota pessoal para o presidente da Corte, que já havia se desgastado com a decisão de requerer ao Banco Central cópias dos relatórios de inteligência de 600 mil pessoas físicas e jurídicas. A quebra do sigilo foi vista como um gesto autoritário: Toffoli foi bombardeado de críticas e se viu obrigado a voltar atrás uma semana depois de o caso vir à tona via imprensa.
O episódio arranhou ainda mais a imagem do STF junto à opinião pública e influenciou nos votos dos ministros da Corte no julgamento – eles mandaram uma mensagem: a de que o Supremo não compactua com a corrupção e cumpre seu papel institucional. Em tempo, foi de Toffoli o voto de minerva no julgamento do STF que enterrou a prisão em segunda instância.
Ameaças contra a Lava Jato continuam, apesar das vitórias recentes
As últimas batalhas podem ter sido vencidas, mas a “guerra de nervos” contra a operação continua. Na terça-feira (26), o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, foi punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Por 8 votos a 3, os conselheiros decidiram dar uma advertência a Dallagnol por uma entrevista que ele concedeu à rádio CBN, em agosto de 2018.
O procurador disse, na época, que alguns ministros da Segunda Turma do STF formavam uma “panelinha” em alguns julgamentos e passavam uma mensagem de leniência em favor da corrupção. O presidente da Suprema Corte, Dias Toffoli, não gostou e entrou com a representação disciplinar contra Dallagnol – o ministro integrava o referido colegiado na ocasião.
A advertência é uma punição leve, mas pesa do ponto de vista simbólico, de reprovação da conduta profissional do agente público. Dallagnol recorreu ao próprio STF contra a punição, nesta sexta-feira (29). Ele recebeu o apoio dos pares da força-tarefa, que divulgaram nota conjunta de desagravo assinada por 14 procuradores.
Está previsto ainda o fim do julgamento na Segunda Turma do Supremo de um recurso do ex-presidente Lula que pede a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça. A defesa quer que Moro seja considerado parcial para julgar o petista e, com isso, os processos conduzidos por ele em relação a Lula sejam anulados.
O placar, por enquanto, está em 2 a 0 contra o recurso do ex-presidente. Faltam ainda três votos, dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Há risco de o colegiado concordar com a tese da defesa.
Fim do inferno astral?
O inferno astral da Lava Jato começou em março deste ano, quando o STF vetou hipótese de desmembrar processos de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, entre outros, de delitos eleitorais. Procuradores fizeram uma intensa campanha nas redes sociais por um resultado contrário. Defenderam, em vão, que as investigações deveriam ser apenas desmembradas: crimes comuns na Justiça Federal e crimes eleitorais nos tribunais eleitorais.
O procurador Deltan Dallagnol chegou a afirmar, nas redes sociais, que a “janela de combate à corrupção política que se abriu há cinco anos começou a se fechar”, tal o desânimo com o resultado do julgamento no Supremo.
Logo depois, o STF cancelou um acordo feito entre a Lava Jato e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que previa a criação de uma fundação privada para gerir recursos oriundos da multa de R$ 2,6 bilhões paga pela Petrobras em ação nos EUA. Até a Procuradoria-Geral da República (PGR) foi contra a criação da fundação, na qual o MPF teria uma cadeira.
Em agosto, a Lava Jato viu fracassar a tentativa de transferir Lula para um presídio estadual em São Paulo. A transferência foi negada no mesmo dia pelo STF, em julgamento extraordinário, quase por unanimidade: foram 10 votos a 1. Ministros que costumam votar a favor das teses da operação, como Edson Fachin, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, votaram contra a transferência do petista para Tremembé.
O Supremo ainda anulou duas sentenças da Lava Jato em primeira instância, com base no argumento de que delatores precisam entregar alegações finais antes dos delatados. Um dos beneficiados foi o ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, que teve a sentença do ex-juiz Sergio Moro anulada.
Soma-se a isso tudo, a divulgação de diálogos atribuídos a membros da força-tarefa do MPF e a Sergio Moro pelo site The Intercept Brasil, obtidos de forma ilegal a partir do hackeamento do aplicativo de mensagens Telegram dos celulares de procuradores. As conversas privadas, que demonstrariam condutas inapropriadas do ex-juiz e dos investigadores, causaram desgaste à Lava Jato, embora a autenticidade dos diálogos tenha sido sempre contestada pelo Ministério Público e pelos agentes citados.
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