Mobilização para aprovação da Lei da Ficha Limpa no Congresso, em 2010: marco legal ajuda a entender a política no Brasil de hoje.| Foto: Brizza Cavalcante / Agência Câmara
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Em maio de 2010, Gleisi Hoffmann, que naquele ano seria eleita senadora pelo PT do Paraná, celebrava a aprovação pelo Congresso da Lei da Ficha Limpa: "importante avanço da democracia e torcemos para que já tenha validade para essas eleições".

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Oito anos depois, já na condição de senadora, a petista discursava no Congresso e expunha sua preocupação com um impacto que a lei acabaria ocasionando, o afastamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da eleição presidencial de 2018, condenado por corrupção.

"Lula pode ser candidato. E temos essa certeza porque, em 2016, 145 prefeitos foram eleitos nessa condição. Eles tinham recursos que questionavam suas condições em segundo grau. Por que não haveria o PT de registrar Lula que é inocente, tem o dobro de intenção de votos e base legal pra ser candidato, ainda que preso político?”, questionou.

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O ex-presidente havia sido condenado por um órgão judicial colegiado — a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no processo do tríplex do Guarujá — e passou a ser considerado ficha suja, conforme estabelece a lei, estando proibido de se candidatar a um cargo eletivo.

A exclusão de Lula do processo eleitoral que consagrou Jair Bolsonaro foi a consequência de maior repercussão da Lei da Ficha Limpa (nº 135/2010) , que completou 10 anos de vigência no dia 4 de junho. E contou com um grau de ironia, já que foi o petista, como presidente da República, que sancionou a norma, em 2010.

A sanção pelo então chefe do Executivo foi o último passo de um processo que se iniciou ainda na década de 1990. A Lei da Ficha Limpa foi idealizada por juristas e outros envolvidos no cenário político que buscavam endurecer os critérios de inelegibilidade no Brasil. A meta era impedir que pessoas com condenações ou que haviam renunciado a cargos públicos para escapar das cassações ficassem impedidos de disputar eleições.

Uma campanha de coleta de assinaturas foi empreendida e, em setembro de 2009, o Congresso recebeu um pacote com mais de 1 milhão de apoios à proposta. Foi então instaurado um projeto de lei de iniciativa popular no Legislativo, aprovado em maio de 2010 tanto na Câmara quanto no Senado, e sancionado no mês seguinte por Lula.

A proposta encontrou apoio de políticos de diferentes vertentes durante sua tramitação. As principais críticas públicas se davam em torno de aspectos técnicos, não do mérito da iniciativa. Membros do PT celebravam a ação: José Pimentel, que se lançaria candidato ao Senado pelo Ceará, adotou o 135 como número de campanha, a mesma numeração que recebeu a lei. E Wadih Damous, à época presidente da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e depois deputado federal pelo estado, defendia a sanção e a vigência da norma na eleição de 2010.

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"Foi um dos momentos mais bonitos da história do Brasil. O Congresso, historicamente, não permitia a abertura de uma CPI sobre empreiteiras, uma investigação profunda sobre corrupção. Então apareceu aquele projeto com mais de 1 milhão de assinaturas, e ele andou, com um debate muito grande", recordou em entrevista à Gazeta do Povo o ex-senador Pedro Simon (MDB-RS), que integrava o Congresso à época da aprovação da Lei.

Segundo ele, havia mobilizações nos bastidores pela rejeição da proposta, mas a participação da sociedade levou os parlamentares à aprovação. "Estudantes colocaram em frente ao Congresso 81 caixões, representando os 81 senadores. Quem votasse contra o projeto iria para o caixão. A pressão popular fez diferença, e senadores que haviam discursado contra acabaram votando a favor", destacou. A proposta acabou aprovada por unanimidade no Senado.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Anos após Lei da Ficha Limpa foram de mudanças

Os anos que se seguiram após 2010, quando a Lei da Ficha Limpa foi aprovada, foram de profundas mudanças políticas no Brasil, e também de controvérsias não solucionadas até os dias atuais.

Em 2011, Dilma Rousseff (PT) tomou posse como presidente da República, a primeira mulher a chegar ao cargo. As manifestações de junho de 2013 reescreveram o cenário político. Dilma foi reeleita em 2014, na disputa mais acirrada da história do país — naquele mesmo ano, foi iniciada a operação Lava Jato, a maior investigação já instalada contra a corrupção. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a proibição de doações de pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, o que transformou as disputas políticas. O ex-presidente Lula foi condenado em primeira instância pelo então juiz Sergio Moro em 2017 e preso no ano seguinte.

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Mesmo com a Lei da Ficha Limpa em vigência desde 2010, a corrupção permaneceu como um dos principais temas da agenda eleitoral. O combate ao problema figurou entre as maiores propostas do então candidato Bolsonaro.

Para o cientista político Conrado Magalhães, da Guide Investimentos, a Lei da Ficha Limpa tem dado contribuições para a redução da corrupção, mas não é suficiente para dar conta dos avanços desejados pela sociedade. "A Lei da Ficha Limpa é, sem dúvida, um dos pilares do combate à corrupção. Mas nestes últimos anos, ganhou relevância também a maneira como a população tem visto a ação do STF sobre o tema. As mudanças de posicionamento quanto à prisão dos condenados em segunda instância geraram bastante repercussão. E o Brasil tem recuado nos rankings internacionais de combate à corrupção", disse.

Uma repercussão que a lei não ocasionou foi a de garantir ganhos eleitorais imediatos a alguns dos personagens envolvidos em sua tramitação. O então juiz Márlon Reis, que foi o principal formulador do projeto, se lançou na política em 2018, como candidato ao governo do Tocantins. Recebeu menos de 7% dos votos.

O relator da Ficha Limpa na Câmara, então deputado Índio da Costa (DEM-RJ), concorreu em 2010 como vice de José Serra (PSDB) na disputa presidencial. Foi derrotado. Já no PSD, Costa perderia ainda outras duas eleições: para a prefeitura do Rio em 2016 e para o governo do estado em 2018. Em ambas as ocasiões, somando menos de 10% dos votos válidos. No ano passado chegou a ser preso pela Polícia Federal por suspeita de fraudes nos Correios.

Dentro do contexto das transformações vividas pelo Brasil desde a promulgação da Lei da Ficha Limpa está a ascensão da direita. Jair Bolsonaro saltou de um deputado do "baixo clero" para presidente da República, eleito com mais de 57 milhões de votos. Além disso, movimentos populares assumidamente de direita e conservadores passaram a fazer parte do cotidiano político nacional. A Lei da Ficha Limpa teria alguma contribuição neste processo?

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Para Magalhães, existe alguma similaridade entre os acontecimentos. "A direita estava deslegitimada por ter sido relacionada à ditadura. Os vários anos do PT criaram um efeito um pouco parecido para a esquerda. A Lei da Ficha Limpa, somada ao lavajatismo, representa um pouco disso. Como a esquerda não conseguiu dar resposta a escândalos como Lava Jato e mensalão, abriu espaço a quem pudesse fazer isso", apontou.

Outro cientista político, André Rosa, diplomado pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em relações governamentais, tem opinião diferente: "não acredito que a Lei da Ficha Limpa tenha contribuído para a ascensão da direita. Toda a América Latina está passando por esse processo. Depois de décadas de conservadorismo tivemos um crescimento da esquerda, e agora identificamos o movimento oposto".

O ex-senador Pedro Simon pensa de forma semelhante. O emedebista conecta o crescimento da direita nacional também com evolução dos movimentos conservadores na Europa e nos EUA.

Ficha Limpa para além das eleições

A Lei da Ficha Limpa trouxe efeitos que se manifestaram em campos distantes do processo eleitoral. E estes efeitos, na avaliação de André Rosa, são positivos. Para ele, a norma criou novos critérios para a gestão pública.

"Não apenas impediu candidaturas, mas também fez com que pessoas condenadas não fossem colocadas em cargos comissionados no serviço público. Isso na esfera federal e nos estados e municípios", destacou.

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Rosa colocou também que a Lei da Ficha Limpa se integra em um momento em que a população tem ampliado sua consciência sobre a máquina pública e tudo o que envolve o ambiente político. "Ficha Limpa também representa um recado geral da população, que é mais capaz de compreender isso do que outros temas, como a doação para campanhas por parte de pessoas jurídicas", acrescentou.

O cientista político avalia que a mobilização que se viu em 2009 e 2010 para a aprovação da lei poderia se repetir nos dias atuais — e contaria, para isso, com a evolução da tecnologia, que tornaria mais ágil a coleta de assinaturas.

Já o ex-senador Pedro Simon também considera viável imaginar um envolvimento popular em torno de uma causa conjunta, mas faz a ressalva de que a desconfiança elevada da população na classe política é um dificultador do processo.