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Em conversas reservadas ocorridas em março de 2016, o então ministro do Planejamento e agora ex-senador Romero Jucá (MDB-RR) sugeriu ao então ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado algumas mudanças para "estancar a sangria" representada pela operação Lava Jato, em um grande “acordo nacional”. Hoje, quatro anos e 8 meses após esse diálogo, a tal conversa ganha ares de vidência. Nas próximas semanas (na pior das hipóteses), Câmara, Senado, uma classe de juristas e integrantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pretendem dar mais um passo no enfraquecimento das políticas de combate à corrupção. Esse passo tem nome e sobrenome: lei geral de proteção de dados criminais. Falta-lhe, porém, um pai.
Na quinta-feira última (5), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), recebeu a minuta do anteprojeto encaminhada pelo ministro do STJ Nefi Cordeiro. A proposta foi apresentada a partir de um relatório de grupo de trabalho, formado por juristas (alguns deles atuaram na defesa de indicados pela operação Lava Jato), mas precisa de um parlamentar para iniciar a sua tramitação. Isso ainda não havia ocorrido até o final da tarde de sexta-feira (6).
Maia, porém, já manteve contato com deputados do DEM, MDB e até mesmo do PT para “oferecer” esse filho fruto de um trabalho conjunto entre o STJ, juristas mais “garantistas” e o próprio Congresso. Uma informação relevante: a relatora do grupo de trabalho sobre a lei geral de proteção de dados criminais foi Laura Schertel Mendes, filha do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, um dos principais críticos da Lava Jato.
A lei geral de proteção de dados criminais busca, em teoria, resguardar informações privadas da bisbilhotice geral da nação. Na prática, porém, é vista por integrantes de órgãos de investigação como mais um óbice para entidades de controle, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), ou mesmo para ações de investigação entre órgãos internacionais.
Integrantes do Ministério Público consultados pela Gazeta do Povo citam duas investigações que poderiam simplesmente não ter saído do papel caso essa lei já estivesse em vigência: as investigações sobre o caso Queiroz, que teve por base a análise de dados do Coaf, e as relacionadas a desvios de recursos da Petrobras comandadas pelo ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que contou com a colaboração do Ministério Público da Suíça.
Autorização prévia para análise de dados poderia ter barrado caso Queiroz
Um dos pontos mais preocupantes da minuta do projeto, conforme os órgãos de investigação, está escrito no artigo 14: “o tratamento de dados pessoais sigilosos somente poderá ser realizado se estiver previsto em lei e para atividades de persecução penal” e “o acesso a dados pessoais sigilosos por meio de ferramentas de investigação e medidas cautelares de obtenção de prova deve observar a legislação especial aplicável”.
Em uma leitura superficial deste trecho, não há um problema visível. Entretanto, deve-se lembrar que a investigação do caso Queiroz começou após o Coaf ter identificado diversas transações suspeitas feitas pelo ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Especialistas em investigação apontam que, caso esse artigo 14 já estivesse em vigência, provavelmente a apuração envolvendo Queiroz seria considerada ilegal.
Esse artigo acaba sendo uma resposta a uma decisão de 2019, do STF, que autorizou a Receita Federal e o Coaf compartilharem dados sigilosos com a polícia e o Ministério Público sem necessidade de autorização judicial.
Além disso, de quebra, essa nova lei pode impor uma espécie de superpoder ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já que a entidade pode vir a ser a responsável pelo filtro ou controle do uso de dados privados nas investigações pessoais. O CNJ é a entidade responsável por controlar as ações dos juízes (cujos maus exemplos, via de regra, são punidos com gordas aposentadorias compulsórias) cujo mandatário é o presidente do Supremo Tribunal Federal. Em análise última, dependendo do caso, o filtro do CNJ para análise de dados que embasem investigações criminais pode conferir ao órgão um status de quarta instância da Justiça.
Outra incongruência apontada é que, pela proposta, alguns órgãos serão obrigados a implementar e elaborar “relatórios de impactos” à proteção de dados pessoais. “A autoridade competente responsável pelo tratamento de dados pessoais sensíveis elaborará relatório de impacto à proteção de dados pessoais e informará a autoridade nacional de proteção de dados”, aponta o parágrafo único do artigo 13 da nova legislação.
Sobre este parágrafo, em específico, advogados criminais consultados pela Gazeta do Povo alegam que o texto abre margem para contestações principalmente de autoridades políticas alvo de investigações criminais. Além disso, reforça um superpoder do CNJ, já que ele pode ser comunicado com antecedência sobre análise de dados que envolvam autoridades.
Lei sobre proteção de dados criminais torna crime a divulgação de dados sigilosos de investigações
Apesar de tantos problemas, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, defende que um único órgão tenha o controle dos dados da sociedade. “Não é o melhor caminho que o governo seja dono dos dados da sociedade. Os dados são poder e este poder não pode ser de um governo que esteja administrando o Brasil em um determinado momento”, disse.
Já para o ministro do STJ Nefi Cordeiro, a falta de uma legislação específica sobre o controle de dados é que não favorece o combate à corrupção. Na visão dele, isso impediria o compartilhamento de dados, pelas forças de segurança pública, com a Interpol e com polícias de outros países. “O Brasil não consegue obter dados da Europa porque ainda não temos instalada uma autoridade autônoma e independente”, lamentou.
Uma outra preocupação relacionada ao projeto é com o vazamento de dados. A proposta define como crime a divulgação de dados sigilosos com o “intuito de prejudicar” alguma pessoa. Esse trecho abre margem para criminalizar, inclusive, a atividade jornalística em determinados casos que vieram a público a partir da liberação de dados internos para a imprensa, como na Lava Jato. "O jornalismo não entra nessa categoria. Não há risco de censura à imprensa", defendeu-se o ministro na quinta-feira última (5), ao entregar o anteprojeto.