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Criação de animais domésticos tem legislação cada vez mais restritiva.
Criação de animais domésticos tem legislação cada vez mais restritiva.| Foto: Valter Campanato / Agência Brasil

O dilema entre adotar ou comprar animais domésticos, em especial cães e gatos, tem ganhado novos contornos com a influência de ativistas e protetores de animais na elaboração de leis. Nesse cenário, sob o pretexto de estimular a adoção de pets, as legislações municipais estão se tornando cada vez mais restritivas e acabam dificultando e às vezes impedindo a criação de animais de raça, que também é considerada um ramo do agronegócio.

Leis que visavam evitar maus-tratos de animais e estabeleciam padrões mínimos de higiene passaram a tratar de questões mais abrangentes, como a legalidade da reprodução em criatórios e a castração obrigatória de animais. Em alguns casos, a criação de cães e gatos para venda foi totalmente proibida em algumas cidades.

O setor, ligado ao agronegócio por se tratar da criação de animais domésticos e ser regulado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, tem demonstrado preocupação com a proliferação de leis que podem cercear a criação de animais no Brasil.

“Nós precisamos conscientizar os políticos que vão legislar sobre este tema. Há protetores que radicalizam ao formular as leis. Nós sabemos que é preciso separar o joio do trigo na criação de animais, mas a criação ética, visando melhoria das raças e bem-estar animal são o melhor caminho”, destaca o diretor-jurídico da Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC), Renato Almada.

A preocupação se justifica pelo posicionamento e atuação de ONGs, a exemplo do Instituto Ampara Animal, que é contra a criação de animais. “Somos contra, por exemplo, a criação de animais para venda e a favor da adoção, já que existem milhares de animais em abrigos públicos e privados e em situação de rua”, afirma a responsável pelo departamento jurídico do instituto, Viviane Cabral.

As leis se multiplicaram especialmente a partir de 2018, após uma série de denúncias de maus-tratos aos animais em indústrias de cosméticos. A mais séria foi o caso do Instituto Royal, da cidade de São Roque (SP), que mantinha 178 beagles em condições de maus-tratos em um laboratório de pesquisa de xampus e cosméticos. O local acabou invadido pela população e os cães foram libertados, tradados e adotados.

A repercussão aumentou o apelo por leis que impusessem regras para punir os maus-tratos aos animais e fez com que pelo menos 12 estados e o Distrito Federal adotassem leis proibindo o uso de animais em testes de cosméticos. Mas, após mitigar o problema real causado por algumas empresas da indústria de cosméticos, as leis de proteção animal acabaram avançando nas restrições e atingindo o setor de criação de animais. Isso prejudicou criadores que atuavam de forma correta.

Brasil é o terceiro em número de animais de estimação e setor movimenta R$ 65 bilhões por ano

A predileção dos brasileiros pelos animais de estimação coloca o país no terceiro lugar no ranking de maior população. O Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos e da China no número de pets. Em 2021, eram cerca de 149,6 milhões de animais de estimação em lares brasileiros. Hoje esse número já ultrapassou a marca dos 151 milhões, de acordo com os dados do Instituto Pet Brasil.

O setor também movimenta a economia. Em 2023, foram pelo menos R$ 65 bilhões gastos com o mercado de criação de animais domésticos, que envolve desde os criatórios até os medicamentos e itens de petshop. A estimativa da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) é de que em 2024 o faturamento seja de R$ 70 bilhões.

Entre o combate aos maus-tratos e o fim da criação de animais domésticos, leis se multiplicam no Brasil 

Depois das leis que proibiram o uso de animais para testes em laboratórios, há cada vez mais leis que tratam da proteção animal nos municípios, nos estados e até mesmo na União. As leis vão desde a regulamentação da criação e comercialização de animais até a proibição de existência de criadouros. Em Curitiba, por exemplo, a criação comercial de animais é proibida desde 2011, quando foi sancionada a Lei 13.914/11.

Um projeto de lei federal apresentado na Câmara dos Deputados tenta proibir a criação e a venda de cães "com problemas de saúde pré-existentes". Neste projeto seriam afetados, por exemplo, cães com focinho curto ou com excesso de pele, como bulldog francês, pug ou shar pei. O focinho curto dessas raças pode gerar a chamada braquicefalia, que, em alguns casos, pode levar a problemas respiratórios, dificuldades de regulação da temperatura e outros problemas de saúde.

As leis que impedem a comercialização de animais em feirinhas e em praças também são cada vez mais comuns. Elas são motivadas pela suposição de que a exposição causaria sofrimento nos animais. Também já há diversas iniciativas que também tentam impedir que cães e gatos sejam vendidos em pet shops.

Há ainda diversas leis que tratam da obrigatoriedade de castração de animais, sejam eles de raça ou não, independente da sua origem.

Um exemplo é a Lei 17.972/24, do estado de São Paulo, sancionada em julho. A lei previa que, ao desempenhar a atividade econômica de criação, os criatórios teriam que garantir a esterilização cirúrgica, ou seja, a castração, dos filhotes até os quatro meses de idade. Mas trechos da lei foram suspensos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo informações da Corte, o ministro Flávio Dino considerou que a norma de SP "criou obrigações a todos os criadores de cães e gatos do estado sem dar um prazo mínimo para adaptação às novas regras, que entraram em vigor na data de sua publicação". A liminar concedida por Dino em agosto foi referendada pelo plenário do Supremo em 13 de setembro. Os trechos da lei ficarão suspensos até que o STF análise o mérito da ação.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7704 foi impetrada pela Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação e pelo Instituto Pet Brasil contra a lei estadual.

"Estudos científicos apontam que a castração precoce, generalizada e indiscriminada de cães e gatos, sem considerar suas características individuais, põe em risco a saúde e a integridade física desses animais. O procedimento aumenta significativamente os riscos de má formação fisiológica e morfológica e de doenças que prejudicam cães e gatos e comprometem suas futuras gerações", disse o ministro Flávio Dino, relator da medida, em seu voto.

Na opinião do diretor-jurídico da Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC), Renato Almada, a castração é uma espécie de mutilação, que poderia ser enquadrada como maus-tratos, dependendo do caso. “Cada raça tem especificidades quando o assunto é castração. O ideal é que esse procedimento seja sempre instruído por técnicos que conhecem cada raça. Além disso, em um curto espaço de tempo, a castração obrigatória pode levar à extinção de raças e isso vai contra a Constituição, que fala em preservação de espécies”, explicou Almada, ao comentar que atualmente as leis sobre castração são as que mais têm sido propostas pelos legisladores nessa área.

Com a atuação de ONGs e com protetores de animais em cargos no Legislativo, as leis têm sido cada vez mais restritivas. “As esferas municipal, estadual e federal são distintas no que se refere à aplicação das leis para a defesa dos animais. Vivemos nos municípios, por isso essas leis precisam ser adequadas a cada realidade local, e podem ser as mais restritivas”, defende Viviane Cabral, do Instituto Ampara Animal.

No entanto, somente na esfera federal é possível tratar de matéria penal. Sendo assim, somente com aprovação da Câmara e do Senado é que pode haver tipificação de crimes e punição para maus-tratos, por exemplo.

Conflitos entre ministérios desafiam regulamentação sobre animais domésticos

A Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Animais de Estimação, ou Câmara Pet, está vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e é o ambiente de discussão do setor privado da cadeia pet para propor, organizar, e construir uma agenda estratégica para o mercado. Esse colegiado tem entre as suas funções propor legislações para regular o setor.

No entanto, na avaliação do presidente da Câmara Pet, José Edson Galvão de França, que também é presidente-executivo da Abinpet, há uma confusão de poderes entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente no que se refere à legislação sobre animais domésticos de estimação. O conflito está nas competências de cada ministério para tratar do assunto.

“Os animais de estimação, por conta da cadeia em que estão inseridos, devem ter regulamentações ligadas ao Ministério da Agricultura. No entanto, o Ministério do Meio Ambiente, cujas responsabilidades são com animais silvestres, ainda não domesticados, também legisla para animais domésticos, o que interfere no andamento das regras e diálogo entre mercado e governo”, apontou França por meio da sua assessoria.

O conflito entre os ministérios reflete o conflito entre a proteção animal, que prega leis cada vez mais restritivas, e o setor de criação, que busca legislações mais técnicas e sem ideologias. O analista e advogado Antônio Fernando Pinheiro Pedro, do think tank Iniciativa DEX, aponta que há poucos parlamentares que tratam do tema de forma técnica.

“Há muita ignorância a respeito da atividade e absoluta falta de organização do setor, pois ele é naturalmente pulverizado”, avaliou.

Proteção animal se divide entre o bem-estar e o abolicionismo 

A preocupação do setor com o avanço de legislações restritivas se justifica, em especial pela possibilidade de evolução para proibição da existência de criadouros. Essa possibilidade ocorre porque no âmbito da proteção animal destacam-se posições divergentes: o bem-estarismo e o abolicionismo.

Os chamados bem-estaristas admitem a possibilidade da utilização de um animal - para locomoção, por exemplo -, desde que o bem-estar deles seja resguardado. Já os abolicionistas defendem que os mesmos direitos fundamentais dos humanos devem ser respeitados também em relação aos animais, sejam eles domésticos ou não. Nessa vertente estão as pessoas que defendem, por exemplo, que não é aceitável que se tenha qualquer tipo de animal de estimação.

Neste cenário, o advogado e analista Antônio Fernando Pinheiro Pedro, do DEX, alerta que o crescente número de legislações que restringem a criação pode chegar ao abolicionismo. “Isso [aumento no número de leis restritivas] será o fim das raças caninas, da piscicultura, do aquarismo, da avicultura”. Para ele, o impacto das leis também terá como consequência a “deseconomia” gerada pela perseguição ideológica.

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