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A definição do primeiro escalão da equipe ministerial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) incomodou o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e algumas bancadas partidárias da Casa, inclusive da esquerda. A sensação entre deputados federais é de que Lula privilegiou desproporcionalmente o Senado em detrimento da Câmara.
Dos 37 ministros, 26 são filiados a partidos políticos. Desses, dez preenchem a "cota do Senado", por serem indicações atreladas a senadores e a suas bancadas partidárias. Outros nove preenchem a "cota da Câmara". Mas deputados acham que o Senado, com 81 parlamentares, tem muito mais poder do que a Câmara, com 513. Além disso, dentro da Câmara há a sensação de que alguns ministros de sua "cota" não são efetivamente indicações de deputados, mas de outras forças políticas.
Dos ministros associados ao Senado, três deles são de partidos da esquerda: o da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), senador eleito; o do Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT), senador eleito; o da Educação, Camilo Santana (PT), senador eleito. Mesmo as pastas destinadas a partidos de centro também prestigiaram mais o Senado do que a Câmara. Um total de nove ministérios foram destinados igualmente a MDB, PSD e União Brasil.
Das nove pastas destinadas aos partidos de centro, ao menos sete preenchem a "cota do Senado". O MDB emplacou a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, senadora licenciada até o fim de janeiro, quando acaba o mandato; o das Cidades, Jader Filho, herdeiro do senador Jader Barbalho (MDB-PA); e o dos Transportes, Renan Filho, senador eleito e herdeiro do senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Os ministros do PSD são o da Agricultura, Carlos Fávaro, senador licenciado; o de Minas e Energia, Alexandre Silveira, senador licenciado até janeiro, quando encerra seu mandato; e o da Pesca, André de Paula, deputado federal licenciado. Os três ministros do União Brasil são o das Comunicações, Juscelino Filho, deputado federal licenciado; a do Turismo, Daniela Carneiro, deputada federal licenciada; e o da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, ex-governador do Amapá.
O ministro da Pesca e o das Comunicações são os únicos apontados como integrantes de uma "cota da Câmara" entre os partidos de centro, que são importantes para a construção da base de Lula no Congresso. Até então 2º vice-presidente da Câmara e ex-líder do PSD, André de Paula representa a bancada de deputados federais de seu partido no primeiro escalação do governo. Juscelino Filho, por sua vez, tem uma relação de proximidade com Lira e o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento (BA).
Contudo, há deputados no União Brasil que não consideram Juscelino como um ministro da "cota da Câmara". Alguns afirmam que houve influência do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Ele foi o responsável pela indicação de Góes ao Ministério da Integração. O ex-governador do Amapá atualmente é filiado ao PDT. Mas, por acordo político selado com o conterrâneo, vai se filiar ao União Brasil.
A influência de Alcolumbre sobre Lula também leva deputados do União Brasil a desconsiderarem a ministra do Turismo, pivô da primeira crise do governo Lula, como uma indicação da bancada do partido na Câmara. "A indicação da Daniela surgiu porque o governo precisava de uma mulher e a [senadora eleita] Dorinha [União Brasil-TO] não tinha topado [ingressar no governo]. E aí a Daniela foi 'pinçada' [para ser ministra[", diz um dirigente do partido. Em razão disso, uma parte dos deputados da legenda diz que nenhum dos dois ministros oriundos da Câmara contempla a bancada.
Por que a escolha de Lula gera incômodo em bancadas na Câmara
A ocupação de ministérios por meio de acordos políticos é uma praxe para as composições partidárias e a construção de uma base governista no presidencialismo de coalizão. A disputa para assegurar cargos a apadrinhados na máquina estatal, em troca de apoio no Congresso, faz parte do funcionamento desse sistema.
No caso da definição feita por Lula em sua equipe ministerial, Lira, aliados próximos e bancadas partidárias consideram que o governo petista priorizou claramente o Senado para assegurar a reeleição do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), na eleição interna marcada para 1.º de fevereiro. O PSD, MDB, União Brasil e o PT elegeram, respectivamente, as segunda, terceira, quarta e quinta maiores bancadas no Senado. O PSB elegeu apenas Flávio Dino, ministro da Justiça.
A distribuição de ministérios é avaliada com ressalvas e críticas por lideranças na Câmara de partidos de centro e até do PDT. "É uma coisa que ninguém compreendeu direito por que o Lula pouco ouviu e contemplou os deputados e tirou tanta gente do Senado se a base lá já estava encaminhada", diz reservadamente um deputado pedetista. A conta é que 10 ministérios para prestigiar 81 senadores é desproporcional em relação aos 513 deputados na Câmara, que fica contemplada por nove ministros.
Mesmo a nomeação do ministro da Previdência, Carlos Lupi, presidente nacional do PDT licenciado, é alvo de críticas. "Se perguntar para todos os deputados do PDT, tenho certeza que a maioria não queria o Lupi, muito menos a Previdência", diz o parlamentar pedetista. Diferentemente do PDT, as bancadas do PT, PSB, Rede e Psol na Câmara foram contempladas.
Alguns deputados do MDB também questionam as escolhas dos ministros. O mesmo ocorre no União Brasil. "Não houve uma discussão com o partido e a bancada [da Câmara] para definir pastas, se aceitaríamos ou não. Foi tudo meio de supetão, e o [Luciano] Bivar [presidente do União Brasil] acabou entrando no jogo em cima da hora. Agora, o Bivar vai trabalhar para organizar a casa", diz um dirigente do partido.
A situação no PSD na Câmara não é muito diferente. Uma liderança do partido reconhece André de Paula (ministro da Pesca) como uma indicação que atende à bancada na Casa. Ele afirma que o presidente nacional da legenda, Gilberto Kassab, buscou acomodar as bancadas tanto da Câmara quanto do Senado. Porém, essa liderança do PSD diz que não houve abertura para a possibilidade de discussão e escolha de uma pasta pretendida pelos deputados do partido. Há, inclusive, quem desdenhe do Ministério da Pesca por entender se tratar de uma pasta com menor capacidade orçamentária em relação a outras ocupadas por indicados do PT.
Por que o primeiro escalão ministerial de Lula também desagrada Lira
O incômodo de deputados das bancadas do PDT, MDB, União Brasil e PSD também desagrada o presidente da Câmara. Arthur Lira tem aliados próximos desses partidos. Além disso, ele conta com os votos dessas bancadas para sua recondução ao cargo – bem como os de parlamentares de outras legendas que, por ora, ainda não estão contempladas na Esplanada dos Ministérios.
De maneira particular, Lira ficou incomodado com a decisão de Lula em barrar a indicação do líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA), ao Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. O deputado tinha o apoio do presidente da Câmara e de seu entorno político, e de uma parcela da bancada de deputados de seu partido.
Por indicação de Lira, Elmar relatou a PEC Fura-Teto e atuou junto às outras bancadas partidárias para convencer e obter votos para a aprovação da matéria, de interesse de Lula. Nas negociações com o então presidente eleito para aprovar a PEC, o presidente da Câmara manifestou seu desejo de que Elmar fosse escolhido como ministro.
O objetivo de Lira era que Elmar ficasse com o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional ou o das Cidades, que na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foram unificadas no Ministério do Desenvolvimento Regional. As pastas são consideradas estratégicas para os partidos por serem responsáveis pela em condução de políticas públicas nos municípios que dão visibilidade política – como saneamento, segurança hídrica e obras, inclusive as do programa Minha Casa Minha Vida.
O entorno político de Lira diz que o comando de ao menos um desses ministérios por um aliado do presidente da Câmara também ajudaria a emplacar indicados em estatais, como a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) – que, no governo Bolsonaro, foi comandada por um apadrinhado de Elmar.
Aliados de Lira comentam que, sem musculatura na administração pública direta e indireta de Lula, o presidente da República corre o risco de perder a força que atualmente tem na Câmara – que foi construída, em grande medida, por uma aliança do petista com Lira.
Segundo aliados, Lira teria uma base pessoal composta por 150 deputados fiéis a ele – o equivalente a cerca de 30% da Casa, que é composta por 513 parlamentares. Outros afirmam que sua base é ainda maior e, dependendo da votação, chegaria a 200 deputados. Sem os ministérios cobiçados pelo presidente da Câmara e toda a estrutura de cargos, o apoio da base dele a Lula fica em xeque.
Lira e os aliados mais próximos do União Brasil não negam o mal-estar com Lula pela nomeação de Waldez Góes ao Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional em detrimento de Elmar. Outros no União Brasil atribuem a decisão a resistências do PT e à falta de coesão interna no partido. "O Bivar empoderou o Davi [Alcolumbre] e o Elmar na discussão com o Palácio [do Planalto] e os caras não fizeram jogo coletivo. Foi algo meio individual. Quando a bola girou, não tinha mais como voltar atrás", diz uma liderança da legenda.
Como fica a relação entre Lula e as bancadas na Câmara
Lideranças mais independentes em relação a Lira e da esquerda não petista avaliam que, na prática, a equipe ministerial construída por Lula enfraquece os poderes do presidente da Câmara. "O Arthur ainda vai ter um protagonismo importante. Mas vai perder uns 50% de força", diz um dirigente partidário do União Brasil favorável à composição do partido com o governo.
A desidratação a Lira não inviabiliza, porém, sua reeleição à presidência da Câmara. A Gazeta do Povo conversou com dirigentes partidários e lideranças na Câmara do União Brasil, PSD, MDB e PDT e, de maneira unânime, todos afirmam que a tendência é de que Lula e os partidos cumpram os acordos de apoiar a recondução de Lira à presidência da Casa – o que inclui o apoio da federação partidária formada por PT, PCdoB e PV.
Os mais independentes em relação a Lira avaliam, porém, que, embora seja reeleito, o presidente da Câmara terá dificuldades para emplacar um sucessor nas eleições de 2025. Esses deputados acreditam, inclusive, que essa é a intenção de Lula ao não dar tanto poder a Lira com a possibilidade de distribuição de cargos a aliados.
Mas o entorno político de Lira alerta que, se for reeleito, será ele quem definirá os primeiros relatores dos projetos mais importantes do começo do governo na Câmara – e isso dará poder de negociação ao presidente da Casa na relação com Lula.
Dentre os primeiros projetos de Lula estão a proposta a ser elaborada pela equipe econômica da nova âncora fiscal que substituirá o teto de gastos e a a medida provisória (MP) que reestrutura os ministérios. Pela alternância das Casas, também provável que o relator do Orçamento de 2024 deve ser um deputado indicado por Lira.
Aliados acreditam que Lira possa usar essas relatorias para negociar com Lula, mas não acreditam que ele tentaria alguma retaliação ao petista. "Ele [Lira] não puxa a faca assim. Também não teria por que fazer isso agora. É um cara habilidoso. Não foi à toa que virou presidente [da Câmara]. E tem totais condições de ser reeleito; os acordos estão mantidos", diz um parlamentar. "Os deputados não foram muito ouvidos pelo governo, mas não significa que vai ter uma ruptura, ou que o Arthur vai se afastar o PT. Ainda há espaço para negociações", acrescenta outro aliado.
Lula tem sinalizado o desejo em acomodar aliados em cargos de segundo escalão para ampliar a base no Congresso e algumas lideranças na Câmara acreditam que essa pode ser uma solução para evitar rusgas entre ele e Lira.