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O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), rompeu o silêncio nesta quarta-feira (27) e criticou duramente o indiciamento dos deputados Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB) pela Polícia Federal (PF). Ele disse que "não permitirá que tentativas de criminalizar discursos parlamentares fragilizem o Congresso e o Estado Democrático de Direito". O discurso incisivo de Lira coloca pressão sobre o procurador-geral da União, Paulo Gonet, que decidirá se arquiva o caso ou apresenta a denúncia contra os deputados nas instâncias superiores.
Lira reforçou a importância da imunidade parlamentar como "garantia constitucional fundamental para o exercício do mandato", após pressão de líderes partidários e deputados por uma postura pública do presidente da Casa contra o que classificam como abuso de autoridade da PF.
Van Hattem e Silva foram acusados de calúnia e injúria contra o delegado da PF Fábio Shor, que conduz inquéritos de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como seu ex-assessor Filipe Martins. O deputado gaúcho acusou o policial de usar um relatório com dados falsos para manter Martins preso.
Em seu discurso, Lira destacou que a liberdade de manifestação na tribuna é "inegociável" e alertou para o risco de um "retrocesso perigoso" na relação entre os Poderes. "A imunidade material é um pilar do Estado Democrático de Direito, e não aceitaremos que tentem fragilizá-la", completou.
A líder do Novo, Adriana Ventura, classificou o indiciamento como mais um abuso de autoridade por parte do judiciário e disse que espera que a imunidade parlamentar seja respeitada e o processo, arquivado. "A bola está nas mãos do procurador-geral da República. Espero que ele arquive, preservando a imunidade. Não podem calar esse Parlamento", afirmou Ventura.
O presidente do Novo, Eduardo Ribeiro, afirmou que o partido buscará todos os meios jurídicos e políticos para reverter esse absurdo cometido contra parlamentares. Van Hattem esteve na PGR junto com o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), o 2º vice-presidente da Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), e seu advogado, Alexandre Wunderlich.
Cavalcante, que representou a Mesa Diretora da Câmara, afirmou que conta com o bom senso do procurador-geral da República. "Este é um caso seríssimo. Nós sabemos o bom senso do Dr. Paulo Gonet neste caso e esperamos que a Constituição realmente tenha a sua validade com a imunidade na tribuna”.
Marinho afirmou que "as críticas podem e devem ser combatidas pela verdade, pelo contraditório, pela discussão, pela alternância de ideias, e não querendo calar, amordaçar o parlamento brasileiro”.
Na reunião com Gonet, a defesa de van Hattem reiterou que "não há nenhum ilícito penal". "É um fato tecnicamente atípico e um caso de visível arquivamento com base na imunidade parlamentar”. À Folha de S. Paulo, Wunderlich disse esperar que o Ministério Público arquive o caso. "A fala do parlamentar foi de denúncia, de fiscalização e tem nexo de causalidade com a questão política do exercício do mandato", disse.
Quais são os próximos passos no caso van Hattem e Cabo Gilberto
A partir do recebimento do indiciamento, a Procuradoria-Geral da República examina as provas e elementos apresentados no inquérito policial. O indiciamento feito pela autoridade policial não é definitivo, é apenas uma declaração de que existem indícios de crime cometidos pelo investigado.
Caso a PGR considere que as provas são suficientes para configurar crime, a procuradoria apresentará denúncia ao tribunal competente – no caso dos parlamentares o Supremo Tribunal Federal (STF) ou Superior Tribunal de Justiça (STJ). O procurador também pode decidir pelo arquivamento do caso, se considerar que as provas não são suficientes ou que os fatos apresentados não configuram crime, ou ainda pedir novas investigações ou complementações ao inquérito antes de decidir.
Indiciamento fere a Constituição e afronta liberdade de expressão
Na opinião do jurista e professor Ives Gandra, o indiciamento de dois deputados federais por falas na tribuna da Câmara, em pleno exercício de seus mandatos, "é uma violência ao artigo 53 da Constituição", que garante a inviolabilidade de quaisquer palavras dos parlamentares eleitos.
"Cada vez que um parlamentar é censurado em sua manifestação, principalmente na tribuna do Parlamento, esta censura se estende a dezenas ou centenas de milhares de brasileiros", completou o jurista.
O jurista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, disse à Gazeta do Povo que não há mais segurança jurídica e qualquer parlamentar pode se tornar investigado por qualquer coisa, ao se referir ao indiciamento dos deputados por críticas à atuação de um delegado. "Isso torna o político refém da Corte e sequestra a autonomia do Parlamento", pontuou.
Para Marsiglia, além de ser uma afronta a uma garantia constitucional, o indiciamento dos deputados van Hattem e Silva "amplia de forma nunca vista a interferência na liberdade de expressão do Parlamento".
A advogada Karina Kufa, que já defendeu nomes de direita como Bolsonaro e o ex-deputado Daniel Silveira, destacou à reportagem que a previsão da imunidade é fundamental para a manutenção do estado democrático de direito.
"Os representantes do povo devem ser livres para apresentar pensamentos, inclusive aqueles que são polêmicos, considerando o momento social ou político. Isso porque é no Legislativo onde são discutidas as leis que serão regidas no nosso país, e daí não teria a mínima lógica que eles tivessem as suas ideias e propostas tolhidas por um outro poder", completou, referindo-se ao Judiciário.
Ela lembra que o próprio STF vinha interpretando a imunidade desta forma até 2019. Karina explicou que, até aquele ano, os ministros consideravam o que está escrito na Constituição como uma garantia do mandato, e as falas dos parlamentares não eram questionadas nem mesmo fora da tribuna.
Foi o que aconteceu com o senador Jorge Kajuru, em 2022, quando o STF afastou a imunidade do parlamentar e o tornou réu por ofensas feitas nas redes sociais a um senador e a um ex-deputado. "A jurisprudência do STF, no caso Kajuru, ressalvava falas da tribuna, agora nem isso", lamentou Marsiglia.
Pouco antes, o plenário do STF já havia relativizado essa proteção ao condenar o então deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) em razão de insultos e ameaças aos ministros da Corte. No dia seguinte à condenação, Bolsonaro, ainda na presidência, decretou o perdão de sua pena, por considerar que a liberdade de expressão é “pilar essencial da sociedade”. O perdão, porém, foi anulado posteriormente pelos ministros.
Karina Kufa afirmou que Corte passou a deslocar a competência para a primeira instância de todos os processos contra os parlamentares por opiniões, desde que não tivessem relação com o mandato. A advogada relatou também que, mais recentemente, o STF está puxando a competência de todos os processos contra parlamentares com fundamento no mesmo artigo 53 da Constituição, "para que eles respondam por todos os supostos crimes que o mesmo artigo diz que eles são imunes", o que demonstra que a regra está sendo violada rotineiramente.
"Isso não fere só o artigo 53, mas o artigo que trata do estado democrático de direito e soberania popular, ao impedir que o povo possa, através dos seus representantes, defender ideias e propostas de melhoria da sociedade. Não existe estado democrático sem liberdade", concluiu Kufa.
"No lugar desses processos serem extintos imediatamente, com base nesse fundamento constitucional, estão deslocando competências, ora para a primeira instância, ora para o STF, de uma maneira subjetiva que, à primeira vista, não parece ser transparente", ressaltou a advogada.
Procuradoria da Câmara afirma que processo é "perseguição política"
Assim que os deputados foram intimados a depor na Polícia Federal, num inquérito sigiloso relatado pelo ex-ministro da Justiça e agora ministro do STF, Flávio Dino, a Procuradoria da Câmara se manifestou em nota dizendo que o processo é claramente uma forma de "perseguição política".
Segundo entendeu a Procuradoria da Câmara, a fala do parlamentar está protegida pela inviolabilidade material garantida pela Constituição Federal e, portanto, investigações desse tipo podem criar um ambiente de “autocensura no Parlamento”.
O indiciamento dos deputados gerou um clima de indignação na Câmara e no Senado, com diversos parlamentares manifestando solidariedade tanto nos plenários das Casas quanto nas redes sociais, com muitas críticas à interferência do judiciário no parlamento e nas atividades de deputados e senadores.