Lula adapta diferentes perfis de figuras políticas para reescrever a biografia e atingir seus objetivos

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 77 anos, é um personagem intrigante. Ao longo da sua longa carreira, o mutante Lula se destacou como forte competidor e influenciador nas eleições presidenciais desde 1989, dividindo o país com carisma e embuste, sem nunca abandonar o pragmatismo. No atual terceiro mandato como presidente, ele não poupa elogios a si mesmo, irradiando autoconfiança e determinação para reescrever a própria biografia, mesmo diante de sérias e incontornáveis contradições. Para alcançar esse intento, o petista busca adaptar seu perfil ao de outras figuras políticas.

As personalidades que Lula busca espelhar são governantes cujas conquistas emblemáticas para a imagem pública ele parece invejar. A principal delas é Nelson Mandela (1918-2013), ex-presidente da África do Sul, ícone da luta contra o Apartheid e agraciado com o Nobel da Paz. Assim como ele, Lula enfrentou adversidades e prisões, experiências que ele usa para forjar o papel de resiliente e redentor. Recentemente, afirmou que Mandela é o líder "mais forte" que conheceu. Em busca do seu próprio Nobel, Lula investiu em iniciativas diplomáticas fracassadas, como as para negociar o fim do programa nuclear do Irã (2009) e mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia.

Outra legenda política de países em desenvolvimento a quem Lula tenta se grudar é a de José Mujica. O ex-presidente uruguaio é conhecido por um estilo de vida explicitamente simples e abnegado, por priorizar políticas sociais e por combater a cultura do consumismo. Lula sempre buscou trazer a imagem de Mujica para perto de si para mostrar sintonia e somar apoios na promoção da quase sempre tumultuada integração política e econômica do Mercosul. Em seu atual mandato, os dois se visitaram nos respectivos países, sendo que Lula fez questão de ser fotografado no Fusca de Mujica.

No último dia 26, em Angola, o presidente brasileiro disse em entrevista que “não era frustrado por ser pobre”, apesar de ter patrimônio oficialmente declarado na casa de R$ 7,4 milhões.

A autointitulada “alma mais honesta do Brasil” tem ainda investido na proximidade com outra figura latino-americana de perfil e discurso franciscano, o Papa Francisco, que o teria inocentado de problemas na Justiça dos homens, por meio de conversas e encontros tornados públicos.

Esforço para reabilitar Dilma visa ampliar simpatia da base petista

Em um caso raro de criador encontrar inspiração na sua criatura, Lula começou o terceiro mandato disposto a resgatar a figura pública da ex-presidente Dilma Rousseff e fazer da sua nova gestão uma continuadora da “nova matriz econômica”. Além de investir fortemente na reabilitação de Dilma, cuja trajetória de mandato e meio foi marcada pelo maior desastre econômico da história do país, culminando no seu afastamento do cargo, Lula quer emplacar a mesma narrativa que faz de si de político inocentado de seus crimes graças a tardias revisões da Justiça. Neste sentido, iniciou um movimento de "reparação histórica" e de "anulação" do impeachment de Dilma.

Mentor e apoiador da sucessora, primeira mulher a ocupar a Presidência do Brasil, Lula teve com ela uma relação de altos e baixos ao longo dos anos desde que lhe passou a faixa presidencial. Mas a agora chefe do Banco do Brics, cargo alcançado graças à influência do presidente brasileiro, parece sintetizar para ele a chave para aprofundar a sua conexão com os políticos nacionais e estrangeiros que cultivam uma visão mais à esquerda, de intervencionismo estatal na economia. Além disso, o resgate de Dilma e de auxiliares dela, com relativo sucesso, visa recompor as perdas para o legado petista após a ruptura que levou ao período de interrupção nos governos reformistas de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).

Para consolidar a sua trajetória na história política, Lula também não deixa de buscar associação com ele próprio quando ainda figurava como líder sindical dos anos 1980, e logo depois, fundador do PT. Essa fase moldou a sua habilidade de mobilizar bandeiras de interesses de trabalhadores, mas também a de negociar a portas fechadas com os donos do capital. A volta à figura do metalúrgico líder de greves históricas do ABC paulista o ajuda a tentar mostrar alguma coerência e um trajeto biográfico e mitológico.

Defesa dos ditadores amigos corrobora sua face autoritária

Apesar das pretensões em representar todas essas figuras ao mesmo tempo, na prática, Lula mostra mesmo o desejo de emular Hugo Chávez, com quem foi muito próximo ao longo dos dois primeiros mandatos. A admiração e amizade do presidente brasileiro pelo falecido presidente venezuelano alcança o leque bolivariano de outros parceiros líderes ao longo dos anos. Daniel Ortega (Nicarágua), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e o casal argentino Néstor e Cristina Kirchner compuseram a onda progressista na América Latina que Lula quer agora reestruturar para impedir revezes.

De Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro, Lula busca uma síntese de suas personas, tomando emprestado a sanha autoritária, expressada na defesa de Ortega e do próprio Maduro como sendo governantes. Posturas e propostas de lei também vão nessa direção, tais como o aparelhamento da máquina pública, da cúpula do Judiciário e de órgãos de controle e os meios de cercear a liberdade de expressão.

Na movimentação mais recente de viés antidemocrático, Lula sugeriu que as decisões e votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) fossem protegidos pelo sigilo. A ausência de transparência tem sido uma das principais marcas de seu atual governo. Para completar, seja no Foro de São Paulo ou atuando diretamente em favor da eleição de candidatos aliados de esquerda em outros países, Lula parece querer levar adiante o sonho de Chávez de construir região governadas por autocratas populistas.

Especialistas veem pragmatismo como a característica dominante

De acordo com o analista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Bruno Carazza, a capacidade de Lula de agir conforme a situação manda se sobrepõe ao seu perfil de líder de esquerda. Isso fica evidente na maneira como ele está disposto a abrir a mão de apoiadores de longa data, como a atleta Ana Moser e o ex-governador de São Paulo Márcio França (PSB), em seu projeto de retornar ao poder. Isso tudo para acomodar políticos do Centrão no ministério, visando votações favoráveis na Câmara.

Carazza destaca que, dentre as características pessoais que explicam o desempenho eleitoral de Lula, está a sua história de vida dedicada à luta contra a miséria, bem como a sua habilidade de comunicação com cidadãos de renda mais baixa. “No entanto, do ponto de vista político, desde os seus dias à frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista até os seus três mandatos como presidente, o traço distintivo de Lula como líder é o seu pragmatismo”, sublinhou.

Após passar 580 dias na prisão na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, Lula aprendeu que os ministros do STF têm o poder de moldar o destino de um político, para o bem ou para o mal.

“Assim, tendo a oportunidade de nomear pelo menos dois novos membros do Supremo, Lula não hesitará em escolher alguém em quem confie, mesmo que os seus eleitores de esquerda defendam escolhas mais progressistas ou mais representativas da diversidade social”, observou.