Os vetos ao projeto de lei do marco temporal para demarcação de terras indígenas devem gerar uma nova reação do Congresso Nacional contra o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A bancada do agronegócio já se articula para derrubar os pontos que interessam ao setor e afetam a segurança jurídica dos proprietários de terras. Dos 33 artigos do texto aprovado no Congresso, Lula vetou 24, em partes ou por completo.
Apesar de não ter vetado o projeto por completo, a ação de Lula atendeu parte dos ministros do seu governo, como as ministras do Meio Ambiente, Marina Silva; dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; além do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. Já o titular da Advocacia Geral da União (AGU), Jorge Messias, defendia o veto parcial, mantendo apenas trechos que não confrontassem a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento sobre o tema.
O texto sobre o marco temporal foi aprovado no Senado em 27 de setembro, depois de já ter passado pela Câmara. A aprovação foi uma reação do Congresso Nacional à decisão do STF que julgou a tese do marco temporal como inconstitucional. O veto ocorreu no limite máximo para a ação. Apesar de o anúncio tenha sido feito pelas redes sociais por volta das 18 horas de sexta, a edição extra do Diário Oficial, com os vetos e exposição dos motivos, foi publicada somente após as 23 horas. Caso Lula não tivesse apresentado os vetos na sexta-feira (20), a sanção seria tácita, ou seja, o texto aprovado no Congresso passaria a valer como lei.
Governo vai buscar a manutenção dos vetos, mas bancada do agronegócio deve resistir
Após a publicação dos vetos, membros do governo sinalizaram que buscarão o diálogo com o Congresso Nacional para garantir que os vetos não sejam derrubados. Em nota, a ministra Sonia Guajajara afirmou que seguirá com a articulação, “promovendo os diálogos necessários com o Congresso Nacional, para que todos os vetos apresentados sejam mantidos quando apreciados por deputados e senadores”.
No entanto, os parlamentares da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e os membros da oposição já se manifestaram contrários à decisão de Lula. Os vetos desagradaram, especialmente, a bancada do agronegócio e a avaliação de seus integrantes é que apesar de serem parciais, os vetos descontruíram a proposta.
O presidente da FPA, Pedro Lupion (PP-PR), disse que o "veto parcial" de Lula ao projeto é "praticamente um veto total" e representa um "desrespeito ao Congresso". Lupion disse ainda que a FPA "está mobilizada" para garantir o direito à propriedade no país.
“A postura da bancada do agro sempre foi de diálogo. Nós vínhamos conversando com os integrantes do Palácio do Planalto, para que houvesse um equilíbrio e uma boa relação política. Mas o veto integral ao art. 4º inviabiliza por completo o projeto de lei. Não concordamos com a justificativa de vício de inconstitucionalidade, pois o projeto passou pelas comissões constitucionais da Câmara e do Senado”, afirmou o presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, deputado Tião Medeiros (PP-PR).
Neste sentido, é importante lembrar que a rejeição de veto presidencial exige o voto da maioria absoluta dos deputados e senadores (em sessão conjunta). Ou seja, para conseguir a derrubada dos vetos, serão necessários 41 votos de senadores e 257 votos de deputados.
Contrariando o STF, Lula vetou até mesmo as indenizações
Nem mesmo em pontos em que houve convergência entre a decisão do STF e o texto aprovado no Congresso Nacional o presidente Lula optou pela sanção. É o caso do trecho que fala das indenizações aos proprietários de terras que estavam nas áreas em 5 de outubro de 1988.
Abordado nos artigos 9º e 11º do projeto de lei, o tema das indenizações foi vetado integramente por Lula, apesar do STF ter se pronunciado favorável. “Entendeu o STF que ausente ocupação tradicional indígena na data de promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativo a justo título e posse de boa-fé. Via de consequência, o proprietário possui direito à indenização em dinheiro ou título de dívida agrária, caso seja do seu interesse, em relação à terra nua, inclusive prevendo o direito à autocomposição”, explicou o advogado especialista em direito agrário, Paulo Roberto Kohl.
Ou seja, se mantidos os vetos a esses artigos, os proprietários com áreas escrituradas e títulos de boa-fé, em grande parte, inclusive, emitidos pelo Estado, não terão direito à indenização não só pelas benfeitorias, mas também pela terra nua, ou seja, pelas propriedades em si, como sugeriu o STF.
Apesar da possibilidade de derrubada deste veto no Congresso, na avaliação de Kohl, é possível que o caso seja novamente remetido ao STF. “Caso o veto seja derrubado pelo Congresso Nacional, algum legitimado poderá ajuizar ação direta de inconstitucionalidade, forçando ao STF a se pronunciar sobre a questão”, disse o advogado.
Além disso, para o advogado indígena, Ubiratan Maia, dois dos vetos, em especial, violam o princípio da dignidade da pessoa humana. “O presidente Lula erra grosseiramente ao vetar trechos sobre atividades econômicas e o uso de transgênicos em terras indígenas. Isso fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, disse o advogado.
Apesar de não ter vetado integralmente o artigo que possibilita aos indígenas a realização de atividades econômicas, a avaliação é que a regulamentação da exploração das terras indígenas fica totalmente a cargo da Funai, que muitas vezes sequer tem conhecimento de particularidades de determinadas comunidades indígenas. “Entendo que o Congresso derrubará todos os vetos dele [do presidente Lula]. Ainda temos uma miniguerra política pela frente”, avalia o advogado indígena Ubiratan Maia.
Vetos ao marco temporal ocorreram após suspensão da obstrução no Congresso
O anúncio dos vetos ao projeto de lei do marco temporal ocorreu logo após a suspensão da obstrução articulada por frentes parlamentares do Congresso Nacional, dentre elas a FPA. O movimento de obstrução foi, inclusive, iniciado pela FPA quando o STF derrubou a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Com ele, a bancada queria garantir o respeito às prerrogativas do Congresso Nacional e o fim do ativismo judicial do STF.
O movimento foi suspenso após acordo com presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Em encontro com os principais parlamentares ligados à obstrução, Pacheco sinalizou que estava buscando resgatar as competências do Legislativo e se comprometeu a avançar na tramitação das pautas de interesse da oposição.
"Saímos da obstrução com a certeza que temas caros e importantes para cada um desses representantes das frentes e partidos serão respeitados e pautados como esperamos", pontuou Lupion.
Um dos temas que pode fazer parte das próximas pautas de votação no Congresso é justamente o marco temporal. Além da sessão para derrubada dos vetos, Pacheco também poderá ser pressionado a votar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, que inclui a data de 5 de outubro de 1988 na Constituição, visando reestabelecer o marco temporal para demarcação de terras indígenas.
Em entrevista para o Poder 360, Lupion afirmou que teve uma reunião com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para tratar desta proposta. Com esta PEC, o marco temporal pode voltar a valer, no entanto, a perspectiva é que haja dificuldade para formar maioria para aprovação da matéria. Para a aprovação de PECs são necessários três quintos dos votos de parlamentares, após dois turnos de discussão. Neste caso, são necessários 49 votos favoráveis de senadores e 308 votos de deputados.
Bancada do cocar tenta emplacar lei para proibir marco temporal para demarcação
Enquanto a bancada do agronegócio buscava a sanção do marco temporal, na semana passada, a deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) conseguiu aprovar um projeto de lei para proibir o marco temporal. A aprovação ocorreu na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. O Projeto de Lei 4.566/2023 trata do reconhecimento do Direito Territorial Originário dos Povos Indígenas e fixa o Marco Temporal do Genocídio Indígena.
O objetivo da deputada autora, acolhido pelo relator deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) e pela comissão, é o de vedar expressamente eventual imposição de qualquer “marco temporal” para fins de demarcação das terras indígenas. Além disso, o PL prevê o reconhecimento do ano de 1500 como “marco temporal do genocídio indígena”.
Segundo o relator, o descobrimento do Brasil foi na verdade uma invasão. “Tratando-se, neste ponto, de um reconhecimento histórico sobre o que de fato ocorreu naquela sequência de eventos conhecida como “descobrimento” e que, a bem da verdade, tratou-se de invasão e esbulho”, afirmou o relator Chico Alencar em seu voto.
O projeto ainda precisa ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), mas não precisará passar pelo plenário, se for aprovado. Depois, deverá ser analisado pelo Senado Federal.
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