Lula e o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, durante encontro entre eles na Cúpula da Celac, em março deste ano, em São Vicente e Granadinas| Foto: Bienvenido Velasco/EFE
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Sem posicionamento oficial do Brasil sobre as eleições na Venezuela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se manifestou pela primeira vez sobre o processo eleitoral no país vizinho e minimizou a tensão política em Caracas. Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo classificaram a declaração como mais um erro de Lula. Além disso, a fala do petista vai no sentido oposto ao posicionamento adotado pelo Itamaraty, que espera as atas eleitorais para se posicionar sobre o pleito em que o ditador Nicolás Maduro e o oposicionista Edmundo González disputam a presidência.

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As afirmações feitas pelo presidente brasileiro geraram uma série de críticas de parlamentares de oposição e até mesmo de aliados, como o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso, e o PSB, partido do vice-presidente, Geraldo Alckmin. (Leia mais abaixo.)

“O Tribunal Eleitoral já reconheceu o Maduro como vitorioso, mas a oposição ainda não. Então, tem um processo. Eu vejo a imprensa brasileira tratando como se fosse a Terceira Guerra Mundial, mas não tem nada de anormal. Tem uma eleição, tem uma pessoa que disse que teve 51%, teve outra pessoa que disse que teve 41%, entra na Justiça e a Justiça faz”, disse Lula em entrevista à TV Centro América, afiliada da TV Globo no Mato Grosso, nesta terça-feira (30).

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“É normal que tenha uma briga. Como se resolve essa briga? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo. E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar”, acrescentou o presidente brasileiro.

Na avaliação de especialistas ouvidos pela reportagem, o petista fez afirmações equivocadas sobre o processo eleitoral venezuelano. Além disso, o cientista político Elton Gomes, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), salientou que a recente declaração de Lula sobre a Venezuela se soma a outras problemáticas relacionadas a assuntos internacionais, tais como a guerra na Ucrânia e a contraofensiva israelense na Faixa de Gaza contra o Hamas.

"A declaração do presidente Lula se soma a um grande conjunto de declarações polêmicas no campo da política externa e que foram emitidas pelo mandatário em período mais recente e parecem serem feitas no improviso, natural de líderes populistas", pontua Gomes.

Para Lula, a imprensa brasileira teria supostamente exagerando ao tratar a situação como se fosse "uma terceira guerra mundial", pois, na visão dele, não teve "nada de anormal" no processo eleitoral da Venezuela. "Estou convencido de que é um processo normal", disse o mandatário na mesma em entrevista.

O sociólogo venezuelano Guillermo Pérez também criticou as falas de Lula e ressaltou que não pode ser considerado normal alguém ser declarado vitorioso sem que se apresentem os resultados. Ele ainda fez uma comparação com as eleições presidenciais brasileiras de 2022 para ilustrar esse raciocínio.

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"[Lula] tenta normalizar o que em nenhuma democracia pode ser considerado normal, ou seja, que um candidato seja proclamado vencedor sem mostrar evidências da sua vitória. Imaginando que isso tivesse acontecido no Brasil [em 2022] e o Bolsonaro tivesse se declarado vencedor sem que o Lula saiba quase nada sobre os resultados, ele acharia normal?", questionou Pérez, que está radicado no Brasil há cinco anos.

Segundo o sociólogo venezuelano, Lula também falhou em garantir que a Venezuela teria eleições transparentes, livres e justas, termos que se comprometeu ao assinar o Acordo de Barbados como "fiador de Maduro". "Hoje, com seus comentários, falha também de forma muito evidente em garantir um mínimo de transparência nas eleições venezuelanas", destacou.

Marcada por manobras do regime de Nicolás Maduro para se manter no poder, o resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela é contestado pela oposição, organizações internacionais e diversos países, os quais não reconheceram a declarada vitória de Maduro.

Durante a madrugada da última segunda-feira (29), o órgão anunciou a reeleição do ditador venezuelano com 51% dos votos. De acordo com o CNE, a apuração de 80% das urnas já apontava para um resultado "irreversível". Para o órgão, o segundo lugar no pleito ficou com Edmundo González, da Plataforma Unitária Democrática (PUD), o principal nome da oposição, com 44% dos votos.

O autocrata Nicolás Maduro está à frente da presidência venezuelana há 11 anos e tem controle sobre os principais organismos governamentais do país, inclusive o CNE, que controla e organiza as eleições. Maduro é sucessor de Hugo Chávez, que governou a Venezuela por 13 anos e foi responsável pela ditadura instaurada no país.

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Oposição critica declarações de Lula sobre suposta "normalidade" no processo eleitoral da Venezuela

O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) disse que Lula normalizou a crise política enfrentada pelo país vizinho. “É oficial! Segundo o próprio Lula, Maduro foi eleito legitimamente! Normalizar o que está acontecendo na Venezuela, é coisa de amigo do peito!”, disse ele no X.

A senadora Tereza Cristina (PP-MS) classificou as declarações do presidente como “uma vergonha completa”. Para a parlamentar, Lula “desmoraliza o Itamaraty” e desrespeita o “povo e os políticos venezuelanos”.

Além deles, a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) disse que o chefe do Executivo brasileiro “saiu do muro para o lado da tirania”.

A também deputada Rosangela Moro (União-SP) afirmou que, "no metaverso do Lula, Maduro é um democrata”. “Não dá para justificar o injustificável! Lula ama um ditador. Relativiza ditadura. Nesse momento a pressão internacional é crucial. Mas não podemos esperar isso da Brasilândia”, afirmou Rosangela.

Para o deputado Nikolas Ferreira (Pl-MG), as falas do presidente soaram como “piadas da democracia relativa”. Ele criticou a relação entre o petista e o ditador, que são aliados. O deputado compartilhou um vídeo que mostra declarações de Lula em favor de Maduro. “Venezuelanos, não esqueçam de Lula, amigo de Maduro que sempre o ajudou e foi seu aliado”, afirmou.

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A deputada Carla Zambelli (PL-SP) disse que Lula “é cúmplice de ditaduras e deste mais novo golpe”. “Se isso é ‘processo normal’ para ele [Lula], imagina o que não é normal! E ainda se diz ‘defensor da democracia’. Patético!”, afirmou Zambelli.

Já para o deputado Mauricio Marcon (Podemos-RS) o petista “passou pano para o ditador sanguinário da Venezuela”.

Brasil ainda não se posicionou oficialmente; PT diz que eleição foi “jornada pacífica e democrática"

Apesar das declarações de Lula, o Brasil ainda não se posicionou oficialmente sobre o resultado das eleições no país vizinho. O Ministério das Relações Exteriores informou na última segunda-feira (29) que iria aguardar a divulgação de "dados desagregados por mesa de votação" para se posicionar sobre o pleito. Não houve nova manifestação da pasta sobre o assunto desde então.

As atas têm sido cobradas constantemente ao CNE por diferentes órgãos e países para comprovação do resultado eleitoral. O órgão anunciou o resultado do pleito, mas sem a devida comprovação dos dados divulgados. A suspeita sobre os números informados ganhou ainda mais peso depois que o regime chavista tirou o site do CNE do ar, inviabilizando o acesso aos documentos eleitorais.

"Na hora em que estiveram apresentadas as atas e for consagrado que as atas são verdadeiras, todos nós temos a obrigação de reconhecer o resultado eleitoral na Venezuela", disse Lula nesta terça (30). O presidente Lula informou ainda que seu assessor especial para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim, cobrou as atas de Maduro.

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"Na conversa com o Maduro foi dito o seguinte, o Celso perguntou para ele: “bom, as coisas só vão ficar definidas quando apresentarem a ata”. Ele falou: “eu vou apresentar a ata”. Só não disse quando, mas disse que vai apresentar. Na conversa com a oposição, a mesma coisa. Ele [Edmundo González] disse que tem 70% das atas. Então nós tivemos um processo eleitoral que teoricamente foi pacífico. Não houve violência, não houve nada", disse o mandatário em entrevista à TV Centro América.

Lula afirmou ainda que a divulgação das atas é capaz de "dar fim à briga" entre Maduro e os membros da oposição, que contestam o resultado do pleito. "Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com recurso e vai esperar a Justiça tomar o processo", sugeriu o mandatário brasileiro.

Na avaliação de Guillermo Pérez, a declaração de Lula ignora o fato de que os órgãos governamentais da Venezuela estão sob influência de Nicolás Maduro. "O pior talvez seja que o comentário de Lula é muito cínico ao dizer que se existe um conflito entre as atas da oposição e as atas do governo, isso pode ser resolvido com um recurso na Justiça, quando todo o mundo sabe que o Tribunal da Venezuela não é um órgão independente", avaliou.

Além disso, ainda existe a expectativa ainda sobre o posicionamento oficial do Brasil sobre os resultados das eleições venezuelanas divulgados pelo CNE. Com o retorno de Amorim ao Brasil, o petista deve se reunir com o assessor ao longo desta quarta-feira (31) e alinhar um parecer brasileiro.

Já o Partido dos Trabalhadores - sigla de Lula - reconheceu a "reeleição" do ditador Nicolás Maduro e classificou o processo eleitoral no país vizinho como uma “jornada pacífica, democrática e soberana”. A nota foi divulgada na noite de segunda-feira (29).

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"Temos a certeza de que o Conselho Nacional Eleitoral, que apontou a vitória do presidente Nicolás Maduro, dará tratamento respeitoso para todos os recursos que receba, nos prazos e nos termos previstos na Constituição da República Bolivariana da Venezuela", afirmou o PT.

Aliados criticam posicionamento de Lula e do PT

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), divergiu do posicionamento oficial do próprio partido e criticou as eleições na Venezuela. Randolfe se filiou ao PT no último dia 18, após passar mais de um ano sem partido. Para o parlamentar, o pleito não teve “idoneidade”.

“Uma eleição em que os resultados não são passíveis de certificação e onde observadores internacionais foram vetados é uma eleição sem idoneidade”, disse o senador à CNN Brasil. Ele afirmou que o regime vigente na Venezuela é “autoritário” e “tanto Maduro quanto a oposição carecem de legitimidade”.

Já o presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Carlos Siqueira, disse que a legenda condena as “violações perpetradas pelo regime chavista”. O posicionamento da sigla do vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, contraria o que é defendido pela sigla de Lula.

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“O PSB condena as violações dos direitos humanos e democráticos perpetradas pelo regime chavista. Consideramos esse regime uma ditadura e, como tal, sabíamos que ele não realizaria uma eleição livre, transparente e democrática”, disse Siqueira no X.

Além deles, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), criticou nesta terça-feira (30) a falta de transparência nas eleições da Venezuela. Em nota, Pacheco destacou que “toda violação a democracia deve ser apontada, prevenida e combatida, seja contra quem for”. O senador defendeu que a "luta pela democracia não nos permite ser seletivos e casuístas".

Lula e Biden conversam sobre situação da Venezuela

No mesmo dia das declarações dadas pelo petista, Lula e o presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, conversaram por telefone sobre a situação da Venezuela e outros temas.

O governo estadunidense disse nesta terça-feira (30) que Lula e Biden "compartilharam a perspectiva de que o resultado das eleições venezuelanas representa um momento crítico para a democracia no hemisfério, e se comprometeram a manter uma coordenação estreita sobre o assunto".

Já o Planalto informou que Lula disse a Biden que tem “mantido acompanhamento permanente do processo eleitoral por meio de seu Assessor Especial, Celso Amorim, enviado a Caracas”. Ainda de acordo com a pasta, Lula reiterou a posição do Brasil de “seguir trabalhando pela normalização do processo político no país vizinho, que terá efeitos positivos para toda a região”.

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Repressão à oposição e protestos marcam o pós-eleições na Venezuela

Desde o resultado do processo eleitoral divulgado pelo CNE, a Venezuela tem registrado vários protestos. Milhares de venezuelanos saíram às ruas, em diversas regiões do país, para contestar a reeleição de Nicolás Maduro. A repressão das forças de segurança chavistas, contudo, deixa as manifestações distante de serem pacíficas e seguras.

Segundo organizações não governamentais, ao menos 11 pessoas morreram e 84 ficaram feridas durante os protestos. O Ministério Público local ainda contabilizou 749 prisões e 48 policiais e militares feridos, um deles foi morto “por tiros disparados pelos manifestantes”.

As novas manifestações ocorrem após numerosos protestos realizados na segunda-feira em várias regiões do país em rejeição ao resultado eleitoral anunciado pelo CNE. A escalada da tensão levou o Ministério das Relações Exteriores a emitir um alerta de segurança aos brasileiros que estão na Venezuela.

A eleição foi marcada por denúncias de perseguição a opositores do ditador e cerceamento da imprensa pelo regime chavista. Ainda no domingo (28), dia em que os venezuelanos foram às urnas, três membros do comando de campanha presidencial da Plataforma Unitária Democrática (PUD), principal coalizão de oposição ao regime venezuelano, foram presos.

Países questionam processo eleitoral na Venezuela

Países latino-americanos contestaram os resultados divulgados pelo CNE. Os governos de Argentina, Uruguai, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru e República Dominicana expressaram, por meio de nota, preocupação com o desenvolvimento das eleições presidenciais no país.

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Em um comunicado conjunto, os nove países exigem uma revisão completa dos resultados eleitorais e pedem uma reunião urgente da Organização dos Estados Americanos (OEA). “A contagem dos votos deve ser transparente e os resultados não devem levantar dúvidas”, afirmou o comunicado.

O Chile também não reconheceu a reeleição de Maduro. O presidente Gabriel Boric, com alinhamento à esquerda, adotou posicionamento parecido com o do Itamaraty e disse que não reconheceria os resultados até que fosse "comprovados". O posicionamento foi chileno que foi criticado pelo chanceler de Nicolás Maduro, Yvan Gil, nas redes sociais.

Lula ignorou ataques de Maduro ao Brasil e enviou assessor para acompanhar eleições na Venezuela

Às vésperas das eleições na Venezuela, a tensão eleitoral no país acabou respigando no Brasil, quando o ditador Nicolás Maduro direcionou ataques a Lula e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). As acusações que fez contra o TSE, ao afirmar que o Brasil não audita suas eleições, geraram uma reprimenda do órgão contra o ditador chavista.

Em resposta aos ataques, o TSE suspendeu ainda o envio de servidores ao país para acompanhar as eleições. O órgão, assim como outras entidades brasileiras, foi convidado para ir à Venezuela acompanhar o processo de votação.

O presidente Lula também entrou na mira de ataques do autocrata. O venezuelano sugeriu que o petista tomasse "chá de camomila" depois que se declarou "assustado" com as afirmações de Maduro sobre o suposto banho de sangue diante do resultado das eleições. Os ataques, contudo, não geraram qualquer manifestação oficial do Itamaraty ou do Planalto. Interpretados como falas de campanha, Lula ainda enviou um assessor a Caracas para acompanhar o processo eleitoral.

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Lula designou o ex-chanceler Celso Amorim para a missão na Venezuela. O assessor chegou à Caracas na última sexta-feira (26) e retornou ao Brasil nesta segunda (30), quatro dias depois. Na capital venezuelana, Amorim se reuniu com Nicolás Maduro, com Edmundo González, e outros atores do governo venezuelano.

O assessor de Lula foi o único representante de governo que acompanhou as eleições na Venezuela e manteve contato com ambos os lados durante o processo. Celso Amorim foi ainda a figura que negociou, ao lado da Venezuela, o Acordo de Barbados, instrumento que buscou viabilizar eleições justas e democráticas na Venezuela por meio da negociação com outros países, o regime de Maduro e membros da oposição.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]