Ao ser forçado a adiar sua viagem à China com uma grande comitiva de políticos e empresários, prevista inicialmente para o último sábado (25), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai completando três meses de governo marcados por crises e frustrações. Em seus quase 90 dias de mandato, ele acumula conflitos diversos no Congresso, dentro do próprio governo e na sociedade, que precisam ser resolvidos logo para preservar a governabilidade do país.
Lula tem pressa para resolver as crises. O desemprego voltou a subir, as estimativas de crescimento econômico pioram, o projeto de âncora fiscal sequer foi apresentado e, para completar, a oposição tem conseguido argumentos para validar suas críticas ao Planalto. Até agora, foram protocolados seis pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados. Esse cenário é estimulado pelas muitas polêmicas geradas por reações públicas do presidente.
A crise mais recente foi a declaração de Lula questionando a lisura de uma investigação da Polícia Federal, deflagrada nesta quarta-feira (22), que desbaratou um plano da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) para sequestrar e matar autoridades, inclusive o senador Sergio Moro (União-PR) e sua família. "Eu vou descobrir o que aconteceu, porque é visível que é uma armação do Moro", disse Lula durante uma agenda no Complexo Naval de Itaguaí, na quinta-feira (23).
A ilação foi vista como um ataque ao trabalho da PF e da juíza do caso, Gabriela Hardt, do Paraná, e suscitou notas de repúdio de associações de carreira federais. Ao dizer que operação era uma "armação", Lula ainda agravou a crise ao desacreditar o ministro da Justiça Flávio Dino (PSB-MA), que estava a par da investigação havia 45 dias. Ele também contradisse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), que afirmou que era "muito bom ver a Polícia Federal agindo de forma independente".
Um dia antes da operação da PF ser deflagrada, outra das crises de Lula havia ocorrido. O presidente havia dito, em entrevista ao vivo ao portal Brasil 247, que teve vontade de se vingar de Moro enquanto esteve preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, entre 2018 e 2019. "De vez em quando ia um procurador de sábado ou de semana pra visitar e ver se estava tudo bem, entrava três ou quatro, e perguntava ‘tudo bem?’, e eu falava ‘não tá tudo bem, só vai tá bem quando eu f… esse Moro. Estou aqui pra me vingar dessa gente’", disse o presidente. Moro foi quem condenou primeiro Lula por corrupção no processo do Sítio de Atibaia. Depois que a sentença foi confirmada em segunda instância, o petista foi preso.
Lula não consegue ampliar base no Congresso
Mas a lista de imbróglios vai além desses episódios e ganha contornos mais dramáticos ao se constatar a dificuldade do Planalto em construir uma base sólida de apoio parlamentar.
A falta de apoio amplo no Congresso torna ainda mais desafiadora a já complicada definição de um mecanismo substituto para o teto de gastos do governo, e a proposição de uma reforma tributária. Sem avançar nesses dois pontos, o governo continua sem perspectivas críveis para induzir melhora nos declinantes indicadores da economia e, por tabela, ampliar a sua popularidade.
Uma prova de que Lula não conseguiu garantir votos suficientes para seus projetos no Congresso está na incapacidade do Planalto em demover parlamentares de instaurar uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dedicada a investigar atos de vandalismo de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes. A perspectiva é de sua instalação ocorrer após a Semana Santa, na primeira sessão do Congresso neste ano.
Da mesma forma, a articulação do ministro das relações institucionais, Alexandre Padilha, e dos líderes governistas falhou ao não impedir que 16 ministros de Lula fossem chamados para dar explicações sobre diferentes controvérsias Câmara. Os principais destaques são depoimentos que devem ocorrer na Comissão de Fiscalização e Controle (CFC) da Câmara, liderada pela oposição.
Flávio Dino foi convidado para explicar aos deputados a sua visita ao Complexo da Maré, no Rio de Janeiro; Carlos Lupi, ministro da Previdência Social, falará sobre descontos sindicais desautorizados nos pagamentos a aposentados; Carlos Fávaro, que chefia a Agricultura, foi convidado a falar sobre invasões de terras privadas produtivas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); e Marina Silva, do Meio Ambiente, sobre ter dito em um evento que 120 milhões de brasileiros passam fome e sobre o recorde de desmatamento na Amazônia, em fevereiro.
“Eles virão ao colegiado em abril, com exceção de Marina, que deve falar em maio”, informou a presidente da comissão, a deputada Bia Kicis (PL-DF).
Tensão no mercado com ataque do Planalto ao BC se amplia
Lula e seus aliados próximos, como a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), também encamparam uma ostensiva campanha contra a atuação do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, exigindo corte imediato de juros. Porém, o Comitê de Política Monetária (Copom) do órgão definiu na quarta-feira (22) pela manutenção da taxa básica em 13,75% ao ano.
A nota divulgada pelo BC após a decisão avisou com firmeza que, para conter a inflação, talvez este patamar alto siga por período “prolongado”. Essa tensão entre o governo e autoridade monetária vem provocando impactos negativos nos ativos brasileiros nos mercados financeiros.
Na quinta-feira (23), o principal índice da B3, a bolsa brasileira, desabou 2,29% e fechou o dia no menor patamar desde julho de 2022, a 97.926 pontos. O dólar subiu 1,17%, para R$ 5,299, e os juros futuros avançaram.
Essa pressão da ala política do governo contra Campos Neto atrapalha os interesses do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT). O chefe da equipe econômica, mesmo fazendo coro às reclamações, busca estabelecer diálogo institucional com o presidente do BC e com líderes do Congresso, de olho nas reformas econômicas sob sua responsabilidade.
Mas Haddad já dá sinais de que pode estar perdendo a chance de encontrar uma saída negociada. “Considerei o comunicado do Copom muito preocupante, porque chega a sinalizar até a possibilidade da subida taxa de juros, que já é hoje a mais alta do mundo”, lamentou Haddad.
As crises prosperam também quando muitas das soluções sugeridas pelos aliados de Lula para lidar com elas estão sendo adiadas ou rejeitadas pelo próprio presidente, tornando o cenário ainda mais complicado.
Crise institucional entre Senado e Câmara
Além disso, o governo Lula está tendo que lidar com uma guerra aberta entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em torno do rito de tramitação das medidas provisórias (MPs). O confronto escalou na semana passada, com a decisão de Pacheco de obrigar a instalação imediata de comissões para analisar as MPs. A pronta reação de Lira, que conversou com Lula na sexta-feira (24), vai se desdobrar em novos episódios, sem se saber a capacidade real do Planalto em esfriar os ânimos.
Lira defende que os textos das medidas provisórias sejam levados diretamente para o plenário da Câmara e, se aprovados, sigam para votação no Senado. Essa configuração, adotada desde o começo da pandemia, dá mais poderes ao presidente da Câmara, que tem controle sobre quando e quais MPs serão votadas.
Pacheco, por sua vez, defende que a tramitação de uma MP seja feita por meio de uma comissão mista, onde deputados e senadores debatem o texto enviado pelo Executivo, para posteriormente ser votado pelas duas casas – como está previsto na legislação.
O governo Lula está dividido na questão, pois não tem base de apoio suficiente na Câmara e está preocupado com o risco de perda de validade das medidas editadas desde janeiro. Elas têm validade de 120 dias e caducam se não forem aprovadas dentro do prazo.
Essas MPs incluem as ações mais importantes do governo até agora, como a recriação de ministérios, os novos valores do Bolsa Família, os Programas Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos e os esforços iniciais para reduzir o déficit fiscal de mais de R$ 200 bilhões previsto para 2023.
A solução para a crise institucional parece distante se considerar o grau de animosidade entre as duas Casas do Congresso. "Não é o presidente da Câmara que tem espaço no governo e precisa dar satisfação. Se há alguém que tem espaço no governo é o Senado, que não pode atrapalhar a vida do governo e nem do País", desafiou o presidente da Câmara, revelando o nível de antagonismo entre as duas Casas do Congresso. Lira tem pressionado Lula a ceder mais recursos de emendas a deputados, que antes estavam alocados no chamado "orçamento secreto", além de indicações para cargos na Esplanada, autarquias e estatais.
Em paralelo, continuam as discussões em torno de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para mudar o rito das MPs. A ideia de alternar a palavra final entre Câmara e Senado não foi aceita por Lira. Ele quer a manutenção do esquema atual ou elevar a proporção de deputados na comissão mista em relação aos senadores. Um acordo ainda está por ser construído, agora em clima mais tenso.
Brigas internas do governo anulam articulação política
Rodrigo Pacheco, que acompanharia Lula na viagem à China, também ficou no país e terá de enfrentar uma das crises, a do impasse nas votações de MPs. Arthur Lira já informou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao próprio Senado de que não há razão para se votar de duas formas diferentes ao mesmo tempo, na forma usada na pandemia e na que existia antes, definida pela Constituição. Ele desafiou Pacheco a convocar sessão do Congresso para debater o tema.
Semanas atrás, Lula acreditava que conseguiria viajar para a China com Pacheco, Lira e líderes da Câmara e do Senado, oportunidade para amenizar crises e acelerar projetos prioritários do governo, como a reforma tributária e a tramitação do mecanismo que substituirá o teto de gastos do governo.
Além de ter frustrado este plano, Lula não parece interessado em ao menos garantir a autonomia de seu ministro da Fazenda. Haddad queria apresentar uma proposta de limitação de gastos antes da reunião do Copom e da viagem de Lula, mas encontrou obstáculos dentro do próprio Planalto, criados principalmente pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa. Isso gerou incertezas no horizonte econômico e reduziu o espaço para negociações no Congresso. Nos bastidores, há rumores de que o embate entre Haddad e Rui Costa pode refletir a busca por uma indicação futura como candidato à Presidência.
Segundo analistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo, Lula se tornou o principal fator de desestabilização do seu governo por consequência de ainda não ter deixado o palanque eleitoral e ter ignorado as urgências do momento. O desafio de Lula será desarmar essas crises.
"Do ponto de vista administrativo, o presidente parecia ter feito uma composição capaz de combinar apoios partidários e capacidade técnica, além de reiniciar uma rotina de elaboração de políticas públicas por meio de conselhos, interrompida no governo Bolsonaro", avalia Arthur Wittenberg, professor de Relações Institucionais do Ibmec-DF, que se diz intrigado sobre como as declarações "infelizes" de Lula estão consumindo rapidamente o capital político que o presidente conseguiu para levar adiante seus primeiros planos de governo.
"Até mesmo o 8 de janeiro, que lhe rendeu solidariedade e respaldo praticamente unânime e em escala internacional, foi desperdiçado com gestos desagregadores", disse. Para Wittenberg, a grande questão a ser respondida hoje é se as falas políticas de Lula que têm gerado crises refletem alguma estratégia ou são meramente rancores. O futuro próximo dirá.
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