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No Brasil, há o ditado popular de que o ano começa de fato após o carnaval. Para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), contudo, o início efetivo de seu governo pode ocorrer só depois da Páscoa. Isso porque, para avançar nas suas propostas mais essenciais, o petista ainda precisa contar com uma melhora de contexto partidário no Congresso. Essa situação depende das composições em curso na Câmara, que se seguem a rearranjos recentes no equilíbrio de poder.
Animados com a inesperada formação, na semana passada, do bloco com 142 deputados de PSD, Republicanos, MDB e Podemos (em fusão com PSC), o maior da Câmara e que se descola do Centrão, articuladores políticos do governo se esforçam agora para tirar ainda mais poder do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O primeiro alvo do assédio em busca de apoio é o Republicanos, ligado à Igreja Universal e de fora da base governista. MDB e PSD, maiores siglas do blocão, já têm ministros na Esplanada.
Ocorre, contudo, que o Republicanos tem uma forte ligação com a sustentação do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), juntamente com PL e PP, que continua sobretudo no Senado. Não por acaso, as primeiras falas do ex-presidente ao retornar ao país na quinta-feira (30) foram justamente para reafirmar a unidade das três legendas e, também, incluir o Novo sob a sua influência. Bolsonaro enalteceu o crescimento dessas agremiações na última eleição e estabeleceu metas ousadas para elas nas disputas municipais em 2024.
“O parlamento nos orgulha pelas medidas, pela forma de se comportar, fazendo o que tem que ser feito e mostrando para esse pessoal que eles não vão fazer o que bem querem com o destino da nossa nação”, discursou Bolsonaro. Seu partido, o PL, elegeu a maior bancada da Câmara em 2022, com 99 deputados, e a segunda maior do Senado, com 12 senadores. Para o próximo pleito, o ex-presidente espera que a legenda e outros partidos da direita façam 60% das prefeituras pelo Brasil, preparando o terreno para 2026.
Além do "fator Bolsonaro", outra condicionante para Lula construir a coalizão mínima no parlamento para aprovar seus projetos mais importantes está na capacidade de Lira reagir à formação do blocão. Nos bastidores sabe-se que o presidente da Câmara busca apoio de legendas até mesmo de esquerda, como PSB e PDT, para alcançar um contraponto. Além dos líderes desses partidos e do seu próprio (PP), ele estaria conversando também com União Brasil, PSDB e Avante. A tarefa não é fácil, mas o atrativo são os postos em comissões e cargos na Casa e poder de barganha com o governo. Tanto no blocão que Lira tentou criar antes, combinando PP com União Brasil, seja agora com outras forças, o PL segue isolado.
Como maior legenda da Câmara, com quase um quinto dos assentos, o PL parece encontrar dificuldades em se articular com outros blocos. Uma das possíveis razões dessa situação seria a sua associação mais direta com Bolsonaro, incluindo alguns dos parlamentares mais fiéis ao ex-presidente. Outro fator é o próprio tamanho expressivo que alcançou no plenário, que já garante poder especial aos seus líderes de bancada, além de conferir vantagens para seus membros nas comissões permanentes e temporárias na Casa.
Segundo estrategistas de partidos cujo apoio é cobiçado por Lula, com a volta de Bolsonaro, os caciques que lhe deram apoio têm mais um motivo para esperar um pouco mais antes de cair no "canto da sereia" dos governistas. Eles vão analisar como o ex-presidente vai se sair no papel de líder da oposição para definir entre uma postura mais distante ou mais próxima do governo federal. Para dificultar a tarefa dos articuladores governistas, o PP, que outrora fazia parte das gestões petistas, na figura de seu presidente, senador Ciro Nogueira (PI), mostra ainda mais resistência.
De acordo com o professor de Ciências Políticas e escritor Antonio Lavareda, a repentina mobilidade de blocos e federações na Câmara, cujo número de cadeiras dos partidos define a fatia de recursos públicos a que têm direito, reflete as imperfeições do sistema eleitoral. "O excessivo fracionamento é muitas vezes maior se levar em conta que cada parlamentar acaba sendo eleito por uma lógica fundamentalmente individualizada. A maioria absoluta das legendas inexiste na mente do eleitor", disse ele.
Lavareda avalia que Lula buscará uma “segunda fase” no governo, após a Páscoa. Na primeira fase, o presidente priorizou sua agenda social, com medidas como o relançamento do Bolsa Família, aumento do salário-mínimo, campanhas de vacinação e investimentos na educação e meio ambiente. “Agora, ele precisará enfrentar questões econômicas espinhosas, como o arcabouço fiscal, a reforma tributária e a redução da taxa de juros pelo Banco Central. Portanto, é fundamental que Lula estabeleça uma base sólida no Congresso capaz de entregar sua agenda legislativa”, resumiu.
O fato é que o Planalto ainda não conseguiu formar uma base consistente no Congresso para aprovar propostas importantes e já vinha tentando, sem sucesso, atrair votos no varejo, fora da esfera de Arthur Lira, cuja larga dominância sofreu os primeiros abalos recentemente. O presidente da Câmara tenta, ainda, construir um novo bloco para suplantar a combinação que foi montada pelos presidentes do PSD, Gilberto Kassab, e MDB, Baleia Rossi, e que replica na Câmara a aliança de legendas principais na sustentação do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Discussão do marco fiscal inaugura jogo político
Arrumar o tabuleiro do xadrez político em razão das suas conveniências é a maior urgência do governo Lula, que submeterá ao Congresso nos próximos dias a primeira matéria de real importância, acerca do marco fiscal. O governo anunciou oficialmente na quinta-feira (30) o novo arcabouço e prevê enviá-lo aos deputados para começar a ser analisado logo após a Páscoa. “Vamos aproveitar esse momento para mandar o texto mais claro”, afirmou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na ocasião. Lira já avisou que a proposta, nitidamente dependente de ganhos adicionais com tributos, sofrerá ajustes.
Nos seus dois primeiros governos, Lula foi o protagonista absoluto de sua articulação no Congresso, atraindo e contemplando personagens de vários espectros. Desta vez, apesar de ter saído vitorioso de uma eleição muito apertada, procurou reforçar a aliança com as forças de esquerda que o apoiaram desde o primeiro turno e deixou espaços para oposição e centrão se organizarem. Analistas estão intrigados porque o presidente perdeu tempo precioso nos 100 dias de governo, na chamada de lua de mel.
Antes mesmo da posse, Lula lançou dúvidas sobre o horizonte econômico e deu margem a crises políticas em razão de declarações polêmicas. Ele insistiu na tese de que “não há despesas do governo, só investimentos”, acusou empresários de não trabalhar, chamou o agronegócio de fascista e, para coroar, mandou todos esquecerem os livros de economia.
Após todos esses desgastes, que incluem ataques à independência do Banco Central (BC), o presidente ainda abriu nova frente de crises ao dizer em 21 de março que “só pensava em f...” o senador Sergio Moro (União-PR) e, dois dias depois, quando a Polícia Federal (PF) já havia desbaratado plano do crime organizado para matar o ex-juiz da Lava Jato, ele afirmou que era “visível armação” do próprio Moro. Essa atitude piorou o ambiente político de Lula no Congresso e deu munição para oposicionistas, que intensificam cobranças e até abriram uma série de pedidos de impeachment.
CPIs podem se tornar fator de desestabilização
A governabilidade de Lula depende também do desdobramento de pedidos para abertura de comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMI), sendo a primeira sobre os atos de vandalismo de 8 de janeiro, em Brasília, que já foi protocolada e tem assinaturas suficientes. A outra, envolvendo ataques de facções criminosas, proposta semana passada, adiciona preocupação para o governo. Há grande chance da primeira, que vai investigar os culpados e os omissos no episódio na Praça dos Três Poderes, seja instalada tão logo seja realizada a sessão inaugural do Congresso de 2023.
Leandro Gabiati, professor de Ciências Políticas e diretor da Dominium Consultoria, afirmou que as CPIs sempre causam problemas para o governo e, por isso, não são bem-vistas pelos presidentes da República. Ele explicou que, como o governo precisa discutir a reforma tributária, o novo marco fiscal e aprovar medidas provisórias complexas, quaisquer investigações agora seriam grande desperdício de energia.
No entanto, Gabiati acredita que pode haver uma reviravolta na conjuntura política que esvazie a CPMI de 8 de janeiro. Ele argumenta que o governo está concentrando seus esforços em sua agenda econômica e que nem os presidentes das duas casas legislativas querem perder a atenção do plenário para as comissões de inquérito.
Assim, Gabiati entende que os embates acalorados vistos nos últimos dias nas comissões permanentes da Câmara entre governistas e oposicionistas deram uma amostra do tumulto que as CPIs podem gerar. “Essa realidade fará com que os políticos mais moderados costurem acordos e entrem em campo para costurar acordos e evitar que a comissões de inquérito contaminem ainda mais o ambiente político”, disse.