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Em negociação há mais de 20 anos, o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia ainda vive um impasse entre os dois blocos. O entrave mais conhecido está relacionado a exigências ambientais feitas pelo bloco europeu. Mas também há uma falta de entendimento sobre outro ponto: a possibilidade de empresas europeias concorrerem em licitações para vender produtos e serviços para o governo brasileiro.
Esse mercado movimenta cerca de US$ 150 bilhões (R$ 750 bilhões) por ano. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem dito que não pretende "abrir mão" dessas operações. Na concepção do brasileiro, permitir que empresas europeias e brasileiras concorram para o mesmo mercado de licitações abriria uma concorrência injusta para as companhias nacionais.
Mas a participação de empresas europeias em licitações do setor público brasileiro, e vice-versa, apresenta mais vantagens que desvantagens, principalmente como uma forma de dificultar a corrupção, segundo os especialistas Arno Gleisner, diretor de Comércio Exterior da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil (Cisbra), e Rubens Medrano, vice-presidente da Fecomercio-SP e presidente do Conselho de Relações Internacionais da federação e Diretor da CNC.
Além de estarem sujeitas a punições mais sérias em seus países caso sejam flagradas em práticas de corrupção, a concorrência das empresas europeias deve ajudar a tornar o mercado de licitações mais transparente no Brasil.
Mas afinal, o que são essas compras governamentais?
Após duas décadas, o Brasil, em 2019, sob gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), finalmente chegou a uma versão final do acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Neste documento, além dos termos que compreendem as reduções tarifárias de exportação e importação e a facilitação de comércio entre os dois blocos, há três capítulos, que somam 164 páginas, que tratam das chamadas compras governamentais.
Essas compras, resumidamente, são aquelas que os órgãos públicos precisam fazer através de empresas privadas nos mais variados âmbitos e com diversas finalidades. Por exemplo, essas compras podem envolver desde vacinas à mobília de um escritório ou prédio de um setor público, como cadeiras, mesas, computadores e etc.
Em um dos capítulos do acordo fechado em 2019, o texto prevê que tanto empresas privadas dos quatro países que formam o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), quanto das 27 nações da União Europeia, possam participar dessas licitações entre os blocos. Ou seja, empresas sul-americanas e europeias concorreriam juntas em licitações de compras realizadas pelo setor público em ambos os blocos.
Atualmente, para que empresas possam vender itens e mercadorias para o setor público, elas participam de um programa de licitação: as companhias do setor privado interessadas em vender ao órgão público fazem propostas ao governo, mostrando valores, quantidade e etc. Em tese, ganha aquela que apresentar o contrato com menor custo e que possua melhor qualidade.
Lula defende protecionismo, mas pequenas empresas já contam com proteção
Na concepção de Lula, deixar que companhias europeias e nacionais concorram entre si poderia prejudicar as brasileiras. "Tem uma coisa que eu já disse para todo mundo, que a gente não abre mão das compras governamentais, que serão a possibilidade de desenvolver o médio e pequeno empreendedor nesse país. Então vamos ter que ter uma disputa", já disse Lula sobre o tema.
Para os especialistas, contudo, esse posicionamento do petista é, no mínimo, protecionismo exagerado. "Ele [Lula] está preocupado e quer proteger as empresas nacionais da concorrência estrangeira. Mas esse argumento não se justifica uma vez que o acordo possui uma série de cláusulas que já as protegem”, pontua Rubens Medrano.
Medrano e Gleisner defendem que esse modelo resultaria em negociações mais transparentes e, consequentemente, menos corruptas. As empresas europeias já são submetidas a leis severas de compliance em seus países que geram punições reais. Por isso há uma possiblidade menor de que tenham apetite para se envolver em esquemas de cobrança de propina ou direcionamento de licitações no Brasil.
Menos concorrência facilita licitações corruptas
Cenário nada incomum aos brasileiros, licitações superfaturadas nas diversas esferas do governo constantemente são alvo de investigações e ganham destaque na mídia. Seja na construção de uma rodovia, na implementação de radares ou na compra de novos computadores para a sede de um órgão público.
“Se você tem maior concorrência, fatalmente tem-se mais segurança e transparência”, defende Arno Gleisner. Para o especialista, quando a quantidade de empresas nessas licitações é menor, constrói-se um cenário mais propício para trâmites ilícitos.
“Quando você tem apenas duas empresas, por exemplo, fica mais fácil para elas combinarem entre si dizendo ‘essa conta aqui é minha e aquela outra é sua’. Agora, quando são quatro, seis, duas brasileiras ou duas europeias, por exemplo, é impossível que isso aconteça”, pontua o especialista da Cisbra.
Arno acredita que o compromisso que alguns desses países têm com o tratado da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é um dos principais motivos para manter essas negociações mais transparentes. Devido ao rigor imposto pela organização, os setores públicos desses países não podem negociar com companhias que têm histórico de corrupção.
Concorrência pode diminuir custos de produtos e impactar no bolso dos cidadãos
Para os especialistas, se Lula realmente estiver barrando o acordo por conta de protecionismo, sua ação é até compreensível, mas não é justificável tecnicamente. Ainda que o mercado europeu seja, de fato, mais evoluído e avançado que o brasileiro, a concorrência não é tão grande como seria se o que estivesse sendo negociado fosse um acordo com empresas da China ou outros países da Ásia.
“Alguns setores podem não ficar tão competitivos porque nosso desenvolvimento tecnológico ainda não permite competir em igualdade, mas não acredito que esta seja uma questão realmente preocupante, porque não é como se estivéssemos falando de um acordo com a Ásia”, salienta Arno.
Levando isso em consideração, os especialistas avaliam o protecionismo de Lula como exagerado. “Além disso, se o medo for em relação às compras da área da saúde, existem cláusulas no acordo que as protegem dessas compras. E sobre as estatais, estas estão até excluídas do acordo. Por isso não há porquê se preocupar”, pontua Rubens.
Há ainda uma visão positivista dessa situação. Arno acredita que essa concorrência pode abrir uma porta ao mercado nacional, fazendo com que ela evolua e possa se tornar um polo tecnológico ainda mais desenvolvido.
À Gazeta do Povo, Arno e Rubens ainda explicam que a entrada do mercado europeu em licitações públicas podem impactar diretamente o bolso do contribuinte. “A concorrência europeia em compras governamentais vai possibilitar valores menores na tributação e nas compras por parte do governo brasileiro”, pontua Arno. Ou seja, menos custos para a população.
Acordo segue para nova avaliação dos europeus nos próximos meses
Após a conclusão do texto do acordo em 2019, os europeus não concordaram com todos os termos do texto e não o ratificaram. Eles elaboraram um documento adicinal, que tem travas ambeintais e, entre outros aspectos, impede a exportação para a União Europeia de produtos brasileiros feitos em áreas de desmatamento irregular de florestas.
Isso ocorre porque o bloco europeu impôs para si mesmo regras muito rígidas na área ambiental. Em teoria, países que têm regras ambientais mais flexíveis teriam custos menores de produção e concorreriam de forma desigual com produtores europeus. O governo Lula vem criticando o termo adicional ao acordo afirmando que se trataria de uma medida protecionista dos europeus.
As novas exigências da União Europeia têm surpreendido os brasileiros porque a estratégia econômica europeia está mudando. O bloco continua sendo visto de fora por suas tradicionais características de defesa da livre circulação de bens e investimentos, ortodoxia econômica e austeridade fiscal. Mas a Europa tem mudado desde 2019. O objetivo é responder à guerra de comércio internacional, deflagrada em 2018 pelo ex-presidente americano Donald Trump, e ao mercantilismo chinês, caracterizado pelo controle estrito da economia por Pequim.
Para sobreviver à competição global, os europeus têm adotado uma estratégia econômica atrelada à geopolítica, em detrimento do antigo livre mercado. As sanções à Rússia, por causa da invasão à Ucrânia, e a dependência que o bloco tem do mercado chinês estão levando os europeus a tentarem diversificar seus mercados. Por isso, eles têm se aproximado de países como Brasil, Chile, Nigéria e Casaquistão.
As negociações entre o Mercosul e a União Europeia estão ocorrendo nesse contexto. Por isso, embora estejam dispostos a negociar, os europeus devem impor ao Brasil muito mais restrições do que se esperaria deles no passado. Mas se o acordo for fechado, pode render um aumento de R$ 600 bilhões ao PIB brasileiro.
O Brasil espera enviar ainda em setembro uma resposta do Mercosul ao termo adicional solicitado pela União Europeia, em uma tentativa de destravar o acordo até o fim do ano.