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O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começou a se envolver pessoalmente nas conversas com as Forças Armadas para melhorar o relacionamento do futuro governo com os militares. Lula se reuniu na sexta-feira passada (16) com os oficiais-generais escolhidos por ele para comandar o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Dentre outros assuntos abordados, o petista acenou com recursos orçamentários: se comprometeu a manter programas militares estratégicos. A sinalização foi considerada positiva. Mas militares ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam que isso não é suficiente para dissipar o receio que eles têm em relação à volta do PT ao poder.
O futuro ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, participou da reunião de Lula com os militares. Ele foi o responsável por indicar os próximos comandantes das Forças Armadas: general Julio Cesar de Arruda (Exército), almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen (Marinha), e tenente-brigadeiro do ar Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica).
Lula pediu aos futuros comandantes um levantamento com os programas prioritários do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Segundo integrantes do PT, isso faz parte da estratégia de Lula de sinalizar que o novo governo pretende manter um clima "bastante amistoso" com os militares. Durante o encontro, Lula indicou que pretende manter programas prioritários das Forças Armadas – como os de compra de caças e de submarinos.
Aos futuros comandantes, o presidente eleito pediu o cronograma e quis saber o que está paralisado nesses programas. A Marinha, por exemplo, tem investido em submarinos a diesel e atômicos. O futuro comandante da Força, almirante Marcos Sampaio Olsen, afirmou a Lula que o primeiro submarino ficará pronto em 2023. Já Força Aérea Brasileira (FAB) tem se dedicado aos caças Gripen e o Exército defendido a ampliação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron).
Entre os pedidos feitos por Lula aos militares está o reforço da presença dos militares nas fronteiras da Amazônia, onde as três forças têm atuação. O futuro ministro da Defesa pretende conversar com o ministro da Justiça escolhido por Lula, Flavio Dino, para avaliar como atuar na região de forma conjunta com as forças policiais a partir de 2023.
"Posso dizer que o encontro foi muito bom. Eles [comandantes] já tinham sido escolhidos, e fui apresentá-los. O presidente Lula falou como tratou as Forças Armadas durante o governo dele e pediu um histórico, um relatório das Forças Armadas para avaliar em 40 dias", disse Múcio em entrevista à CNN Brasil. O futuro ministro da Defesa havia sido o responsável pelas indicações dos futuros comandantes das três Forças, que foram bem aceitas na caserna. Além disso, Múcio já havia sinalizado que o governo de Lula não vai mexer na Previdência dos militares – um tema caro às Forças Armadas.
Manifestações nos quartéis será assunto para depois da posse de Lula
De acordo com integrantes da equipe de transição, a reunião de Lula não tratou sobre os acampamentos de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) em frente dos quartéis em diversos estados do país – um dos pontos mais delicados da relação do petista com os militares.
Desde que Bolsonaro perdeu o segundo turno da eleição presidencial, apoiadores do atual presidente se concentram nos quartéis para se manifestar contra a vitória de Lula. Militares têm defendido o direito de manifestação deles. Mas o presidente eleito e seu grupo político veem os atos dos quartéis como manifestações antidemocráticas – e querem que elas sejam encerradas.
A expectativa é de que esse tema seja abordado após a posse de Lula e já com os novos comandantes à frente das Forças Armadas. O PT alega que a saída dos manifestantes precisa ser negociada de forma pacífica e que seja feita por meio do diálogo.
Por que militares ainda desconfiam de Lula
A reunião entre Lula e os futuros comandantes das Forças Armadas foi um gesto que ainda não convenceu grande parte dos militares da caserna sobre as intenções do futuro governo. Dois oficiais da ativa afirmaram à Gazeta do Povo, sob condição de manter seus nomes em sigilo, que há muita desconfiança em relação a Lula.
Eles reconhecem que, nas duas gestões de Lula como presidente, de fato foram investidos recursos no reaparelhamento das Forças Armadas. Mas a desconfiança ocorre por causa da volta do PT ao poder. "Estão todos desconfiados. Ninguém sabe se [a postura do petista na conversa com os comandantes e de integrantes do futuro] é para valer ou se é só para dar uma enganada até o Lula assumir", disse um militar.
Boa parte das incertezas é atribuída por militares a uma proposta defendida pelo ex-deputado federal José Genoíno, ex-presidente nacional do PT, que defendeu reformas e mudanças em várias diretrizes das Forças Armadas. Em entrevista ao canal Opera Mundi, do YouTube, ele sugeriu a "despolitização" das instituições. Também defendeu uma integração militar com os países latino-americanos (algumas dessas nações são ditaduras de esquerda), ajustes na mudança na promoção de militares e reforma dos currículos da formação militar. Genoino também pregou a revogação do artigo 142 da Constituição, que estabelece o papel das Forças Armadas e que, segundo interpretação de parte dos apoiadores de Bolsonaro, daria aos militares o "Poder Moderador" para resolver crises institucionais entre os demais poderes (esse interpretação é vista com equivocada por juristas).
"Até tomar posse e o governo efetivamente começar [a governar], é um compasso de espera. Vamos ver. Em um primeiro momento, podem não querer fazer nada. Mas, com avançar do governo, se eles se sentirem fortes, e não sei se estarão, é capaz de tentarem mexer na promoção e na reforma dos currículos. E isso não vai ficar bem", disse outro militar.
O general reformado Paulo Chagas entende que as sinalizações de Lula durante a reunião com os futuros comandantes são positivas, mas também faz ressalvas. "Essa aproximação dele é perfeitamente natural. Acho que é alguma coisa que ele tem que fazer para mostrar que ele não está pretendendo prejudicar [os militares], muito embora o Genoíno já tenha dito que a intenção deles já é algo conhecida", disse o general.
Segundo Chagas, as Forças Armadas têm o seu planejamento com relação à missão e aos meios para cumprir; e isso está sempre em atualização. Para ele, isso reforça o caráter institucional da reunião. Porém, o general também entende que Lula é um político experiente e pode ter usado o encontro para demonstrar que está com boa-vontade para atender as necessidades das instituições. "Acho que é uma forma de pacificar aqueles que têm alguma desconfiança. O período em que ele esteve no governo não houve tentativa de mudar nada nas Forças. Foi a partir dele, inclusive, que foram feitos os grandes projetos do Exército. O que na época ficou ruim, vamos dizer assim, foi que a promessa de 'vamos fazer tudo', e teve gente que acreditou. No fim, não teve dinheiro para fazer todos os projetos", disse Chagas.
Militares ouvidos pela Gazeta do Povo questionaram também a demanda de Lula de reforçar as atividades na Amazônia. Todos sustentam que o trabalho já é feito e se mostram contrários a reforçar o trabalho da Polícia Federal (PF), como fiscalização e combate ao garimpo. "Muita gente fala que tem que botar o Exército na segurança pública. Mas isso é eventual; não pode ser rotina. O papel das Forças Armadas é na faixa de fronteira na Amazônia", disse Chagas. Mas ele avalia os militares não negariam mais investimentos para o cumprimento das atividades nas áreas fronteiriças.
Sinalização sobre investimentos é ponto central para melhorar a relação, diz analista
O analista político Alexis Risden, consultor especialista em segurança e defesa nacional da BMJ Consultores Associados, avalia que as sinalizações da reunião de Lula com os futuros comandantes das Forças Armadas foram positivas. Para ele, isso começa a construção de um bom relacionamento entre ele e os militares. E o ponto central é o compromisso de manter os programas e projetos estratégicos das Forças Armadas.
"Isso [o compromisso de Lula] é ótimo. Tinha a indicação do Múcio de que [o futuro governo] não iria mexer na Previdência militar e outros pontos sensíveis. Mas ficava a questão se o governo eleito vai continuar investindo em projetos estratégicos", diz Risden. "Hoje 70% do orçamento militar é para pagar salário e pensão, e sobra muito pouco para investimentos em pesquisa e desenvolvimento, em projetos."
O analista ressalta, contudo, que é importante definir o Orçamento de 2023 para ter mais clareza sobre qual será a capacidade de investimento das Forças Armadas. "Temos que acompanhar o Orçamento real do ano que vem, se vai haver cortes, se a LOA [Lei Orçamentária Anual] será isso mesmo", diz. "O que eles [os militares] querem é orçamento para continuar comprando caças, investindo em blindados, etc."