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Presentes presidenciais

Lula levou mais de 400 presentes da Presidência e ainda tenta resgatar obras confiscadas

Lula recebendo uma réplica do estádio principal dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, entregue pelo dirigente do Partido Comunista da China He Guoqiang, em 2 de julho de 2008, no Palácio do Planalto (Foto: EFE/FERNANDO BIZERRA JR/ARQUIVO)

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O caso envolvendo a suposta tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de se apropriar de joias preciosas presenteadas pelo reino da Arábia Saudita não é inédito na história recente do Brasil. Entre 2016 e 2019, ao fiscalizar os presentes recebidos pela Presidência de 2003 a 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se apropriou de 434 objetos dados ao Brasil por chefes de Estado estrangeiros durante seus dois primeiros mandatos. A ex-presidente Dilma Rousseff, por sua vez, tomou para si 117 itens.

No início da fiscalização, em 2016, o órgão determinou que a Presidência, então ocupada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), identificasse com quem e onde estariam 568 presentes dados a  Lula e 144 recebidos por Dilma, de modo que fossem incorporados ao patrimônio público da União. Com base em dados consolidados pela Presidência, os números depois foram revistos.

No mesmo ano, 132 presentes dados a Lula foram encontrados pela Polícia Federal num cofre do Banco do Brasil no centro de São Paulo; 21 de maior valor foram depois confiscados pela Presidência. Em 2019, no final da auditoria, o TCU registrou que 360 presentes recebidos por Lula foram localizados no Galpão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e foram transportados de volta para Brasília. Outros 74 não foram localizados.

Já os presentes recebidos por Dilma foram encontrados num Galpão da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados na Região de Porto Alegre, em Eldorado do Sul (RS). No local, no entanto, não foram localizados 6 dos 117 presentes identificados – segundo representantes da ex-presidente, eles teriam ficado nas dependências da Presidência.

O relatório não detalhou o que eram esses presentes, mas alguns itens – esculturas, maquetes, espadas e uma coroa – foram incorporados à União após uma decisão judicial. Lula ainda tenta reaver esses bens.

Fiscalização começou com apreensão da Lava Jato

A fiscalização do TCU sobre os presentes recebidos por Lula e Dilma começou em abril de 2016, a pedido do Senado, depois que a Polícia Federal localizou a sala-cofre da agência do Banco do Brasil em São Paulo, onde o atual presidente mantinha 23 caixas, lacradas em 2011 e contendo 132 joias e obras de arte recebidas por ele de autoridades estrangeiras durante seus dois primeiros mandatos.

Ao concluir a primeira etapa da fiscalização, em agosto de 2016, o ministro Walton Alencar, relator do processo, concluiu que presentes recebidos por presidentes de chefes de Estado estrangeiros deveriam ser incorporados ao patrimônio público, exceto aqueles de natureza “perecível e personalíssima”, como perfumes e roupas, por exemplo. Os demais, especialmente de valor mais elevado, deveriam ser destinados ao patrimônio público.

“Os presentes são recebidos pelos presidentes brasileiros, em razão da natureza pública e representativa do cargo que ocupam e não como mecanismo de obtenção de receita ou acumulação de patrimônio. Nessas ocasiões, o presidente em exercício retribui os presentes, mediante a entrega de outros presentes, estes adquiridos pelo Governo brasileiro, custeados com recursos públicos dos contribuintes brasileiros”, afirmou ainda o ministro do TCU.

A lógica é simples: se os presentes dados pelo presidente brasileiro são pagos com recursos públicos, os que ele recebe de governantes estrangeiros também devem ser da União. Levar para o acervo pessoal itens valiosos representaria um ganho pessoal indevido.

A primeira etapa da fiscalização verificou que ao menos 361 presentes eram mimos pessoais, como medalhas personalizadas, e bens de consumo direto, como bonés, camisetas, gravatas, perfumes, etc., que poderiam fazer parte do acervo pessoal. Os demais eram obras de arte e artigos de valor, que deveriam, por lei, adornar os palácios presidenciais ou ser exibidos em museus públicos.

A fiscalização verificou “graves irregularidades” na gestão dos presentes recebidos de outros países. A divisão entre o que seria destinado ao patrimônio público e o que seria liberado para o acervo pessoal de Lula e Dilma baseava-se num critério “democraticamente questionável”.

Funcionava assim: só eram incorporados ao patrimônio da União aqueles itens entregues numa cerimônia oficial de “troca de presentes” entre os dois chefes de Estado, algo que raramente ocorria na prática. Na grande maioria dos casos, isso era feito por auxiliares e muitas vezes até mesmo em visitas ou viagens internacionais em que o presidente sequer estava presente, mas sim ministros e outras autoridades que o representavam no exterior.

Como exemplo do que deveria ser feito, técnicos do TCU citaram o protocolo aplicado nos Estados Unidos, segundo o qual todos os presentes recebidos de governos estrangeiros acima de um determinado valor máximo são registrados, mantidos e geridos por departamento específico da Presidência, que publica uma lista dos bens atualizada anualmente em site oficial. Caso o presidente ou a primeira-dama tenham interesse em levar algum desses presentes, devem indenizar o governo federal no valor avaliado do bem.

Não era o que ocorria na época. Os auditores do TCU concluíram que o critério de só incorporar à União presentes recebidos em cerimônia específica permitia que o próprio presidente ou terceiros, por conveniência, os direcionassem para o acervo pessoal.

“Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, advertiu Walton Alencar.

Na fiscalização também constatou-se que em cinco dessas solenidades oficiais de troca de presentes, os presentes dados pelos chefes de Estado da Dinamarca, Irlanda, Alemanha, França e China não foram registrados como patrimônio da União, mas levados para o acervo privado.

Durante a fiscalização, o gabinete da Presidência, já ocupada por Temer, reconheceu o problema. “A falha não se encontra na legislação, mas na intenção dos ocupantes ou assessores do chefe de Estado quando em missões oficiais e protocolares, e que, quando do recebimento de presentes entre chefes de estado, os itens trocados devem ser de propriedade do povo, motivo pelo qual devem ser incorporados ao patrimônio público, com exceção daqueles perecíveis ou de uso pessoal – a exemplo de peças de vestuário”, afirmou.

No julgamento, além de determinar que fossem incorporados ao acervo público todos os presentes – exceto os de “natureza personalíssima ou de consumo direto” –, o TCU determinou que o setor responsável da Presidência, o Departamento de Documentação Histórica, adotasse um formulário padrão para registrá-los.

Lula chamou de “tralhas” presentes achados pela PF

A fiscalização do TCU sobre os presentes recebidos por Lula e Dilma foi deflagrada a partir de investigações da Lava Jato que apontavam “retirada de bens do Palácio do Planalto ao fim do mandato do ex-presidente”.

Entre os 132 itens encontrados pela PF, em abril de 2016, na sala-cofre do Banco do Brasil em São Paulo, havia peças decorativas, espadas, adagas, moedas, canetas e condecorações, armazenadas sem custo.

Os presentes foram apreendidos e, no mesmo dia, Lula foi conduzido coercitivamente para depor. Irritado, disse ao delegado que não sabia onde estavam as “tralhas” que ganhou quando presidente e que iria entregar tudo para o Ministério Público.

“Tem coisa de valor que deve estar guardada em banco, tem coisa... Eu já tomei uma decisão, terminada essa p... desse processo, eu vou entregar isso para o Ministério Público, vou levar lá e vou falar ‘Janot, está aqui, olha, isso aqui te incomodou?’”, afirmou, em referência ao então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que encabeçava a Lava Jato em Brasília.

Em junho de 2017, cumprindo a ordem do TCU, a Presidência comunicou ao ex-juiz Sergio Moro, de Curitiba, que iria confiscar 21 dos objetos apreendidos um ano antes: um peso de papel, três moedas, um bibliocanto, cinco esculturas, duas maquetes, uma taça de vinho, uma adaga, três espadas, uma coroa, uma ordem, um prato decorativo e moedas antigas.

Eles faziam parte de um total de 176 presentes analisados por especialistas de uma comissão formada na Presidência da República. Os 155 restantes foram liberados para o acervo pessoal de Lula – entre esses itens, havia medalhas, canetas, insígnias e arte sacra, todos considerados de “caráter personalíssimo”.

Moro, então, autorizou a incorporação ao patrimônio da União dos 21 presentes listados pela Presidência, pois teriam “algum valor mais expressivo, mas que não caracterizam presentes de caráter personalíssimo”. “É que agentes públicos não podem receber presentes de valor e quando recebidos, por ser circunstancialmente inviável a recusa, devem ser incorporados ao patrimônio público”, escreveu na decisão.

Na época, a defesa de Lula protestou. O advogado Cristiano Zanin disse que o ato de Moro era “mais uma prova de sua parcialidade e perseguição contra o ex-presidente” e que o caso nem deveria ser julgado por ele. Alegou ainda que os presentes foram incorporados por Lula conforme uma lei de 1991 que regula a gestão de “acervos documentais privados” dos presidentes da República. A norma, porém, nada fala sobre presentes de chefes de Estado, o que foi regulamentado só em 2002, num decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Era essa a norma que dizia que deveriam ser incorporados ao patrimônio da União itens recebidos nas cerimônias de “troca de presentes” entre chefes de Estado. Na fiscalização de 2016, o TCU afirmou que não só esses bens deveriam ir para o acervo público, mas todos os demais recebidos em outras ocasiões e que não fossem de uso ou consumo pessoal.

Lula tenta reaver parte dos presentes na Justiça

Lula acionou a Justiça Federal para anular o resultado da fiscalização do TCU e resgatar os 21 presentes confiscados pela Presidência. Alegou que, durante seu governo, um órgão distinguia quais presentes deveria ir para o acervo privado e quais eram públicos. No fim do mandato, os primeiros foram para cofres do Banco do Brasil e os demais deixados nos palácios do Planalto e da Alvorada.

Argumentou ainda que já haviam se passado mais de cinco anos entre sua incorporação ao acervo pessoal e a fiscalização, ocorrendo decadência do direito do poder público de reavê-los. Além disso, disse que a defesa não foi ouvida pelo TCU, o que tornaria o processo irregular. Os advogados de Lula enviaram ofício ao órgão para que analisasse também os presentes recebidos a partir de 1991 por Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.

Em 2019, o juiz federal Carlos Alberto Loverra, da primeira instância em São Bernardo do Campo (SP), negou o pedido de Lula para recuperar os 21 presentes resgatados pela Presidência. Citou a decisão de Moro que reconhecia a validade da avaliação da comissão de especialistas para incorporá-los ao patrimônio público, como já havia autorizado o TCU.

Além disso, Moro citou outro decreto de 2002, que instituiu o Código de Conduta Ética da Presidência, que proibia o recebimento de presentes na relação com parte interessada não pertencente à Administração Pública. A exceção era para brindes que não tivessem valor comercial. Já os presentes que não pudessem ser recusados, ou cuja devolução acarretasse despesa para o agente público – como os recebidos por outros países – deveriam ser incorporados ao patrimônio da Presidência ou destinados a entidade cultural ou filantrópica.

Loverra rejeitou todas as alegações de irregularidades processuais apontadas por Lula. Ao julgar o mérito da ação, concordou com o TCU de que os presentes de maior valor, que não fossem pessoais, deveriam mesmo ir para o acervo público, “pois ao Brasil foram ofertados e não à pessoa do Presidente”.

“A todos os órgãos da administração pública, em especial ao Presidente da República, cabe observar os princípios constitucionais de moralidade e impessoalidade, tendo em mente, como já mencionado, que os presentes recebidos em mãos pela pessoa do Chefe de Estado e de Governo brasileiro são destinados ao país, ressalvados aqueles de caráter personalíssimo ou consumíveis. Se assim não fosse, ou seja, se à pessoa do Presidente pertencesse todo e qualquer presente recebido em cerimônias, por certo ao mesmo também caberia adquirir, com seus próprios recursos, os presentes oferecidos aos mandatários estrangeiros, do que nem se cogita”, concluiu na sentença, proferida em 12 de março de 2019.

Lula recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) em abril e em setembro de 2019 a apelação foi distribuída por sorteio ao desembargador Nery Júnior, da 3ª Turma da Corte. A previsão é que o colegiado julgue o recurso em abril deste ano, segundo a assessoria do tribunal.

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