O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou demonstrar prestígio político ao reunir onze chefes de Estado na Reunião de Presidentes da América do Sul na terça-feira (30) em Brasília. O objetivo dele era propor aos vizinhos um esforço para formar um bloco de países da região para negociar com o resto do mundo de uma posição mais vantajosa. Mas Lula minou sua própria iniciativa ao relativizar a ditadura venezuelana e desagradou tanto a direita quanto a esquerda.
Em um encontro bilateral com o ditador venezuelano Nicolás Maduro na segunda-feira, Lula disse que a Venezuela é “vítima de uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo”.
"Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo", disse Lula.
Mas o governo da Venezuela responde no Tribunal Penal Internacional por crimes de assassinato, encarceramento, tortura, estupro e perseguição a dissidentes políticos. Maduro está há dez anos no poder realizando eleições controversas, cuja legitimidade não é reconhecida pela comunidade internacional.
O apoio de Lula à ditadura venezuelana se tornou um dos principais assuntos entre os chefes de Estado. "Fiquei surpreendido quando se disse que o que se passou na Venezuela é uma narrativa. Vocês sabem o que pensamos a respeito da Venezuela do governo da Venezuela", disse o presidente do Uruguai Luis Lacalle Pou em um vídeo que foi publicado em sua conta no Instagram e depois apagado. O Uruguai e o Equador são os únicos países da América do Sul com governos de direita no momento.
O presidente do Chile, Gabriel Boric, do partido de esquerda Convergência Social, discursou contra o posicionamento de Lula. “Não é uma narrativa o que acontece no país, é uma realidade, é séria, e tive a oportunidade de vê-la de perto nos rostos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos”, disse Boric.
Até o presidente da Argentina, Alberto Fenández, que vem recebendo apoio quase incondicional de Lula, alfinetou o brasileiro e o ditador venezuelano discretamente. "A construção da democracia, dos direitos humanos na América Latina, é uma luta que custou a vida de muita gente, e não podemos perder isso", disse em discurso.
Os outros chefes de Estado ou representantes de governo preferiram não dar declarações públicas após as falas controversas de Lula.
Lula defende reestruturação de bloco fundado por governos de esquerda em 2008
O Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, começou a anunciar a reunião dos líderes da América do Sul há cerca de um mês. Mas a articulação política vinha ocorrendo desde o início do governo e faz parte da agenda política de Lula de tornar o Brasil mais relevante no cenário internacional - um objetivo que ele tenta alcançar desde seu primeiro mandato.
A reunião dos chefes de Estado sul-americanos no Brasil logo no primeiro semestre do mandato de Lula era para ser estratégica. Deveria uma demonstração de força diplomática do petista tanto para o público interno quanto para a comunidade internacional.
"Essa reunião foi convocada para que a gente discuta se nós queremos funcionar enquanto bloco para negociarmos com outro bloco ou se nós vamos tentar ficar negociando sozinhos", disse Lula. A declaração foi dada em meio a discursos onde Lula reforçou a contestação à hegemonia geopolítica americana e exaltou o grupo econômico dos BRICS, formado por Brasil, Índia, África do Sul e pelas autocracias da China e da Rússia.
Lula anunciou a criação de um grupo de chanceleres para encaminhar a formação de um bloco sul-americano. "Esse grupo que foi criado, de chanceleres, tem 120 dias para apresentar, numa próxima reunião, as propostas que eles pretendem concluir".
O presidente brasileiro deu a entender que o caminho para esse objetivo seria a reestruturação da Unasul, a União das Nações da América do Sul, criada em 2008 por governos de esquerda. Lula disse que não quer manter a Unasul como ela foi criada, pois muitos governos não participaram de sua criação.
Relatando conversa com os outros chefes de Estado, Lula afirmou ter dito que ele é o presidente que tem mais experiência na região (por estar no terceiro mandato e ter participado da criação da Unasul). Por isso, afirmou: "era natural que eu convidasse todos os presidentes da América do Sul para a gente conversar um pouco".
O presidente uruguaio Lacalle Pou já afirmou que não vai participar da nova Unasul de Lula. Boric, apesar de criticar a ditadura venezuelana, disse ter aprovado o retorno da Venezuela para as discussões sobre uma possível união de países da América do Sul. "Mas isso não significa fazer vista grossa [para a Venezuela]", disse. Em janeiro, Boric havia se mostrado favorável à Unasul.
Mas o presidente chileno precisa de aprovação do Legislativo para que seu país entre na Unasul. O histórico "esquerdista" do bloco e o apoio de Lula ao governo ditatorial de Maduro nos últimos dias devem pesar na decisão do Parlamento chileno que é, em sua maioria, formato por congressistas de direita.
Já o presidente Argentino apoiou Lula na ideia de recriação da Unasul. "Tentaremos que a unidade regional seja uma política de todos os países. Temos de fazer com que nossas crianças saibam a importância de ser da Unasul. Não nos serviu de nada estar tão divididos, e o mundo nos encontrou divididos no pior momento, a pandemia. Que não volte a nos encontrar desunidos", disse Alberto Fenández.
Bolsonaro tirou Brasil da Unasul ao ver interferência ideológica no bloco
Quando o cenário político da América do Sul começou a pender para a direita, em meados de 2017, o grupo sofreu com essas mudanças. Alguns chefes de estado passaram a defender que a Unasul não passava de um bloco ideológico e, portanto, não poderia cumprir com os objetivos desenhados para ele. O ex-presidente Jair Bolsonaro tirou o Brasil do bloco durante seu governo.
O uruguaio Lacalle Pou tem sido um dos maiores críticos da Unasul. "Devemos parar com essa tendência para a criação de organizações. Vamos para as ações e não percamos tempo, pois a vida acaba e os governos também”, disse Pou.
O Paraguai também possui resistências com a formação do grupo após uma intercorrência em 2012. À época, a organização “suspendeu” a participação do país depois que Fernando Lugo, de esquerda, sofreu impeachment do cargo de presidente. O então presidente da Unasul, o venezuelano Ali Rodriguez Araque, acusou os políticos paraguaios de terem dado um golpe em Lugo. A atitude foi entendida como uma interferência do grupo em assuntos internos no país.
Lula ataca a hegemonia do dólar e defende moeda comum na América do Sul
Lula também defendeu na reunião de líderes da América do Sul a criação de uma moeda única para o bloco, que permita que o comércio entre os vizinhos não seja baseado no dólar, como é atualmente. "A gente quer repetir o mesmo erro do passado ou queremos uma nova negociação? Por que nós no Brasil e Argentina não podemos negociar nas nossas moedas? Se a gente não fizer isso, o comércio fica cada vez mais difícil. Comprar dólar para vender meus produtos não é correto", disse após encontro com os presidentes desta terça.
Lula tem criticado a hegemonia do dólar nos últimos meses e passou defender a criação de moedas alternativas para enfraquecer os Estados Unidos. Quando esteve na China, em abril, sugeriu uma moeda própria dos BRICS.
Jornalistas venezuelanos afirmaram apostar no apoio de Lula ao governo de Maduro
Jornalistas venezuelanos que conversaram informalmente com a Gazeta do Povo disseram ter esperança que Lula ajude a Venezuela. O país enxergaria no Brasil a esperança de melhorar as condições básicas de vida.
Mas, apesar de enxergarem a proposta de Lula de formação de um bloco como positiva, disseram ter dúvidas se isso é realmente possível. Eles pediram anonimato porque há repressão à liberdade de opinião na Venezuela.
Os seguranças de Maduro e integrantes do Gabinete de Segurança Institucional de Lula demonstraram seu apetite pela liberdade de imprensa no final do encontro distribuindo pancadas entre os jornalistas que tentaram se aproximar do ditador venezuelano.
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