Em fevereiro de 2024, Lula recebeu o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Sergey Lavrov, no Palácio da Alvorada| Foto: Ricardo Stuckert/PR
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Enquanto as negociações para um cessar-fogo na Ucrânia avançam lentamente sob a mediação dos Estados Unidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dá sinais de ter perdido o fôlego para ser um agente ativo do processo de paz na Europa. O Brasil já tentou se engajar na busca para uma solução do conflito e chegou a propor, em apoio à China, um acordo de seis pontos para a paz na Ucrânia. Apesar do engajamento, o documento sino-brasileiro não ganhou apoio no cenário internacional.

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Na quinta-feira, diplomatas brasileiros e chineses voltaram a reunir em Nova York no grupo "Amigos da Paz", formado por países emergentes que querem participar dos debates sobre o fim da guerra na Ucrânia. Não houve a participação de Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin, ou de qualquer autoridade política do governo. A reunião foi conduzida pelos diplomatas representantes do Brasil e da China na ONU, Sérgio Danese e Fu Cong.

A proposta do Brasil em parceria com a China foi escanteada pelo Ocidente e criticada por Kyiv, por ser acusada de favorecer a Rússia ao não prever a retirada das tropas do Kremlin do território ucraniano temporariamente ocupado. Mas, com o retorno de Donald Trump ao poder, os Estados Unidos mudaram de tom e passaram a defender posições ainda mais desfavoráveis à Ucrânia.

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Trump não só aceita a anexação por parte da Rússia de territórios ucranianos por meio da força, como tem ameaçado suspender a ajuda militar a Kyiv e negociar a paz excluindo ucranianos e europeus dos debates. Sob essa nova perspectiva americana, a proposta da China e do Brasil, que vinha sendo propagandeada por Lula, assume tons não tão desfavoráveis à Ucrânia e à Europa por defender que o país invadido também seja incluído nas negociações de paz.

A reportagem apurou com fontes envolvidas com as negociações que o Brasil vai manter sua posição inicial, mas que houve uma "perda de apetite" pelo tema e pela tentativa de emplacar Lula como um agente da paz. Para analistas, isso pode ser explicado por fatores que vão desde o desgaste da imagem de Lula no exterior, à crise interna que o petista tenta contornar a tempo das eleições presidenciais de 2026.

"Lula deve ter se dado conta de que suas declarações sobre Ucrânia e, mais ainda, sobre a Faixa de Gaza, longe de aumentarem seu prestígio, contribuíram para reduzir-lhe a popularidade. Ele deve ter preferido concentrar-se em temas mais seguros, como a cúpula dos Brics que se realizará no Rio de Janeiro em julho e, mais tarde, a COP-30 em Belém", avalia Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil em Washington e ex-ministro da Fazenda do governo do ex-presidente Itamar Franco.

Brasil perdeu o fôlego para engajar em discussões sobre a guerra na Ucrânia

Nesta semana, Donald Trump e Vladimir Putin discutiram os termos de um cessar-fogo temporário proposto pelos Estados Unidos. Sem engajar na proposta sino-brasileira ou solicitar por uma intermediação desses países, o ditador russo chegou a agradecer ao envolvimento dos países dos Brics (bloco de nações emergentes), inclusive do Brasil, em busca de uma solução para o conflito em curso no Leste Europeu.

"Todos nós temos nossos próprios assuntos atuais, mas muitos líderes de países e o presidente da República Popular da China, o primeiro-ministro da Índia, os presidentes do Brasil e da África do Sul estão lidando com essa questão, dedicando muito tempo a ela", disse Putin em declaração à imprensa após telefonema com Donald Trump. Ele também anunciou que concordava em negociar um cessar-fogo com os Estados Unidos.

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Nos últimos dias, Donald Trump manteve diálogos com Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky a fim de buscar um consenso para um cessar-fogo temporário na Ucrânia. Por meio de telefonemas, o republicano chegou a dizer que os dois países estariam "no caminho certo" para encerrar a guerra.

"Acabei de encerrar uma ótima ligação com o presidente Zelensky da Ucrânia. Grande parte da discussão foi baseada na ligação feita ontem com o presidente Putin para alinhar a Rússia e a Ucrânia em termos de suas solicitações e necessidades", afirmou Trump após ligação com o líder ucraniano. Os diálogos com Zelensky avançaram positivamente com o republicano após os dois líderes protagonizarem um bate-boca no Salão Oval, na Casa Branca, em fevereiro.

O Brasil, contudo, não está envolvido e nem deve participar das negociações mediadas pelos EUA. Apesar do engajamento do governo brasileiro na busca por uma solução para a guerra na Ucrânia, os esforços brasileiros não resultaram em ações concretas. Em recente declaração à imprensa, Lula lamentou que o acordo em parceria com o governo chinês não tenha ganhado apoio da comunidade internacional.

“O Brasil e a China fizeram um protocolo para tentar encontrar uma forma de paz. Esse protocolo foi discutido com muitos países, mas parece que as pessoas não deram muita importância", disse Lula durante coletiva ao lado do presidente de Portugal, Marcelo Sousa Rebelo. Nos corredores do Palácio do Planalto, a impressão é que o Brasil foi escanteado das negociações e que não faz mais sentido focar esforços no tema.

Na avaliação de Rubens Ricupero, a atuação de Trump sufocou o envolvimento de outros países. "Trump e seu governo passaram a assumir o papel central nessas tratativas. Os europeus se esforçaram em não ser alijados do processo e desencadearam, por sua vez, um processo autônomo complementar. Deixou, assim, de haver espaço para atores de fora desse eixo, como o Brasil e China", pontua.

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Lula foca nas eleições de 2026

Quando questionados sobre um possível envolvimento do governo brasileiro nas negociações em curso, interlocutores do Planalto afirmam que o Brasil segue engajado por meio do documento proposto em conjunto com a China, e que o país está disposto a cooperar, caso seja convidado. Apesar do discurso adotado pelo governo petista, o conflito não aparece mais em declarações públicas do presidente Lula, como era frequente nos dois primeiros anos do terceiro mandato.

O professor Elton Gomes, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), avalia que essa mudança de postura pode ser um reflexo da preocupação do governo com questões internas. "A condição econômica do país e a queda de popularidade do governo, como também problemas de articulação com o Congresso, têm demandado bastante [da gestão petista]. Isso preocupa muito a agenda do presidente e, nesse contexto, o próprio Lula escanteia a política externa", analisa.

Focado nas eleições presidenciais de 2026, Lula tem priorizado a agenda interna enquanto tenta recuperar sua popularidade, que tem sofrido quedas consecutivas. Além disso, analistas consultados pela Gazeta do Povo avaliam que o petista pode ter dado um passo atrás em declarações sobre geopolítica também priorizando a realização de eventos internacionais que o Brasil sediará neste ano, que acontecem ainda em um contexto fragilizado com o retorno de Donald Trump ao poder.

O Brasil vai ser o cenário de ao menos três eventos internacionais que recebem presidentes de outros países. São eles: a COP-30, que será sediada em Belém, em novembro; a Cúpula de Líderes dos Brics, que acontece no Rio de Janeiro, em julho; e, no final do ano, a Cúpula de Líderes do Mercosul.

Plano da China e do Brasil visava envolver países em desenvolvimento no debate pela paz

Apoiado no discurso de reintegração do Brasil ao cenário internacional, em diversas ocasiões, Lula reafirmou o desejo de contribuir para as negociações de paz na Ucrânia. Logo após retornar ao Palácio do Planalto, em janeiro de 2023, quando a guerra no Leste Europeu estava prestes a fazer um ano, o mandatário deu início ao envolvimento de seu governo com o conflito.

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Ainda no primeiro ano do terceiro mandato, Lula enviou seu assessor para assuntos especiais, o ex-chanceler Celso Amorim, para Moscou e também para Kyiv a fim de discutir a guerra iniciada pelo ditador russo. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, também teve a missão de manter diálogos com as chancelarias de ambos os países para encontrar meios de intermediar o fim das hostilidades na Europa.

Em meio a discursos contraditórios vistos como favoráveis à Rússia, Lula chegou a sugerir a criação de uma espécie de "Clube da Paz", onde a comunidade internacional poderia discutir, em conjunto, uma mediação para a guerra. “A minha sugestão é que a gente crie um grupo de países, que tente sentar à mesa com a Ucrânia e com a Rússia para tentar encontrar a paz”, disse Lula em janeiro de 2023.

A proposta foi levada a outros países, como os Estados Unidos, Alemanha e França, mas não obteve apoio dessas nações. Em meados de 2024, a ideia culminou em uma proposta denominada: "Entendimentos Comuns entre o Brasil e a China sobre uma Resolução Política para a Crise na Ucrânia". Baseado em seis pontos, o documento pede pela redução gradual da guerra e sugere a realização de uma conferência internacional de paz que seja reconhecida por Rússia e Ucrânia para discutir uma solução do conflito.

Brasil e China tentaram chamar atenção para o plano durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, realizada em setembro de 2024, um dos principais eventos da comunidade internacional, onde realizaram uma conferência para divulgar a proposta.

Na ocasião, foi criado o "Amigos da Paz na Ucrânia", com a intenção de buscar adesões para a proposta sino-brasileira. O plano chegou a contar com o apoio de nações do Sul Global – termo utilizado para designar os países em desenvolvimento –, mas não obteve engajamento dos países ocidentais.

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A proposta, que chegou a ser defendida por Lula em seu discurso na ONU, foi criticada por Volodymyr Zelensky. Durante discurso na Assembleia Geral, o líder ucraniano questionou o "real interesse" sino-brasileiro por trás da proposta e a denominou como um "plano vago". "Talvez alguém queira um Prêmio Nobel por sua biografia política, por uma trégua congelada em vez de uma paz real, mas os únicos prêmios que Putin dará a você, em troca, é mais sofrimento e desastres", criticou.

Apesar do engajamento sino-brasileiro e apoio russo à proposta, o plano apresentado pelo Brasil em parceria com a China não tem sido relevante para o atual contexto de negociações por um cessar-fogo. O presidente Donald Trump é quem tem mediado uma solução para o conflito em diálogo com a Rússia e com a Ucrânia, discutindo os termos que podem estabelecer, nas próximas semanas, uma trégua de 30 dias para a guerra.

Na avaliação do professor Elton Gomes, da UFPI, o fato é que o Brasil nunca esteve, de fato, envolvido em possíveis negociações para um cessar-fogo. "O Brasil não é um país irrelevante, mas também não dispõe dos recursos de poder necessários para arbitrar em disputas dessas proporções. Não somos uma potência nuclear e nem possuímos o hard power que países como os Estados Unidos possuem. O Brasil produziu essa proposta e, apesar do peso da China nesse contexto, ela foi ignorada", pontua.

Brasil e China promoveram reunião na ONU para discutir a guerra

Representantes do Brasil e da China chegaram a se reunir nesta quinta-feira (20), na sede da ONU, nos Estados Unidos, para discutir desdobramentos da guerra. A reunião foi uma iniciativa do grupo "Amigos da Paz" e a intenção foi discutir a evolução das negociações, além das perspectivas de paz sob a ótica dos países do Sul Global.

Em declaração após a reunião, os embaixadores defenderam a participação de mais países nas negociações e ressaltaram que a ONU deveria ter um papel na mediação e implementação de um acordo de paz para o conflito. As afirmações foram vistas como críticas a Trump.

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"Nós acreditamos que a ONU possa desempenhar um papel na promoção dos esforços e da implementação de qualquer acordo de paz", declarou o representante brasileiro na ONU, embaixador Sérgio França Danese, ao lado do também representante chinês, Fu Cong.

Os dois representantes também ressaltaram o plano sino-brasileiro que propõe uma solução para o conflito e reafirmaram a disponibilidade do grupo em cooperar com as discussões em curso. "Como a situação continua a evoluir rapidamente, nós, como membros do Grupo de Amigos para a Paz, estamos comprometidos em manter um estreito envolvimento uns com os outros e com todas as partes relevantes", disseram.

Declarações polêmicas de Lula o afastaram de tabuleiro de negociações

Enquanto tentava projetar a si mesmo como um relevante agente geopolítico, Lula deu declarações que lhe renderam críticas de aliados históricos do Brasil. Em algumas de suas afirmações, chegou a dizer que a Ucrânia seria tão responsável pela guerra quanto a Rússia e acusou os Estados Unidos e a União Europeia de incentivarem o conflito em curso na Europa.

“Os comentários mais recentes do Brasil de que a Ucrânia deveria considerar ceder formalmente a Crimeia [península ucraniana ocupada pelos russos desde 2014] como uma concessão de paz são simplesmente equivocados, especialmente para um país como o Brasil, que votou [na ONU] para defender os princípios de soberania e integridade territorial [da Ucrânia]”, disse, em abril de 2023, o então porta-voz do Conselho de Segurança Nacional americano, John Kirby, que atuou na gestão de Joe Biden.

A declaração do porta-voz americano foi uma resposta a declarações que Lula deu durante uma coletiva de imprensa. Na ocasião, o petista relativizou a responsabilidade de guerra entre Rússia e Ucrânia. "A construção da guerra será mais fácil que a saída da guerra. A decisão da guerra foi tomada por dois países", afirmou Lula.

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As afirmações dúbias sobre a guerra na Europa se somaram a declarações contraditórias sobre a escalada do conflito na Faixa de Gaza, após o ataque terrorista do Hamas contra Israel em outubro de 2023. Enquanto o Ocidente se posicionou em defesa do governo israelense, Lula foi um crítico enérgico da contraofensiva conduzida pelo premiê Benjamin Netanyahu e aos prejuízos que a hostilidade do país causou à população palestina, que vive em Gaza.

Na avaliação de Elton Gomes, da UFPI, tudo isso contribuiu para afastar Lula da possibilidade de ser considerado relevante nas discussões sobre os conflitos em curso no mundo. "O presidente Lula emitiu algumas opiniões e deu declarações públicas que ressoaram muito mal perante a comunidade internacional. Nesse sentido, o Brasil, diante desses posicionamentos, ficou mal visto no cenário internacional", avalia.

Esse mal-estar ficou refletido ainda em eventos internacionais do qual Lula participou. No ano passado, durante Cúpula de Líderes do G7 na Itália, o mandatário brasileiro foi excluído de diálogos sobre a Ucrânia, apesar de ter participado de outras reuniões do bloco na ocasião. Lula também não foi convidado para colaborar em negociações para tratar o fim das hostilidades na Faixa de Gaza entre Israel e Hamas. Países árabes junto aos Estados Unidos mediaram os diálogos.