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A declaração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na última quarta-feira (29), de que soube com antecedência de uma operação da Polícia Federal contra seu irmão, em 2007, levantou a dúvida sobre a possibilidade de o petista ser investigado, por supostamente receber informação privilegiada e, com isso, ter favorecido um parente.
Lula contou o caso em uma entrevista à rádio Educadora, de Piracicaba (SP), ao ser questionado se teria envolvimento ou ao menos se teria sido negligente em relação às acusações de corrupção durante seu governo. Ele respondeu que um presidente pode não saber de tudo que ocorre no governo.
Depois, admitiu que soube, com 12 horas de antecedência, de uma busca e apreensão realizada na casa de Genival Lula da Silva, seu irmão mais velho, conhecido como Vavá e já falecido, em junho de 2007, numa investigação contra um esquema de contrabando de máquinas caça-níquel.
“No nosso governo, a Polícia Federal foi na casa do meu irmão. Eu fiquei sabendo 12 horas antes, porque eu estava na Índia e tinha fuso-horário. E eu falei: se a Polícia Federal quer ir lá, que vá, que investigue e depois peça desculpa. O problema não é acusação. O problema é que quando você é canalha e faz a acusação, depois você tem que ter o caráter de pedir desculpa. A palavra desculpa não custa nada”, afirmou Lula.
O relato chamou a atenção por, coincidentemente, ter ocorrido em meio à suspeita de que o presidente Jair Bolsonaro teria vazado para o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro a informação de que ele poderia sofrer busca e apreensão da PF, no âmbito da investigação sobre um suposto esquema de tráfico de influência no ano passado, durante sua gestão na pasta.
A PF interceptou uma conversa telefônica em 9 de junho, em que Ribeiro disse à filha que, naquele dia, recebeu uma ligação em que Bolsonaro teria lhe dito que estava com um “pressentimento” de que ele seria alvo de busca e apreensão – a medida foi executada no último dia 22 de junho, quando o ex-ministro foi preso, em sua casa, em Santos (SP).
Por causa dessa conversa, o Ministério Público Federal pediu que o inquérito contra Ribeiro fosse transferido da primeira instância da Justiça Federal em Brasília para o Supremo Tribunal Federal (STF), onde Bolsonaro poderá ser investigado pelo suposto cometimento dos crimes de violação de sigilo funcional, com dano à Administração Judiciária, e favorecimento pessoal. Os dois crimes têm penas que, somadas, podem chegar a 6 anos e 6 meses de prisão.
Para saber se Lula pode ser investigado pelos mesmos crimes, a Gazeta do Povo procurou professores de direito penal com experiência na área. Para eles, a resposta é negativa.
Mesmo se houvesse indícios de que Lula teria avisado o irmão, crimes já teriam prescrito
Na hipótese de o petista ter avisado seu irmão da operação – algo nunca comprovado, nem investigado pela PF – ele poderia ser investigado pelos mesmos crimes, mas somente se o fato tivesse ocorrido após 2010.
Antes disso, o primeiro crime, de violação de sigilo funcional, que consiste em “revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação”, prescreveu em 2019. Já o crime de favorecimento pessoal, definido como ato de “auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime, prescreveu em 2010.
Isso porque para os fatos ocorridos antes de 2010, a prescrição alcança a fase investigatória. Para responsabilizar uma pessoa suspeita, o tempo que se passa entre o fato e um eventual recebimento da denúncia não pode ultrapassar 12 anos para o crime de violação de sigilo e de 3 anos para o crime de favorecimento pessoal.
“Se o fato tivesse ocorrido após 2010, aí sim poderia ser investigado, mesmo se passados 10, 15 ou 20 anos, não importa. Agora, se o fato ocorreu antes, ele prescreve entre a data do fato e a data da denúncia”, explica o professor de direito penal e delegado Silvio Maciel.
Nenhuma investigação sobre o caso foi aberta na época, nem depois. Outro elemento crucial para a abertura de uma investigação – que, frise-se, seria inútil, em razão da prescrição – seria a existência de indícios de que Lula teria repassado a informação ao irmão, de modo que ele pudesse, antes da operação, destruir provas que pudessem comprometê-lo.
“Pelo que se sabe, ele recebeu a informação, mas não repassou a informação. Pelas informações disponíveis, ele não cometeu crime nenhum, porque o fato de ter recebido a informação, não é crime, até porque ele não pediu, procuraram ele para dar a informação. Só teria cometido crime se tivesse repassado a informação ao irmão dele”, afirma Silvio Maciel.
Para o professor e delegado, uma investigação sobre o episódio, se realizada hoje, ainda seria “fatalmente arquivada”. “Não se conseguiria produzir provas, porque se resumiria ao depoimento dos envolvidos, e eles negariam, obviamente, que o Lula passou informação para o irmão dele. A não ser que tenha sido registrado em algum e-mail, algum documento, alguma conversa de WhatsApp, que nem existia nessa época... Tem também essa dificuldade de ter sido há muito tempo, e provavelmente isso não está registrado em lugar nenhum.”
Lula e ex-ministro usam caso para dizer que não houve interferência na PF
Em março de 2020, Lula contou o mesmo caso durante uma entrevista à rádio Tiradentes, de Manaus, como um exemplo de que nunca teria interferido na PF, nem tentado, como presidente, derrubar busca e apreensão contra Vavá.
“Eu fui avisado que a polícia ia fazer uma operação e invadir [a casa do] meu irmão. Você sabe o que eu disse ao meu ministro? Eu disse: ‘olha, quem foi avisado não foi o Lula, irmão do Vavá, quem foi avisado foi o presidente da República. A Polícia Federal cumpra suas funções e depois vamos ver o que é que dá. E eles foram e invadiram a casa de meu irmão. Levaram computador da minha sobrinha, fizeram coisas indecorosas, sabe... e eu não me meti na Polícia Federal.”
A mesma versão do episódio já havia sido contada por Tarso Genro, que era o ministro da Justiça de Lula em 2007. Dez anos depois, em 2017, ele admitiu ao ex-juiz Sergio Moro que avisou o ex-presidente sobre a operação contra Vavá. Tarso Genro depôs como testemunha de defesa num processo contra o petista no âmbito da Lava Jato, e também usou o relato para tentar demonstrar que o chefe não interferia nas investigações da PF.
“Eu tinha assumido recentemente o Ministério da Justiça e chegando de uma viagem ainda na Base Aérea (em Brasília) estava lá me aguardando o chefe da Polícia Federal, Paulo Lacerda, e o diretor de Inteligência da Polícia Federal, me disseram ‘olha, ocorrerá uma diligência amanhã pedida pelo Ministério Público e determinada à Polícia Federal na casa de um irmão do presidente, nós queremos lhe avisar’. Eu digo: ‘Está tudo regular? Tem ordem escrita? Tem orientação? Então que se proceda’”, disse o ex-ministro na audiência.
Genro disse que contou sobre a operação a Lula após a meia-noite.
“Cumprindo minhas obrigações como ministro procurei o presidente Lula, já era depois da meia-noite. ‘Presidente, queria lhe informar que amanhã cedo vai ocorrer uma diligência na casa do seu irmão’. O presidente me perguntou ‘está tudo legal, tudo regular?’ Eu disse ‘sim, está tudo legal, tudo regular’. Ele disse: ‘Então, que se proceda essa diligência, te agradeço por informar.’”
Sob condição de anonimato, um experiente ex-servidor do Ministério da Justiça disse à reportagem ser praxe que, em “operações muito sensíveis”, o titular da pasta seja avisado, sem que isso represente um crime ou uma infração administrativa.
“Mas isso é bem em cima da hora, cinco minutos antes da operação. Pode ocorrer quando há uma busca e apreensão contra uma autoridade do Congresso. Mas, no caso de Lula, era mais delicado, porque envolvia o irmão do presidente, que foi avisado bem antes”, disse.
Ainda assim, ele disse que, quando esses avisos são internos – se limitam a superiores dentro da própria PF ou mesmo no âmbito do Ministério da Justiça, e quando não há risco de vazamento para favorecer um alvo –, não se trata de algo ilícito.
Versão de Lula e Genro é controversa
A versão positiva de Lula e Genro sobre o caso envolvendo Vavá, no entanto, não condiz com a cobertura da imprensa na época da operação. Jornais que acompanharam bastidores informaram que o ex-presidente teria ficado incomodado com a investigação da PF.
No dia da busca, 5 de junho de 2007, a Folha de S.Paulo, que enviou um repórter a Nova Déli para cobrir a viagem de Lula à Índia, informou que Lula “reagiu com grande irritação ao ser informado da inclusão de seu irmão na investigação da PF”. “Ele reclamou por não ter sido avisado com antecedência e disse a auxiliares que já havia pedido ao irmão que tomasse cuidado para não comprometê-lo”, registrou ainda o jornal.
No dia 12 de junho, uma semana após a operação contra Vavá, o Estado de S.Paulo informou que, ao mencionar o caso do irmão durante reunião com os ministros do núcleo político do governo, Lula “manifestou preocupação com possíveis excessos cometidos nas investigações da Polícia Federal”. Havia preocupação com o uso abusivo de interceptações telefônicas e vazamento das conversas com objetivo de forçar uma condenação antecipada sobre os alvos.
Vavá foi alvo de busca e apreensão por causa da suspeita de que teria recebido pagamento de um político sócio de uma casa de jogos de azar. A polícia queria prender o irmão de Lula, mas o juiz do caso negou, por entender que ele não fazia parte da quadrilha. Em 2014, a Justiça Federal arquivou a investigação.
Em 2008, uma reportagem publicada pelo Estado de S.Paulo relatou que Lula, na época, reclamava com assessores pelo fato de a PF ter decidido se especializar em operações anticorrupção “de olho na repercussão junto à mídia”. Na época, um filho do ex-presidente José Sarney havia sido alvo de investigação, o que teria causado grande incômodo no MDB.
“Na avaliação do Planalto, por trás da admiração pública provocada com a prisão de políticos e empresários, a partir, muitas vezes, de ilações feitas com dados preliminares das investigações, haveria também o interesse em acumular informações que não são usadas formalmente nos inquéritos, mas são postas a circular em operações de vazamento bem arquitetadas. Lula já reclamou, mais de uma vez, do trabalho que a PF fez com o irmão dele, Genival Inácio da Silva, o Vavá, na Operação Xeque-Mate”, informou o jornal.
Vavá morreu em janeiro de 2019, em São Bernardo do Campo, quando Lula estava na cadeia, em Curitiba. Ele pediu para ir ao enterro, mas a decisão de liberá-lo saiu pouco antes do sepultamento, e o ex-presidente acabou desistindo.