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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve firmar um acordo com o Grupo de Mídia da China, conhecido por sua sigla CMG e controlado pelo líder comunista chinês, Xi Jinping. Pequim pode usar a parceria para influenciar o telespectador brasileiro e criar uma visão geral mais positiva do governo chinês, segundo analistas.
A China teve sua imagem desgastada por ter sido o país de origem da pandemia de Covid-19 e depois por ter usado seu poder, como maior fornecedor de insumos médicos, para fazer barganhas políticas e econômicas. Além disso, o sistema político comunista e ditatorial do líder Xi Jinping também não é bem visto em países democráticos do Ocidente.
O Grupo de Mídia da China é uma TV estatal criada em 2018 e controlada pelo Partido Comunista Chinês. Ele inclui empresas como a Central China Television, China National Radio, entre outras.
O acordo de cooperação deve ser formalizado durante a passagem de Lula pela China. Ele prevê, entre outros pontos, a "troca e cooperação de conteúdos em prol do desenvolvimento econômico, social e sustentável dos dois países".
Além disso, o acordo prevê um intercâmbio de profissionais. Ou seja, chineses poderão atuar no Brasil e profissionais nacionais poderão fazer esses estágios na China.
"O memorando assinado entre o Brasil e a estatal chinesa tem por objetivo estabelecer uma série de parcerias, como: cooperação de conteúdo, colaboração de inovação de tecnologias em desenvolvimento econômico e social; organização e cobertura de eventos", informou o ministério das Relações Institucionais em nota.
A pasta, comandada pelo ministro Alexandre Padilha é a responsável pela coordenação do acordo entre os dois países. A parceria terá validade de dois anos com renovação automática por igual período.
Para Marcelo Suano, professor de Relações Internacionais do Ibmec, é preciso haver um critério na distribuição dos conteúdos da China para o Brasil. "A questão de eles colocarem conteúdo na mídia brasileira é um ponto chave. É interessante que os países façam acordos que permitam que as empresas de mídia possam colaborar uma com a outra. O problema está na colocação de conteúdo. Como que eles serão disponibilizados? Como que eles serão trabalhados na sociedade?", questiona Suano.
Ainda de acordo como o professor, o movimento pode ser encarado como uma estratégia de diplomacia pública por parte da China. "As pessoas acham que diplomacia pública é aquela feita entre os governos, mas diplomacia pública é maneira como um país desenvolve uma estratégia para entrar na sociedade dos países que ele está se relacionando para transmitir uma visão positiva daquilo que ele é e daquilo que ele quer", completa.
Bolsonaro aceitou tratado semelhante na área audiovisual
A proposta segue o mesmo modelo de tratado assinado em 2019 pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a visita de Xi Jipping ao Brasil. À época, o governo brasileiro alegou que a ideia era promover o intercâmbio cultural e audiovisual entre os dois países.
Nos termos do acordo, estava previsto o intercâmbio de filmes e programas televisivos e a promoção de festivais de cinema brasileiro na China e festivais de cinema chinês no Brasil, para divulgação recíproca de filmes. Pretendia-se, ainda, iniciar conversas sobre a eventual possibilidade de estabelecer um canal de televisão por assinatura dedicado exclusivamente a programas e filmes sino-brasileiros.
Porém, assim como na economia, Brasil e China estão em patamares muito diferentes no audiovisual. Os chineses possuem uma indústria audiovisual estatal em ascensão e entraram com verbas milionárias em um mercado brasileiro não tão aquecido.
O mercado audiovisual do Brasil também dependente de financiamento estatal, mas não é controlado pelo Estado e sim pela iniciativa privada. Mas, grande parte das produções conta com financiamentos por meio da lei do audiovisual, que permite captação de verbas com empresas privadas em troca de abatimento de impostos. As produções com subsídio chinês vêm tentando deslanchar no Brasil, mas têm esbarrado em diferenças culturais que dificultam o andamento dos projetos.
Agora, o governo Lula argumenta que o novo acordo preverá a cooperação de conteúdo, de tecnologia, organização e cobertura de eventos. Antes da viagem de Lula à China, o jornalista Hélio Doyle, presidente da EBC, teve uma reunião com o presidente do CMG da América Latina, Zhu Boying, para discutir a retomada da parceria.
Doyle manifestou interesse em usar as plataformas da CMG para disseminar conteúdo sobre o Brasil na China. Além disso, o Palácio do Planalto declara negociar outros acordos da mesma natureza com Portugal e Espanha, e há interesse em estendê-los para outras nações da União Europeia, Estados Unidos e Canadá.
Na avaliação de Marcelo Suano, os chineses trabalham com o "fator tempo" para avançar com suas estratégias. "Se isso vai ser feito em longo prazo, está dentro da estratégia chinesa de diplomacia cúbica. Eles têm uma coisa com a qual nós não temos, que é a coisa do tempo. Então, eles avançam uma peça e esperam, se não tiver ninguém olhando eles avançam rapidamente duas três quatro peças", argumenta o professor de Relações Internacionais.
Relatório cita o Brasil em campanha da China para influenciar a mídia global
O acordo fechado com o Brasil pelo grupo de comunicação controlado pelo partido comunista chinês faz parte da estratégia da China para ampliar sua influência pelo mundo. É o que aponta um relatório feito pela ONG Freedom House, sediada em Washington e parcialmente financiada pelo governo dos Estados Unidos da América.
O movimento de Pequim faz parte de uma estratégia para tentar reverter as opiniões negativas que o mundo tem sobre o país. A avaliação chinesa é de que essa má reputação seria fruto de percepções equivocadas devido à forma como a mídia do Ocidente retrata o país asiático. Como resposta, o regime comunista chinês busca influenciar a opinião global e criar uma visão mais positiva sobre a China por meio de mídias estatais.
"A influência da mídia de Pequim no Brasil é significativa e crescente. Durante o período de cobertura, de 2019 a 2021, a mídia estatal chinesa e os atores diplomáticos se envolveram ativamente na diplomacia pública e expandiram sua presença nas mídias sociais. Os meios de comunicação estatais chineses também assinaram ou renovaram acordos de cooperação com a mídia privada e pública brasileira", diz o documento da Freedom House.
Nessa estratégia, a estatal chinesa de comunicação tentou abordar temas sensíveis como a independência de Taiwan, além do debate em torno da eficácia das vacinas chinesas contra a Covid-19. O país asiático também investiu em “mensagens positivas sobre a relação econômica” entre as duas nações, destacando-se a importância das empresas chinesas para a rede 5G brasileira.
No ano passado, a empresa chinesa Huawei foi proibida de vender equipamentos de comunicação nos Estados Unidos. A Huawei é investigada por espionagem no país.
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tinha resistências sobre a participação da Huawei nas redes de 5G do Brasil, citando as mesmas preocupações dos Estados Unidos. Porém, as diretrizes para a implementação da tecnologia, aprovadas em 2021, não contêm restrições à empresa chinesa, que fornece equipamentos para as três maiores operadoras de telefonia do país. Isso porque seria tecnicamente inviável substituir equipamentos já instalados pela Huawei no Brasil.
Embora a presença da mídia da China seja relevante por aqui, o relatório da Freedom House afirma que “não houve evidência de campanhas de desinformação originadas na China que usaram comportamento coordenado ou inautêntico para atingir especificamente consumidores de notícias no Brasil”. A preocupação se justifica porque durante a pandemia, o governo chinês lançou campanhas de desinformação na web nos Estados Unidos e no continente africano.
Ainda de acordo com o relatório, os brasileiros apresentam forte resistência aos conteúdos de mídia de veículos estrangeiros. “O Brasil tem fortes limites à propriedade estrangeira nos setores de mídia e telecomunicações. O país também tem uma tradição de jornalismo investigativo, um ecossistema de mídia diversificado e um setor ativo da sociedade civil, que servem como base para a resiliência diante da influência da mídia estrangeira”, diz.
China ampliou investimentos para conquistar público estrangeiro em diversos países
A estratégia batiza de soft power, ou poder suave na tradução livre, foi reforçada pelo governo da China especialmente depois de 2020. Uma pesquisa do Pew Research Center’s Global Attitudes mostra que as opiniões negativas sobre o país atingiram níveis históricos depois do início da pandemia de Covid-19.
Para a maioria dos entrevistados, de várias nacionalidades, a China fez um trabalho ruim para lidar com o surgimento da Covid-19. Além disso, as taxas de aprovação de Xi Jinping entre os entrevistados das economias mais avançadas estiveram em queda.
Entre as ferramentas de soft power chinesas estão a promoção da cultura do país com intercâmbios culturais em educação e pesquisa, cooperação econômica, e o uso de mídias para mensagens políticas. No entanto, esses veículos de comunicação são criticados pela sua cobertura nada imparcial sobre a ditadura chinesa, pela distorção de informações e por promover narrativas contra governos de outros países, em defesa dos interesses de Pequim.
Estudo diz que a China transformou a pandemia de Covid-19 em oportunidade
O estudo The Covid-19 Story: Unmasking China’s Global Strategy (A história da Covid-19-Desmascarando a Estratégia Global da China), encomendado pela Federação Internacional de Jornalistas (IFJ), mostrou que a pandemia do coronavírus foi habilmente transformada de problema em oportunidade pela China.
Isso mesmo após Pequim ter adotado políticas autoritárias de quarentena que violaram liberdades individuais dos cidadãos e tiverem efeitos econômicos negativos em todo o mundo.
Na estratégia, o governo de Xi Jinping ativou seus canais de disseminação de informações no exterior para inundar os meios de comunicação estrangeiros com ofertas de notícias nacionais e internacionais em idiomas locais, semeando matérias positivas sobre como administrou a pandemia.
O relatório da pesquisa identificou uma abordagem mais intervencionista por parte de Pequim, com o aumento da exposição de embaixadas e dos embaixadores nesses países.
"Os embaixadores tornaram-se mais ativos, expressando críticas à cobertura da mídia local e até mesmo sobre política, fortalecendo assim a influência da China na mídia além de suas fronteiras", destacou a pesquisa realizada em 50 países.
O levantamento mostrou, por exemplo, que países destinatários das vacinas desenvolvidas pela China foram os mais propensos a tratar de forma positiva a abordagem sobre a pandemia. A influência foi vista de forma mais positiva na África, onde metade dos entrevistados acredita que seja benéfica e onde muitos países utilizam vacinas chinesas.
Todos os africanos entrevistados pelo estudo relataram uma presença visível do país na imprensa local, e metade disse que a cobertura da China se tornou mais positiva após a Covid. Três quartos deles disseram ver a cooperação de conteúdo com entidades chinesas como positiva. Mas, segundo analistas, provavelmente nunca se saberá qual foi o número real de mortes na China por causa da pandemia.
Em 2021, os conteúdos da TV estatal chinesa foram banidos do Reino Unido por infringir as leis locais sobre controle de mídia, que impedem a propriedade de veículos por partidos políticos. Austrália e Alemanha seguiram pelo mesmo caminho, com sanções e suspensões à emissora.