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Em seu primeiro destino internacional de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visita a África com a intenção de retomar os laços com o continente. O Brasil se aproximou de países da região nos dois primeiros governos Lula através de acordos bilaterais envolvendo comércio e prestações de serviços. O cenário para uma recente reaproximação, contudo, não é o mesmo devido à expansão da influência da China e da Rússia na região, que vêm investindo pesado para ganhar a simpatia de líderes locais. Lula vai ter que fazer apostas muito mais altas se quiser entrar nessa competição.
A Rússia vinha exercendo influência cada vez maior na África por meio do envio de mercenários e empresas mineradoras e de energia para explorar riquezas naturais de países como Mali, República Centro Africana e República Democrática do Congo especialmente a partir dos anos de 2010. Essa tendência foi impulsionada pela invasão russa à Ucrânia em 2022, quando o Kremlin redobrou os esforços para se aproximar de governos africanos. Em troca de influência diplomática passou a cuidar até da segurança e das campanhas políticas de presidentes e líderes regionais.
Já a China iniciou em 2013 sua política externa que ficou conhecida como "Nova Rota da Seda", que consistiu em financiar grandes obras de infraestrutura, como portos e ferrovias, em países em desenvolvimento, grande parte deles na África, como uma forma de se contrapor à influência das potências do Ocidente. Os empréstimos chineses a governos africanos chegaram a um pico de US$ 28,5 bilhões em 2016 e hoje estão em tendência de queda.
Essa ofensiva comercia se reflete inclusive em números do governo do Brasil. Dados da Agência Brasileira de Promoção à Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) mostram que, em 2003, o Brasil era o 16º principal exportador para a África, enquanto a China ocupava a 7ª posição. Em 2022, o gigante asiático se tornara o maior exportador para a África, enquanto o Brasil subiu apenas uma posição no ranking.
A Rússia fornece armas, apoio e treinamento militar para diversas nações africanas. Apenas no ano passado, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou a assinatura de acordos de cooperação militar com mais de 40 países do continente. Desde 2020, ano seguinte ao fórum Rússia-África, quatro países sob influência russa sofreram golpes militares: Mali, Burkina Faso, Guiné e o Níger, último aliado do Ocidente na região do Sahel. Analistas internacionais suspeitam de apoio russo em todas essas ações.
Ou seja, nações africanas estão se distanciando da influência dos antigos colonizadores europeus e Rússia e China estão aumentando sua influência na região com dinheiro e armas. Para tentar legitimar o neocolonialismo, a adotam o discurso de que seria preciso estabelecer uma nova ordem mundial não ditada pelos Estados Unidos ou países europeus. O Brasil, que buscou ao longo das últimas décadas uma aproximação com nações africanas, também perde espaço nesse cenário.
Lula desembarcou no Egito nesta quarta-feira com o objetivo principal de tentar mostrar que está participando das negociações de um cessar-fogo entre Israel e o grupo terrorista Hamas e também tentar fechar acordos comerciais. Em seguida, deve viajar para a Etiópia para se encontrar com lideranças da União Africana.
Desde que assumiu para este terceiro mandato, o petista fala sobre o desejo de reforçar os laços com o continente africano que, segundo ele, foram estremecidos durante o mandato de seu antecessor, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
"Nos últimos anos, lamentavelmente, o Brasil tratou os países africanos com indiferença. Pela primeira vez desde a redemocratização, tivemos um presidente que não fez nenhuma visita à África. Agora, vamos corrigir esses erros e vamos alçar nossa parceria estratégia a um novo patamar”, disse Lula durante visita a Luanda, capital angolana, no último ano.
Corrupção e acordos polêmicos marcaram acordos com países africanos
O relacionamento Brasil-África encontrou percalços após o início da operação Lava Jato que encontrou diversos processos fraudulentos e esquemas de propinas em contratos do BNDES com países africanos. Países como Angola foram citados diversas vezes durante investigações da operação e apontados como parte de um esquema de corrupção que envolveu diversos países africanos.
A maioria das acusações envolve a empreiteira Odebrecht (atual Novonor). A companhia foi uma das apontadas em esquemas de lavagem de dinheiro, propinas e acusada até de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão em países da África. Outro fator que contribuiu para o afastamento dos últimos anos foi a inadimplência de alguns países aos repasses feitos pelo BNDES.
Assim como os calotes dados por Cuba e Venezuela, Moçambique ainda não havia quitado a dívida milionária que tinha com o Brasil até o ano passado. Repasses do BNDES para o país africano foram utilizados para a construção de um aeroporto, feito pela Odebrecht, e para barragem de Moamba-Major, obra da Andrade Gutierrez.
Além das adversidades relacionadas aos pagamentos não realizados e os casos de corrupção, presidentes como Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) priorizaram o relacionamento bilateral com outros países, o que abriu uma lacuna no relacionamento Brasil-África.
“A influência de China e Rússia na África se consolidou com a criação do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), grupo que tem uma grande representatividade global por reunir algumas das nações mais populosas do mundo”, pontua Rui Mucaje, relembrando que a agenda do bloco é pautada por uma reforma global.
A relação Brasil-África foi valorizada nos discursos de Lula
O relacionamento entre Brasil e África é histórico e ganhou forte apelo nos primeiros mandatos de Lula na Presidência da República. Entre 1997 e 2002, as exportações brasileiras para o continente não ultrapassavam a casa dos US$ 2 bilhões. Em 2004, quando Lula já estava no poder, o Brasil exportou mais de US$ 4,2 bilhões para nações africanas. Os dados são da Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
Já em 2008, no segundo mandato do presidente Lula, as exportações do Brasil para África ultrapassaram US$ 10 bilhões. Entre os países africanos que se destacaram no comércio com o Brasil estão a Egito, Argélia, África do Sul, Nigéria e Angola. Levantamento feito pela Gazeta do Povo, de acordo com dados disponibilizados pelo Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio, mostra que apenas o Egito importou mais de US$ 40 trilhões em produtos do Brasil entre 1997 e 2023 — anos em que os dados de comércio estão disponíveis para consulta.
Essas negociações, contudo, não ficaram apenas no comércio bilateral. A parceria do Brasil com países africanos envolveu o câmbio de tecnologia e também exportação de serviços, que os governos Lula e Dilma fizeram com diversos parceiros. O presidente da AfroChamber (organismo responsável por auxiliar e intermediar as relações da América Latina com a África), Rui Mucaje, relembra ainda que houve uma “ênfase particular ao desenvolvimento de infraestrutura, incluindo estradas e obras correlatas”.
“Este período também foi marcado por uma tentativa de cooperação agrícola, destacando-se a atuação da Embrapa no continente africano. Complementando estas iniciativas, houve um crescimento da presença diplomática do Brasil, evidenciado pela abertura de novas embaixadas”, conta Mucaje.
O continente africano foi, ao lado da América Latina, a região que mais se beneficiou das negociações feitas pelo Brasil através do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Serviços). De acordo com o banco, foram emprestados, entre 1998 e 2017, US$ 10,5 bilhões (R$ 51 bilhões) para financiar obras de infraestrutura no exterior.
“Os países que mais se beneficiaram dos financiamentos foram Angola, Nigéria e Senegal. Além da exportação de bens, as construtoras brasileiras também fizeram diversas obras de infraestrutura na região”, relembra Michel Alaby, diretor Regional da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil (Cisbra) em São Paulo.
A Angola teria sido o país que mais se beneficiou da exportação de bens e serviços do BNDES, cerca de US$ 3 bilhões do banco teriam sido enviados ao país. Os valores foram direcionados para construção de estradas por diversas regiões na Angola e também para a Hidrelétrica de Cambambe. “Também foram exportadas máquinas e equipamentos agrícolas para diversos países africanos com financiamento”, relembra Alaby.
A parceria proposta pelo Brasil para países africanos também envolvia um certo de auxílio para a produção e desenvolvimento em diversas vertentes, inclusive agrícolas. Países como Namíbia e Moçambique foram impactados por programas nesse sentido.
“Esse esforço coordenado visava transmitir um claro sinal do desejo brasileiro de estreitar laços com os países africanos – uma mensagem que encontrou eco, visto que vários países africanos abriram suas economias para produtos e serviços brasileiros”, avalia o presidente da AfroChamber.
China utilizou-se de capital para se aproximar da África
Em uma espécie de guerra comercial com os Estados Unidos, Pequim quer ocupar o posto americano de maior potência do mundo. Traçando este objetivo, o autocrata chinês, Xi Jinping, tem apostado em uma relação Sul-Sul [com os países do chamado Sul Global] para garantir apoio e aliados ao redor do mundo. Nos últimos anos, a China passou a investir no relacionamento com países latinos e africanos a fim de alcançar este objetivo e tem conseguido colher frutos deste investimento.
“Essa presença chinesa é sentida em muitos países africanos. A própria sede da União Africana é um exemplo disso, tendo sido construída pelo governo chinês e por suas empresas”, relembra Rui Mucaje, presidente da AfroChamber.
Parte do projeto de expansão chinês na América Latina e África faz parte da Nova Rota da Seda. Pequim tem construído infraestrutura para criar rotas marítimas e terrestres ligando a China aos mercados europeu, latino-americano, africano e asiático. Os países em desenvolvimento eram atraídos pela abundância de recursos para investimentos e em promessas de avanço tecnológico e industrial.
Consolidada como a segunda maior economia do mundo, a China chega a esses países com grandes obras e colocando essas nações na rota de um comércio mundial. Na África, os cinco países que mais receberam investimento da China nos últimos 10 anos foram: República Democrática do Congo (US$ 3,35 bilhões); Zâmbia (US$ 2,80 bilhões); Quênia (US$ 2,24 bilhões); Etiópia (US$ 2,08 bilhões); África do Sul (US$ 1,89 bilhões) e Nigéria (US$ 1,86 bilhões) — alguns deles países que já foram grandes parceiros do Brasil.
Para especialistas, contudo, esses países podem acabar em uma espécie de armadilha. Além de um contrato que, na maioria das vezes, favorece ao governo chinês, esses países não teriam condições de quitar o saldo contraído com Pequim e estariam sempre à mercê do governo chinês. Os acordos em alguns casos permitem a instalação de áreas militares em portos, para que navios de guerra chineses possam receber apoio logístico quando atracados nos portos dessas nações que receberam investimento chinês.
A consolidação da Rússia no continente africano
A presença da Rússia na África não é recente e acontece há décadas. Rui Mucaje, presidente da AfroChamber, opina que a ação russa no continente é histórica e existe desde as lutas de libertação das antigas colônias. O analista ainda explica que grande parte dos países africanos veem a Rússia como aliado devido ao "suporte" fornecido por Moscou para conquistarem sua independência, o que é muito "valorizado na maioria das culturas africanas”.
Países africanos mantinham relações com a União Soviética e esses laços foram perpetuados pela Rússia. Muitos líderes africanos defendiam que as armas e o treinamento militar fornecidos pelo país eram essenciais na luta contra a minoria branca e o colonialismo enfrentado na África.
Contudo, investigações independentes, como uma da rede britânica BBC, já mostraram que esse riscurso faz parte de uma estratégia de neocolonialismo inserida dentro da propaganda russa.
Em troca de recursos minerais e se apoiando na narrativa colonial, a Rússia passou a oferecer não apenas treinamento, mas também proteção militar a determinados governos da África. A presença do Grupo Wagner (grupo mercenário russo acusado de atuar sob os interesses de Putin) na África influenciou em rebeliões e na tomada de poder por ditadores.
O grupo mudou de cara após a morte de seu líder Yevgeny Prigozhin mas ainda é acusado de fornecer armamentos, mercenários e auxiliar em capanhas de desinformação em países onde está presente. Há anos, o Kremlin investe no relacionamento com a África com a intenção de criar aliados, além de promover uma campanha contra a aproximação da Europa com nações africanas.
Em uma dessas estratégias, o Kremlin utiliza métodos digitais para espalhar fake news e fazer postagens antiocidentais e pró-Rússia na África. Campanhas como essa foram bem-sucedidas no continente, sobretudo porque os abusos europeus da época colonial ainda são uma questão latente para a África. Tal fato histórico também pode ter favorecido para aproximação do Brasil com nações africanas, já que o país possui uma história pautada pela colonização europeia e marcada pela escravidão.
Desde as investidas russas no continente, a África emergiu como o bloco mais simpático à Rússia nas Nações Unidas: numa votação de fevereiro de 2023, conclamando a Rússia a retirar-se da Ucrânia, 22 países da União Africana, de 54 membros, se abstiveram ou não votaram. Eritreia e Mali votaram contra a resolução.
O espaço perdido pelo Brasil
No Egito, Argélia, África do Sul, Nigéria e Angola, por exemplo, países que se destacam na relação bilateral com o Brasil, Putin e Xi Jinping já colocaram seus “tentáculos” e se mostram imponentes nestas regiões.
A Rússia se tornou um dos principais parceiros econômicos do Egito nos últimos anos, bem como a China, que atualmente ocupa o terceiro posto no comércio bilateral com o governo egípcio. Ainda na esteira dessas parcerias, o país africano está construindo sua primeira usina nuclear com apoio de Moscou: a construção terá de quatro reatores nucleares russos, com capacidade de 1.200 megawatts cada.
A Nigéria, quer já foi alvo de ofensivas diplomáticas do Brasil no passado, também divide a atenção russo-chinesa. O país, assim com vários outros da África, assinou acordos de parceria militar com a Rússia e acordos comerciais com a China. O país também entrou na Nova Rota da Seda, idealizada por Xi Jinping. Além de um porto marítimo no país, Pequim também se comprometeu com a construção de ferrovias na Nigéria.
A África do Sul está entre os cinco países que mais receberam investimentos da China na última década e a relação entre os dois países, conforme já afirmou o próprio Xi Jinping, ultrapassa as tratativas sobre comércio bilateral. Além da aproximação no Brics, empresas chinesas têm aumentado seu investimento no país.
O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, também não esconde sua aproximação com a Rússia. No último ano, o país sediou a cúpula dos Brics e Ramaphosa convidou Putin para estar presente nas reuniões afirmando que ele não seria preso caso fosse ao país. Com um mandado expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), o autocrata russo deve ser preso pelos países signatários da Carta das Nações Unidas (ONU), incluindo a África do Sul.
Já países como a Namíbia, que o Brasil já trabalhou com investimentos no passado, abriu amplamente seus mercados para a Rússia. Em 2023, a empresa nuclear e estatal russa Rosatom anunciou um projeto milionário no país para a mineração de urânio. O mesmo aconteceu com Moçambique, que possui parceria militar e de venda de armamento com Moscou enquanto oferece apoio político a Putin.
Ainda há espaço para o Brasil investir no relacionamento com a África?
É fato que o Brasil não possui a estrutura e capital para fazer investimentos na África como a China tem feito; bem como não tem o poder bélico ou influência para fechar acordos militares com nações africanas como a Rússia tem apostado. Porém, para os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o cenário não é o mais desanimador e as relações podem ser fortalecidas.
“Os países africanos vivem em constantes turbulências políticas e econômicas, com mudanças de governo, o que gera instabilidades na região. No caso do Brasil, como há laços fortíssimos de integração entre os povos, há perspectivas de que se possa avançar em acordos comerciais com a União Africana de Nações e buscar desenvolver plataformas de exportação de produtos africanos com componentes brasileiros de máquinas e equipamentos”, avalia Michel Alaby, presidente da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil.
Ele afirma ainda que mesmo que o Brasil tenha perdido espaço para Moscou e Rússia, é possível reforçar o relacionamento com nações que têm mostrado interesse em importar e exportar do que os produtores e empresas brasileiras podem oferecer. Alaby também relembra que a relação com diversas nações africanas mostrou bons números nos últimos anos e pode ser ampliada.
“No caso das relações comerciais com o Egito, Argélia, Nigéria e Angola que nos últimos anos cresceram mais de 150%, por exemplo, há potencial de importar mais produtos brasileiros. E em contrapartida, o Brasil pode garantir fornecimento de petróleo, combustíveis minerais e fertilizantes”, avalia o especialista.