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Dados sobre insegurança alimentar

Lula se escora em dado de ONG para dizer que tirou 24 milhões de pessoas da fome

Lula usa dados inflados de ONG para falar sobre redução da fome no Brasil.
Lula usa dados inflados de ONG para falar sobre redução da fome no Brasil. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem divulgando números sobre a diminuição da fome no Brasil em 2023. De acordo com os dados propagandeados pela atual gestão - especialmente por Lula e pela primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja -, 24 milhões de pessoas teriam deixado a situação de insegurança alimentar no país. 

"Vinte e quatro milhões de pessoas ficaram livres do pesadelo da fome", disse Lula em pronunciamento à nação feito no domingo (28). Janja, por sua vez, usou o dado durante uma fala feita em Paris, durante um evento com prefeitos de várias partes do mundo. “No terceiro mandato, o presidente Lula já conseguiu retirar da fome absoluta 24 milhões de pessoas”, disse a primeira-dama em vídeo compartilhado nas suas redes sociais. 

Os anúncios, no entanto, são baseados em números de pesquisas diferentes. Os dados de 2023 do IBGE são comparados aos de uma pesquisa conduzida em 2022 por uma ONG chamada Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), em parceria com um instituto de pesquisa.

A utilização de dados de institutos diferentes para a comparação vem sendo questionada por especialistas e pela oposição. “O governo Lula manipulou e inflou os dados que divulgou, para mostrar um sucesso que não alcançou”, disse o presidente do Instituto Teotônio Vilela (ITV) e deputado, Aécio Neves, em nota. 

Em 2022, a pesquisa usada como parâmetro para a comparação já havia sido questionada, como mostrou a reportagem da Gazeta do Povo. Na época, os dados da Rede Penssan apontaram que, em meio ao contexto de pandemia de Covid-19, 33 milhões de pessoas estariam passando fome no Brasil. Agora, ao utilizar os dados da pesquisa conduzida pela ONG para comparar com os dados do IBGE, os questionamentos voltaram a se multiplicar. Em abril, o IBGE divulgou dados que apontam que, em 2023, 21,6 milhões de domicílios estavam em situação de insegurança alimentar, sendo 3,2 milhões com insegurança alimentar grave, o estágio mais crítico da escala.

Os anúncios se confundiram ainda com outro dado divulgado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Para o organismo internacional, houve uma queda de 9% no percentual de pessoas com a chamada insegurança alimentar severa entre 2022 e 2023. Sendo assim, 14,7 milhões de pessoas teriam deixado de passar fome no país. 

A Gazeta do Povo tentou contato com a Rede Penssan, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) também foi questionado sobre a forma como foi feita a divulgação dos dados da FAO. No entanto, por meio da assessoria, o Ministério se limitou a direcionar o contato à FAO. 

Comparação usada por Lula para falar sobre fome não é comum 

No final de abril, o governo federal divulgou com alarde que mais de 24 milhões de brasileiros saíram da fome de 2022 para 2023. De acordo com o governo, em 2022, 33,1 milhões de pessoas enfrentavam insegurança alimentar e nutricional grave. Já em 2023 o número teria caído para 8,7 milhões de pessoas. Sendo assim teria passado de 15,5% da população brasileira para 4,1%. 

Para chegar a esse dado, no entanto, o governo Lula usou pesquisas feitas por institutos diferentes, embora afirme que as metodologias utilizadas sejam “similares”. A similaridade é baseada na utilização de uma mesma escala, chamada de Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia). Essa escala foi criada em 2004, logo após o lançamento do programa “Fome Zero”, em 2003, durante o primeiro mandato de Lula na Presidência de República. A Ebia é utilizada como medida direta da percepção da insegurança alimentar em nível domiciliar. 

A similaridade, no entanto, para por aí. A execução da pesquisa da Rede Penssan foi atribuída ao Vox Populi. Além disso, diferente da pesquisa do IBGE, em 2022, a pesquisa foi realizada com uma versão reduzida do questionário da Ebia, com apenas 8 perguntas.

Nas notas metodológicas, a pesquisa da Rede Penssan diz que "a distribuição amostral do II VIGISAN [nome da pesquisa] apontou comparabilidade com a distribuição amostral da PNAD 2015, tomada como referência, com semelhanças nas distribuições por sexo e idade entre os inquéritos".

No entanto, o engenheiro têxtil e checador de dados Franklin Weise aponta que a pesquisa omitiu a redução no número de participantes da pesquisa com ensino superior, o que não bate com a realidade. No intervalo de 7 anos, o percentual de pessoas com ensino superior teria caído 8%, saindo de 18% em 2015 para 12% em 2022. 

A Gazeta do Povo também tentou contato com a Rede Penssan para saber se uma nova edição da pesquisa será realizada em breve, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria. 

IBGE não inclui dados de ONG em sua série histórica sobre insegurança alimentar

Para justificar a utilização do dado produzido pela ONG, o governo Lula afirmou que o governo anterior não deu condições para que a pesquisa do IBGE fosse realizada. O levantemento do IBGE, no entanto, não apresenta periodicidade definida. Foram divulgadas pesquisas sobre a segurança alimentar em 2004, 2009, 2013, 2017-2018 e agora, em 2023. Consultado, o próprio IBGE afirmou que a “periodicidade deste suplemento da PNAD Contínua ainda não foi definida”. 

Mesmo sem periodicidade fixa, há uma série histórica de dados do IBGE sobre a segurança alimentar. As pesquisas da Rede Penssan não foram consideradas parte dessa série histórica em nenhuma publicação do IBGE.

Considerando apenas os dados das duas últimas pesquisas do IBGE sobre segurança alimentar, o número de domicílios em insegurança alimentar recuou em 9,1%. Na pesquisa de 2017-2018 foram encontrados 36,7% dos domicílios do país em insegurança alimentar. Já em 2023, o país registrou 27,6% (ou 21,6 milhões) dos seus domicílios em situação de insegurança alimentar.

Além disso, na comparação entre os dados da série histórica do IBGE, considerando as pesquisas realizadas em 2017-2018 e 2023, é possível observar que a insegurança alimentar grave (um dos graus três graus pesquisados) passou de 4,6% para 4,1%.

Estudo da ONG sobre fome no governo Bolsonaro foi criticada por conter aspectos duvidosos

O estudo sobre insegurança alimentar no Brasil - publicado em 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) em parceria com seis entidades e ONGs - afirmou que o Brasil tem, atualmente, 33,1 milhões de pessoas passando fome. A pesquisa foi criticada por uma série de aspectos duvidosos de seu relatório, que sugerem uso político dos dados apresentados. 

Vestígios de politização foram detectados pela reportagem da Gazeta do Povo por meio de expressões utilizadas no relatório da pesquisa. O estudo citou, por exemplo, que houve uma “onda deformadora do Estado, em curso desde 2016”. Afirmou ainda que os pobres foram “deserdados por um Estado gerenciado sob a doutrina neoliberal e sob a obsessão pelo equilíbrio fiscal e controle de gastos”. 

A pesquisa da Rede Penssan, apresentada como “Visigan- Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, teve duas edições, uma em 2020 e outra em 2022. A primeira edição apontou que a insegurança alimentar grave afetava 9% da população – ou seja, 19 milhões de brasileiros estariam passando fome. Já a segunda apontou que 15,5% da população brasileira passava fome no Brasil.

Em seu site, a Rede Penssan afirmou que a pesquisa de 2020 foi realizada em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020. Já a pesquisa de 2022 analisou dados coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e Distrito Federal. Há, portanto, uma diferença significativa na amostragem entre as duas edições da pesquisa.

No relatório, os dados são apresentados pela Penssan como uma continuidade de estudos do IBGE feitos desde 2004 sobre a situação alimentar do brasileiro. Os dados do Visigan, no entanto, não são mencionados na série histórica do IBGE. 

Quando os dados da Rede Penssan foram divulgados, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) responderam com apelos para que a esquerda refresque a memória sobre o início da pandemia, quando os alertas sobre os riscos do lockdown para a economia brasileira eram frequentes. 

O próprio Bolsonaro chegou a mencionar o assunto em entrevistas, também destacando a influência da pandemia nos dados. “O preço dos produtos da cesta básica subiu bastante. Agora, como é que começou isso daí? Começou com a pandemia, mas não por culpa do vírus, por culpa dos governadores”, disse Bolsonaro na época, em à entrevista à CBN Recife, em junho de 2022.

Dados da FAO sobre fome não são divulgados anualmente por “incertezas” na amostragem 

Em meio à polêmica sobre os dados do governo federal, um relatório da FAO passou a ganhar destaque. De acordo com o Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (Sofi 2024), divulgado em 24 de julho, 14,7 milhões de pessoas teriam deixado de passar fome no Brasil. “A insegurança alimentar severa, que atingia 17,2 milhões de brasileiros em 2022, caiu para 2,5 milhões no ano passado”, afirmou o Ministério do Desenvolvimento Social ao citar os dados da FAO. 

A divulgação da informação, no entanto, gerou uma nova polêmica. Historicamente, os dados da FAO são divulgados por triênio e não são publicados em separado, com recorte anual. O relatório, que considera o período dos últimos três anos, mostra que a insegurança alimentar severa caiu de 8,5%, no triênio 2020-2022, para 6,6%, no período 2021-2023, o que corresponde a uma redução de 18,3 milhões para 14,3 milhões de brasileiros nessa situação. Em números absolutos, isso significa que 4 milhões saíram da insegurança alimentar severa na comparação entre os dois períodos de 3 anos. 

A FAO, excepcionalmente, informou os números individualizados de 2023 ao governo federal brasileiro. Questionada sobre o motivo disso ter ocorrido, a FAO não respondeu, mas afirmou que os valores anuais não são publicados pela “incerteza que surge da variabilidade da amostragem”. A informação também foi divulgada em vídeo gravado pelo representante da FAO Brasil, Jorge Meza, e compartilhada pelo governo brasileiro. 

Ministro de Lula desinforma ao publicar gráfico sobre redução da insegurança alimentar grave  

O ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, compartilhou em seu perfil no X uma imagem que desinforma ao sugerir que a insegurança alimentar grave foi mais elevada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Na publicação, o ministro usou os dados da FAO. 

Na imagem há um gráfico de linhas, onde, embora os anos de 2003 e 2020 apresentem percentuais iguais de 9%, as fotos de Lula e Bolsonaro aparecem em alturas diferentes. O dado sobre o governo de Bolsonaro é colocado acima ainda do ano de 2000, quando o gráfico mostra que o percentual de pessoas em insegurança alimentar grave era de 10%. 

A publicação faz parte de uma série de postagens do ministro que buscam enfatizar a queda no número de pessoas que teriam deixado de passar fome no Brasil. Junto com a figura, o ministro enfatizou a queda no percentual registrado em 2023. De acordo com a imagem, o índice de insegurança alimentar caiu de 9 % em 2020 para 2,8% em 2023.

“O Brasil está saindo de um grande retrocesso que desmontou todo o sistema de proteção social. Com o Plano Brasil sem Fome, estamos tirando o país do Mapa da Fome outra vez. Os números da FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] mostram o resultado das políticas públicas eficientes”, escreveu o ministro na publicação. 

A Gazeta do Povo questionou o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome sobre a metodologia utilizada por Dias para criar o gráfico, mas foi orientada a procurar a FAO para buscar informações sobre a metodologia da pesquisa. 

Redução da fome não pode ser atribuída somente ao governo Lula 

Apesar de Lula usar a redução da fome como trunfo do seu governo, ainda é cedo para atribuir os dados exclusivamente às políticas adotadas a partir de sua posse. “É preciso analisar bem o contexto para entender se essa redução de pessoas passando fome é de fato resultado de políticas do governo atual ou se reflete também a programas adotados no governo anterior”, disse o professor do Ibmec-BH, demógrafo e doutorando em Economia Pedro Hudson Cordeiro. Para ele, a redução deve ser atribuída a uma tendência natural após os cenários de crise verificados nos últimos anos. 

Cordeiro lembra que o Brasil ficou de fora do mapa da fome por apenas quatro anos, entre 2014 e 2018. O retorno do Brasil ao Mapa da Fome, na opinião do demógrafo, pode ser atribuído ao período de crise vivido entre 2016 e 2018, que afetou o poder aquisitivo das famílias. “Após 2018, quando o Brasil retorna ao Mapa da Fome, nós tivemos 2019, como um ano normal, e 2020 com o início da pandemia. A partir daí, tem-se um novo fenômeno muito curioso. Aumento do desemprego, retração do consumo, membros das famílias perdendo renda. Embora o auxílio emergencial tenha sido importante, não foi suficiente para manter a renda das famílias”, disse o professor do Ibmec-BH.

O demógrafo aponta ainda os impactos do início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, em 2022. “Quando a gente entra em 2022 e os cenários globais começam a dar sinais de voltar ao patamar anterior, tem-se a eclosão da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que afeta novamente os mercados e a inflação em todo o mundo”, pontuou Cordeiro. 

Analistas apontam ainda que não houve variação tão significativa nos índices de desemprego e renda que justifiquem uma queda tão abrupta nos índices da fome no Brasil.

Além disso, também não houve um aumento tão significativo entre o número de beneficiários do Bolsa-Família. De acordo com o governo federal, em média, 21,3 milhões de famílias receberam o auxílio em 2023. Em 2022, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, 19,2 milhões de lares em média receberam o benefício. 

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