O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quer acelerar a transferência de tecnologias criadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para maximizar a produção do campo na África. A ideia é dinamizar projetos nesse sentido que vêm sendo tocados pelo Brasil há duas décadas, desde o primeiro mandato do petista, iniciado em 2003.
Mas há uma questão polêmica: o Brasil vai investir na capacitação de países para se tornarem competidores do agronegócio brasileiro? E vai fazer isso quando seu principal importador, a China, indica continuidade de crescente demanda e busca no mesmo território africano diversificar seus fornecedores de grãos?
A questão surge em paralelo a uma série de crises que vêm afastando Lula do setor do agronegócio. Entre elas estão a distribuição de cargos estratégicos para o Movimento Sem Terra e a forma leniente como o governo vem tratando as invasões; demarcações de terras indígenas que ameaçam produtores e a pressão para retirar apoio de empresas estatais para o setor, como ocorreu com a Agrishow.
Lula afirmou em janeiro que o Brasil deve sua cultura à África e acredita que “essa dívida pode ser paga com ciência e tecnologia”. Tal tarefa ficará a cargo da futura presidente da Embrapa, Silvia Massruhá, a partir de maio, quando tomará posse.
O governo ainda não definiu quais nações devem ser alvo de suas investidas com a tecnologia da Embrapa. Mas espera-se que as tentativas iniciais sejam direcionadas a Moçambique e Angola, para onde Lula deve viajar em breve. Outro alvo em potencial é Gana, na costa ocidental do continente.
Produção em savana africana deve concorrer diretamente com o Brasil, dizem analistas
A Embrapa completou 50 anos na semana passada. O atual presidente da estatal, Celso Moretti, está de saída. Ele foi nomeado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), pela então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, no fim de 2019. A substituição segue trâmites de governança criados em adaptação aos ditames da Lei das Estatais.
Antes dessa mudança, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, já se reuniu em Brasília no último dia 5 de abril com o ministro das Relações Exteriores de Angola, Téte António, para discutir a cooperação em favor da atividade agrícola no país africano. Fávaro disse que a contribuição da Embrapa viria na forma de tecnologias e na assessoria para desenhar políticas públicas.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que a estratégia da China de reduzir a dependência dos seus maiores fornecedores de soja – Brasil e Estados Unidos – deve, sim, colocar a savana africana para concorrer com o cerrado brasileiro. O esforço chinês ocorre em um cenário geral em que o país tenta se tornar autossuficiente na produção de grãos. Trata-se de uma estratégia de preparação para o caso de um eventual conflito armado contra os Estados Unidos por causa da ilha de Taiwan.
Os analistas também ponderam que esse mesmo processo gera oportunidades para grandes empresas nacionais do agronegócio brasileiras no país africano.
Lula baseia ação em motivação ideológica, mas ideia pode gerar novos negócios
A tônica de Lula pelo reconhecimento da “obrigação humanitária” do Brasil em relação à África faz parte da diplomacia petista focada no progresso de países emergentes. “Mas esse discurso do presidente e do próprio setor agrícola pelo combate à fome abre, por outro lado, caminhos pragmáticos para contemplar interesses de empresas brasileiras que estão se instalando na África. É bom frisar que a transferência tecnológica envolve contratos de longo prazo e contrapartidas comerciais entre países participantes e o setor privado”, frisa Gustavo Bernard, analista sênior da Dominium Consultoria.
Nesse sentido, o Ministério da Agricultura quer revisar o modelo de atuação da Embrapa e redesenhar o Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA), formado pela estatal, organizações estaduais de pesquisa, universidades e institutos, visando melhorar conexões entre criação de tecnologia nacional e seu emprego privado.
No âmbito do Programa Mais Alimentos Internacional (PMAI), do governo brasileiro, os primeiros mandatos de Lula implementaram um projeto de desenvolvimento da agricultura em Moçambique, financiado pelos governos do Brasil e do Japão, como vitrine da política externa brasileira na África. O Programa de Cooperação para o Desenvolvimento Agrícola das Savanas (Prosavanas) foi executado nos moldes da bem-sucedida parceria Brasil-Japão a partir dos anos 1970 para desenvolver os cerrados. Com ela, incluindo a criação da Embrapa, ao longo de cinco décadas, o país deixou de ser importador de alimentos para virar um dos expoentes do agronegócio mundial.
Por meio de acordos implementados de 2009 a 2013, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) também forneceu assistência técnica a Benin, Burkina Faso, Mali e Chade para sofisticar a produção de algodão. A Embrapa foi designada como agência de suporte e o projeto envolveu organizações de pesquisa agrícola dos governos beneficiários. No capítulo reservado ao etanol de cana-de-açúcar, Lula defendeu a inclusão da África no esforço para garantir volumes ao mercado de biocombustíveis.
Em 2010, no fim do seu segundo mandato, Lula editou uma medida provisória, aprovada sem alterações no ano seguinte, primeiro da gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), para permitir que o governo pudesse abrir escritórios da Embrapa no exterior. O objetivo era dar à estatal flexibilidade para fornecer tecnologias a países com os quais o Brasil havia feito acordos. Exemplo disso foi o memorando assinado com Gana, em 2006, para abrir escritório local da Embrapa no país africano, o que não ocorreu devido às limitações legais.
Transferência de tecnologia cria riscos para a competitividade brasileira, disse senador
A abertura de filiais da empresa fora do país era uma parte importante da política externa nos governos petistas. Antes da medida provisória aprovada, a Embrapa criou laboratórios virtuais (Labex) focados na pesquisa avançada de Europa e Estados Unidos. Em paralelo, a estatal também mantinha parcerias com laboratórios africanos para transferir tecnologia. Na época, o senador Edison Lobão Filho (MDB-MA), então relator no Senado da medida provisória, que se tornou a Lei 12.383 em março de 2011, alertou para “riscos envolvidos na transferência de conhecimento fundamental à competitividade nacional”.
Esses riscos podem vir do deslocamento no longo prazo para a África do eixo de fornecimento de soja para a China concentrado hoje nos Estados Unidos e no Brasil, em volumes semelhantes para cada um. Um alerta para isso foi o acordo de compra de soja entre China e Tanzânia firmado em outubro de 2020. Cerca de 70% das 130 milhões de toneladas anuais de soja colhidas no Brasil é exportada para a China, enquanto a Tanzânia exporta 6 milhões.
Embora os volumes indiquem poucas mudanças, trata-se do avanço na diversificação de parceiros agrícolas por parte dos chineses, dentro de uma estratégia para reduzir a dependência dos principais fornecedores. A partir do ano 2000, a China firmou dezenas de acordos no âmbito do Fórum de Cooperação China-África (Focac), visando fortalecer relações comerciais, sobretudo envolvendo soja e outros grãos, via investimentos bilionários. A Tanzânia era o último país africano sem tratado agrícola com a China.
Indústria de máquinas e implementos agrícolas pode ser beneficiada
No governo Bolsonaro, a Embrapa apresentou tecnologias em agricultura tropical para embaixadores de 32 países africanos em evento promovido pelo Itamaraty em outubro de 2021. O encontro propôs cooperação com vistas a disseminar o modelo do Brasil naquele continente. A então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, destacou à época que as tecnologias do Brasil poderiam, sim, impulsionar os sistemas produtivos da África. E uma das maiores interessadas nessa iniciativa é a indústria brasileira de máquinas e implementos agrícolas, além dos exportadores de diversos gêneros agrícolas.
Pesquisadores têm se dedicado a responder se a África poderia se tornar concorrente do Brasil na exportação de soja, considerando o perfil do continente africano e a chance de a tecnologia da Embrapa ser usada na produção do grão. Apesar de a produção de soja na África ser insuficiente para abastecer até mesmo a própria demanda, o continente tem extensa área com características de clima e solo semelhantes às do cerrado, o que poderia permitir que a região virasse grande produtor mediante tecnologia de agricultura tropical, da qual o Brasil é líder. Mas, antes disso, ressalvam especialistas, os países da região precisariam resolver questões ambientais, sociais e de conflitos políticos para impulsionar a produção da oleaginosa.
Enquanto isso, há áreas no próprio território brasileiro capazes de serem integradas à produção. Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, que não têm mais espaço para expandir fronteiras agrícolas, o país também a maior reserva de água doce do mundo, com 15% do total, o que sinaliza capacidade de aumentar a área irrigada. As projeções para o agronegócio global são auspiciosas, por causa das perspectivas de aumento populacional global. O cerrado brasileiro e a savana africana têm espaço físico para expandir a produção de alimentos.
Na visita que o ministro da Agricultura fez há duas semanas à China, ele buscou atrair investimento para recuperação e plantio de áreas degradadas para a agricultura. A chinesa Cofco International já mostrou interesse e deverá enviar missão a Brasília no próximo mês para iniciar negociação. O modelo da operação ainda será avaliado e uma possibilidade é envolver o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Larissa Wachholz, diretora da Vallya Agro, que se dedica à atração de capital chinês para o agronegócio brasileiro, acredita que o investimento do Brasil no potencial africano para exportar grãos traz mais oportunidades do que riscos. O essencial é o país participar de forma pragmática e bem calculada dos espaços que serão abertos ao longo dos próximos 15 anos. “É melhor não ficar ausente desse processo que vai acontecer de toda forma, ficando a reboque de outros”, disse. Ela lembra que, como grande produtor agrícola, a China também tem obtido avanços, com ganhos expressivos de produtividade, de até 4% ao ano.
“É natural que a segunda maior economia e maior população do planeta, cerca de 20% do total, mas que detém só 8% das terras agriculturáveis e 5% dos recursos hídricos, se preocupe em diversificar seus fornecedores de alimentos. Trata-se de um caminho sem volta, especialmente após os desarranjos sofridos pelo comércio internacional em razão da pandemia, o conflito comercial entre China e Estados Unidos e a guerra da Ucrânia, com impacto também no fornecimento de fertilizantes”, explicou ela.
Por essa razão, a especialista - que acompanha de perto as transações entre Brasil e China há 15 anos e assessorou a ex-ministra da Agricultura e atual senadora Tereza Cristina (PP-MS) - acredita que a África deve se tonar produtor de grãos, mas ainda tem de superar dificuldades fundiárias e de falta de conhecimento técnico e administrativo. Nesse último ponto, o Brasil pode sair no lucro ao ajudar na capacitação africana.
“Acho interessante o posicionamento estratégico do Brasil porque a Ásia como um todo tem na sua trajetória de crescimento econômico acelerado, com ascensão de classes médias, a propensão de aumentar seu consumo de proteína animal, o que demanda maiores volumes de soja e milho para sua produção. Trata-se de uma grande oportunidade e o Brasil deveria se firmar como uma liderança de vanguarda nesse processo”, observou.
Outros especialistas avaliam que o Brasil precisa investir em mais acordos comerciais com outros países para escoar excedentes e com isso se precaver de um cenário provável em que a China venha a reduzir o ritmo de compra da soja brasileira.
Outra opção seria redirecionar a soja para alimentar rebanho nacional de carnes, item crescente da pauta exportadora e que tem de quatro a dez vezes mais valor agregado por tonelada do que a soja.
Investida russa e chinesa no continente africano
China e Rússia – parceiros do Brasil no grupo econômico Brics, que ainda reúne Índia e África do Sul – estão competindo cada vez mais por influência política e comercial na África, à medida que o Ocidente reduz a sua presença no continente. A China, sobretudo, tem investido pesadamente na África, incluindo projetos de infraestrutura e de cooperação econômica. Enquanto isso, a Rússia procura reativar sua relação histórica com ex-aliados soviéticos no continente, como Angola e Moçambique. Apesar de competirem pelos mesmos mercados, os dois países mantêm relações cada vez mais próximas.
Nos dados consolidados mais recentes, o comércio África-China saltou 35% em 2021, para o recorde de US$ 254 bilhões, enquanto o comércio África-Rússia foi de US$ 18,5 bilhões no mesmo ano.
Em recente artigo para a Gazeta do Povo, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) classificou como novo colonialismo a investida chinesa em países em desenvolvimento por meio de planos ambiciosos de investimento em obras de infraestrutura, sobretudo a partir da Nova Rota da Seda.
“Muitos países da Ásia e da África que assinaram esse acordo se tornam efetivamente colônias da China, ao não conseguirem honrar os termos de pagamentos. É razoável estimar que o Brasil corre o mesmo risco”, opinou. A Nova Rota da Seda soma 145 países, sendo 44 da África, 42 da Ásia, 29 da Europa, 20 da América Latina e Caribe e 10 da Oceania. Contudo, a iniciativa entrou em declínio após causar abalos na economia chinesa e escândalos de corrupção pelo mundo.
Empresas chinesas têm agido de forma agressiva na compra de terras em diversas partes do mundo, sobretudo na África. Segundo a Land Matrix, organização europeia de monitoramento agrário, de 2011 a 2020, os chineses adquiriram 6,5 milhões de hectares voltados à agricultura, silvicultura e mineração. Esse processo de conquista de territórios envolve também empréstimos aos países concedidos por bancos chineses.
Analistas temem pelo avanço do controle do gigante asiático sobre fontes de alimentos e recursos naturais e defendem restrições legais, como as que existem no Brasil e impedem essas investidas.
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