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Lula e Boric
Presidente do Chile, Gabriel Boric, foi um dos primeiros a criticar o anúncio de vitória de Maduro, em contraste com o silêncio de Lula.| Foto: Ricardo Stuckert/Secom

Em sua primeira visita de Estado ao Chile sob o comando de Gabriel Boric, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se encontrou com o colega chileno nesta segunda-feira (5), em clima de grande expectativa em torno das diferenças políticas como líderes da esquerda na América Latina. Estão previstas assinaturas de ao menos 17 acordos bilaterais, e, embora não haja nenhuma discussão oficial prevista sobre o impasse político na Venezuela, o tema foi abordado em reuniões reservadas entre os dois.

Até agora, as posições contrastam sobre o tema: Boric condenou imediatamente os indícios de fraude na eleição presidencial venezuelana de 28 de julho, reconduzindo o ditador Nicolás Maduro a novo mandato de seis anos. Lula alega que está se mantendo neutro, supostamente aguardando desdobramentos diplomáticos da crise, mas na prática já apoiou Maduro ao dizer que não houve "nada de anormal" no pleito.

O Brasil vem se alinhando aos governos de esquerda da Colômbia, presidida por Gustavo Petro, e do México, do presidente Andrés Manuel Lopes Obrador, em uma postura de não condenar o resultado para alegadamente não isolar ainda mais a Venezuela.

No Chile, após a conversa privada que teve com Boric, Lula deu uma declaração à imprensa dizendo que "o respeito pela tolerância, o respeito pela soberania popular é o que nos move a defender a transparência dos resultados. O compromisso com a paz é que nos leva a conclamar as partes aos diálogos e promover o entendimento entre governo e oposição".

Maduro foi proclamado vencedor no dia seguinte à votação pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNDE), órgão responsável pelo pleito e controlado pelo chavismo. Mas o resultado do pleito continua sendo questionado por chefes de governo, organismos internacionais e opositores.

Desde o começo do impasse, o governo brasileiro afirma que só vai se posicionar sobre a reeleição de Maduro quando houver a publicação de todas as informações das urnas, presentes nas atas de votação — o que ainda não foi feito.

Na última terça-feira (30), Lula falou pela primeira vez sobre o assunto e declarou que não havia “nada grave” nem “anormal” no processo eleitoral venezuelano, cabendo à Justiça local solucionar o impasse, ignorando as evidências de fraude, a escalada de violência estatal e a falta de independência dos poderes na Venezuela.

Brasil, México e Colômbia, governados por presidentes de esquerda, firmaram posição comum na última quinta-feira (1º) por meio de uma nota elogiada por Maduro. Nela, os países pedem ao CNE que publique rapidamente as atas com as informações das urnas. No texto, os países mencionam “controvérsias sobre o processo eleitoral” e pedem às autoridades venezuelanas “cautela” para evitar o agravamento das tensões. O documento pede, ainda, a publicação dos dados eleitorais completos da votação. “O princípio fundamental da soberania popular deve ser respeitado mediante a verificação imparcial dos resultados”, conclui.

O Chile, por sua vez, manteve a posição de não reconhecer a vitória de Maduro até que ela seja “verificável”. “O regime de Maduro deve entender que os resultados que publica são difíceis de acreditar. A comunidade internacional e sobretudo o povo venezuelano, incluindo os milhões no exílio, exigem total transparência”, escreveu o presidente Gabriel Boric nas redes sociais há uma semana.

Não por acaso, Lula foi vaiado durante um ato oficial na viagem na manhã desta segunda (5), quando depositava uma oferenda floral no monumento em Santiago em homenagem ao general Bernardo O’Higgins, figura histórica da indapendência do Chile. Além da postura em relação a Maduro, destoam também as manifestações sobre a Ucrânia, defendida por Boric.

Presidente do Chile optou por não ceder em princípios democráticos, diz analista

Para Leandro Gabiati, professor do Ibmec-DF e diretor da Dominium Consultoria, a esquerda, como qualquer movimento político, não tem pensamento homogêneo, apresentando diferentes graus de conservadorismo e de radicalismo. Assim, os rumos adotados pelos grupos distintos variam, “a exemplo da posição ponderada de Gabriel Boric, que se apega ao respeito à democracia.

“O Chile sabe bem o que é viver sob uma ditadura, após o período Pinochet, seja ela de esquerda ou de direita. Por isso, o país não cede em questões de princípios democráticos. É um caso de coerência do presidente chileno não reconhecer o resultado das eleições na Venezuela”, comenta o cientista político.

Gabiati lembra ainda que o governo brasileiro, embora siga caminho diferente do PT, partido que reconheceu de pronto a vitória de Maduro, tem relativizado a crise com a posição expressa na fala infeliz de Lula sobre a suposta normalidade no processo eleitoral venezuelano.

“Colômbia, México e Brasil aguardam pelas tais atas eleitorais, mas não dão sinais de ceder diante de Maduro. O curioso é saber até quando conseguirão manter essa posição incômoda diante da total falta de transparência. De toda forma, a diversidade de posturas na esquerda reflete interesses vários”, observou.

Na avaliação do especialista, o papel do Brasil é mesmo o de ser o principal interlocutor na região. Com os riscos enfrentados pelas embaixadas do Peru e da Argentina, o Brasil assumiu a responsabilidade de representar esses interesses, o que foi uma prova dessa condição especial.

“Para Lula, as decisões tomadas sobre a Venezuela terão impactos extremos. Isso porque a situação no país vizinho se tornou também agenda central na polarização interna, em torno de sensíveis questões democráticas”, salientou.

Em carta enviada a Lula nesta segunda-feira (5), 30 ex-chefes de Estado e governo da Espanha e da América Latina pediram que o mandatário brasileiro assegure o compromisso com a democracia e a liberdade na Venezuela. O documento afirma que essas são as mesmas prerrogativas que gozam o povo do Brasil, devendo elas prevalecerem também na Venezuela.

Essa pressão se soma a de países europeus e à postura tomada na quinta-feira (1º) pelos Estados Unidos, que reconheceram a vitória do rival oposicionista de Maduro, Edmundo González.

Diferenças entre Lula e Boric envolvem perspectivas políticas

Boric, 38 anos, e Lula, 78 anos, exibem diferenças que vão além da idade. A mais explícita é a reação à crise eleitoral na Venezuela. Boric criticou imediatamente o resultado defendido por Maduro, resultando na expulsão do corpo diplomático chileno. Lula permaneceu em silêncio por vários dias antes de se manifestar de forma mais moderada e que foi criticada, pela citação à suposta normalidade.

Na visita oficial de Lula a Santiago, que termina nesta terça-feira (6), os dois líderes podem tentar mostrar alguma convergência sobre o episódio. Analistas veem a reação de Boric como vigorosa e autêntica, enquanto Lula demonstra a cautela adquirida em sua longa experiência no poder e pela proximidade com o regime chavista.

Esse contraste foi apontado pelo próprio Lula quando reagiu às críticas de Boric por ter recebido Maduro em maio de 2023 com honras de Estado.

Lula está em seu terceiro mandato, e Boric, no primeiro. Quando o chileno assumiu o poder em 2022, aos 36 anos, tornou-se o presidente mais jovem já eleito em seu país. A situação de Lula é a inversa, se tornando o presidente mais velho a assumir a presidência do Brasil, aos 77 anos. A agenda para questões de gênero, liberação de aborto e drogas e outras da chamada "nova esquerda" é mais acentuada no governo chileno.

Analistas apontam reflexos na política interna da posição de Lula sobre Maduro

Para Madeleine Lacsko, escritora, analista de discursos e ativista dos direitos das mulheres e das crianças, o impasse eleitoral na Venezuela colocou Lula e o PT em uma situação ainda mais delicada do que a prisão do presidente. “Será que Lula vai reconhecer Maduro como vencedor ou vai fingir um distanciamento do ditador, empurrando a tensão para o futuro na esperança de tempos mais favoráveis e menos conturbados?”, questiona ela.

A especialista explica que Lula tenta se posicionar como mediador de conflitos no exterior, como tentou fazer em seu atual mandato também nas guerras do Leste Europeu e Oriente Médio, mas, com exceção de seus aliados internos, “poucos acreditam nisso”.

“Enquanto Lula sonha em conquistar um Prêmio Nobel da Paz, posando como líder pacifista, a comunidade internacional esperava que ele tivesse papel crucial na resolução dos conflitos relacionados ao regime chavista, confiando em sua influência na esquerda e sobre Maduro, além do peso natural do Brasil como potência regional ”, explicou.

Apesar de sempre acreditar que o presidente brasileiro poderia ajudar a Venezuela a se aproximar da democracia, agora os países ocidentais e democráticos “agora aguardam para ver como Lula vai lidar com o impasse”.

Com Lula, Brasil assumiu papel arriscado de mediador da crise venezuelana

Natalia Fingermann, professora de Relações Internacionais da ESPM, avalia que, apesar das críticas à excessiva cautela da sua diplomacia, o Brasil tem mostrado certa insatisfação com a demora do governo venezuelano em fornecer as atas eleitorais que garantiriam a transparência do processo.

“Nesse sentido, Brasil e Estados Unidos ainda não estão totalmente desalinhados ao lidar com o impasse, mesmo após o governo americano ter declarado a oposição vencedora”, observou.

Segundo ela, para os EUA, é essencial que Brasil e Colômbia mantenham pontos de conexão com Nicolás Maduro, preservando canais de negociação abertos.

“A Casa Branca não tem representação diplomática na Venezuela desde 2019, e países como Argentina e Peru acabaram de perder as suas devido à crise. Portanto, é importante para esses países evitarem um isolamento total”, concluiu.

O cientista político Leonardo Barreto, diretor da consultoria I3P, avalia que a política externa está afetando assuntos internos do Brasil devido à crise da Venezuela. Lula está sob pressão, sobretudo após classificar a situação no país vizinho como “nada anormal”.

“Lula é visto como mediador com influência sobre Maduro. Se a situação na Venezuela se agravar, com mais violência ou fechamento do regime chavista, ele pode ser responsabilizado por apoiar Maduro e aconselhá-lo publicamente sobre a construção de uma narrativa democrática”, disse.

Assim, Lula pode enfrentar crises tanto internas quanto externas. No PT, acrescenta Barreto, há a percepção de que o desempenho econômico será crucial para a reeleição do presidente em 2026, mesmo que tenha sofrido arranhões na imagem, tal qual ocorreu após o escândalo do mensalão em 2002, quando Lula foi reeleito em 2006.

Agenda de Lula mira a diversificação da pauta comercial com mercado chileno

A visita de Lula ao Chile, inicialmente marcada para maio, foi adiada devido às enchentes no Rio Grande do Sul. As agendas do presidente brasileiro ficarão restritas à capital, Santiago, onde se reunirá também com os presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e da Corte Suprema.

Ele se encontrará com o CEO da Latam, Roberto Alvo, e outras personalidades locais, incluindo o ex-presidente Ricardo Lagos. Lula também participará de um fórum com empresários brasileiros e chilenos. O Brasil, terceiro maior parceiro comercial do Chile, busca diversificar o comércio com o país com o qual não faz fronteira, destacando-se nas compras de cobre, pescados e minérios, e nas vendas de petróleo, automóveis e carne.

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