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Ao inaugurar seu terceiro mandato na Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu uma “reconstrução” do país e o fim de variados tipos de desigualdade. Nos dois discursos que proferiu neste 1º de janeiro de 2023, dia da posse, fez questão de sinalizar que esses dois objetivos virão por meio do fortalecimento do governo federal, com incremento de verbas para políticas públicas, criação de novos ministérios e atenção maior aos mais pobres.
Nos pronunciamentos – o primeiro dirigido a parlamentares no Congresso e o segundo a populares reunidos na Praça dos Três Poderes –, o novo presidente também defendeu uma “reconciliação” da sociedade, cuja divisão política e ideológica acentuou-se na eleição.
Descartou revanche, mas ressalvou que “quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal” – um recado de que seu antecessor, Jair Bolsonaro, ainda poderá ser responsabilizado por atos que o PT considera criminosos: uma suposta tentativa de destruir a democracia e um alegado descaso na pandemia de Covid-19.
Esses dois pontos foram destacados por Lula na fala aos congressistas. Logo no início, disse que seu triunfo nas urnas representa também uma vitória da democracia, que, segundo ele, teria superado “a maior mobilização de recursos públicos e privados que já se viu, as mais violentas ameaças à liberdade do voto, a mais abjeta campanha de mentiras e de ódio tramada para manipular e constranger o eleitorado”.
Quanto à pandemia, atribuiu o excesso de mortes à “atitude criminosa de um governo negacionista, obscurantista e insensível à vida”. “As responsabilidades por este genocídio hão de ser apuradas e não devem ficar impunes”, emendou Lula no discurso proferido no plenário da Câmara, exaltando o papel do SUS no atendimento à população infectada.
Se diante dos congressistas, Lula focou mais em mudanças estruturais que pretende implementar – sobretudo justificando a (re)criação de pastas ministeriais –, no parlatório do Palácio do Planalto, frente a seus apoiadores, adotou tom mais emotivo. Chorou ao falar de quem pede ajuda nos semáforos e, por 21 vezes, falou em atacar a desigualdade.
Afirmou que apesar de ter acabado com a miséria e a fome em seus mandatos, entre 2003 e 2010, esses males teriam voltado a crescer “não por força do destino, por obra da natureza, nem por vontade divina”, mas por “um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro” – forma de atribuir o problema às gestões que sucederam os governos petistas.
“Nestes últimos anos, o Brasil voltou a ser um dos países mais desiguais do mundo. Há muito tempo não víamos tamanho abandono e desalento nas ruas. Mães garimpando lixo, em busca do alimento para seus filhos. Famílias inteiras dormindo ao relento, enfrentando o frio, a chuva e o medo. Crianças vendendo bala ou pedindo esmola, quando deveriam estar na escola, vivendo plenamente a infância a que têm direito. Trabalhadoras e trabalhadores desempregados exibindo, nos semáforos, cartazes de papelão com a frase que nos envergonha a todos: ‘Por favor, me ajuda’. Fila na porta dos açougues, em busca de ossos para aliviar a fome. E, ao mesmo tempo, filas de espera para a compra de automóveis importados e jatinhos particulares”, discursou, em tom emocionado.
Diante da militância, Lula disse que seu novo governo focará não apenas no ataque à desigualdade de renda, mas também de gênero e de raça. “Somos um povo de muitas cores, e todas devem ter os mesmos direitos e oportunidades”, afirmou no parlatório, antes de novamente anunciar a recriação do Ministério da Igualdade Racial. “É inadmissível que [mulheres] continuem a receber salários inferiores ao dos homens, quando no exercício de uma mesma função. Elas precisam conquistar cada vez mais espaço nas instâncias decisórias deste país – na política, na economia, em todas as áreas estratégicas”, disse, sobre o renascimento da pasta das Mulheres.
Por dez vezes, Lula falou em “cuidar” como sinônimo de governar. Seguindo o script de emular aproximação com o povo, enfatizou sentimentos. Para isso, valeu-se de frases de efeito, como “a real grandeza de um país reside na felicidade de seu povo”; “que a alegria de hoje seja a matéria-prima da luta de amanhã e de todos os dias que virão”; “que a esperança de hoje fermente o pão que há de ser repartido entre todos”; e “é hora de reacendermos a chama da esperança, da solidariedade e do amor ao próximo”.
Nos dois discursos, encerrou com um “viva o povo brasileiro!” – no Parlamento, o bordão foi precedido de “viva a democracia!” e, na praça, de “viva o Brasil”.
O que Lula disse sobre economia
Ponto de maior apreensão no mercado desde a eleição, sobretudo pelo risco de descontrole fiscal, a economia foi abordada por Lula no primeiro discurso do Congresso. Para tentar atenuar a preocupação, o novo presidente da República repetiu o que disse na campanha: que agirá com responsabilidade, credibilidade e previsibilidade de seus dois primeiros mandatos.
“Disso não vamos abrir mão. Foi com realismo orçamentário, fiscal e monetário, buscando a estabilidade, controlando a inflação e respeitando contratos que governamos este país. Não podemos fazer diferente. Teremos de fazer melhor”, afirmou.
Apesar disso, Lula disse que vai trabalhar pela revogação do teto de gastos, principal mecanismo de controle de despesas, que chamou de “estupidez”, por ter, segundo ele, prejudicado o SUS na pandemia – o que é falso, uma vez que, durante o estado de calamidade, o governo federal multiplicou os recursos para a saúde fora dos limites impostos pela regra.
Noutra demonstração de ataque à agenda liberal implementada nos últimos anos, numa guinada estatista, Lula indicou que vai alargar novamente a participação dos bancos públicos em investimentos e subsídios. Na linha desenvolvimentista, caberia ao Executivo “planejar os investimentos públicos e privados na direção de um crescimento econômico sustentável, ambientalmente e socialmente”.
Falou em retomar o Minha Casa, Minha Vida e o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), respectivamente, programas de financiamento da habitação popular e de obras de infraestrutura que traziam faturamento bilionário às construtoras. “Os bancos públicos, especialmente o BNDES, e as empresas indutoras do crescimento e inovação, como a Petrobras, terão papel fundamental neste novo ciclo”, disse.
Em nenhum momento, ele tocou no tema da corrupção, que manchou as administrações petistas. As investigações da Lava Jato revelaram esquemas em que as maiores empreiteiras do país se cartelizavam para superfaturar obras vultosas, nem sempre benéficas. Com isso, obtinham não só lucros extraordinários, mas geravam propinas a partidos e políticos aliados do PT, que comandavam estatais e ministérios em troca de apoio ao governo de Lula.
Meio ambiente e agronegócio andam juntos, diz presidente
Na questão proteção ao meio ambiente, considerado um ponto frágil na administração Bolsonaro, sobretudo na visão internacional, Lula disse que sua meta é zerar o desmatamento na Amazônia, e a emissão de gases do efeito estufa na geração de energia, além de “estimular o reaproveitamento de pastagens degradadas”.
“O Brasil não precisa desmatar para manter e ampliar sua estratégica fronteira agrícola. Incentivaremos, sim, a prosperidade na terra. Liberdade e oportunidade de criar, plantar e colher continuará sendo nosso objetivo. O que não podemos admitir é que seja uma terra sem lei. Não vamos tolerar a violência contra os pequenos, o desmatamento e a degradação do ambiente, que tanto mal já fizeram ao país”, disse o petista no Congresso.
No parlatório, os trechos do discurso referentes ao tema concentraram-se em enaltecer realizações de Lula em seus dois primeiros mandatos. “Reduzimos o desmatamento da Amazônia em mais de 80%”, disse. “Investimos na agricultura familiar e nos pequenos e médios agricultores, responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa. E fizemos isso sem descuidar do agronegócio, que obteve investimentos e safras recordes, ano após ano”, afirmou um pouco antes, novamente sinalizando uma conciliação das duas áreas.
Ainda assim, Lula fez questão de destacar, nos dois discursos, que dará importância à demarcação de terras indígenas, que segundo ele é necessária para a preservação ambiental – Bolsonaro sempre disse que a expansão delas era um entrave à produção agrícola.
“Eles [indígenas] não são obstáculos ao desenvolvimento – são guardiões de nossos rios e florestas, e parte fundamental da nossa grandeza enquanto nação. Por isso estamos criando o Ministério dos Povos Indígenas, para combater 500 anos de desigualdade”, disse Lula.
Volta da política de desarmamento
Em mais uma demonstração de guinada em relação ao governo anterior, Lula também reafirmou a revogação dos decretos de Bolsonaro que facilitaram a posse e o porte de armas.
“Estamos revogando os criminosos decretos de ampliação do acesso a armas e munições, que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras. O Brasil não quer mais armas; quer paz e segurança para seu povo”, afirmou no Congresso.
“O povo brasileiro rejeita a violência de uma pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático. Chega de ódio, fake news, armas e bombas. Nosso povo quer paz para trabalhar, estudar, cuidar da família e ser feliz”, disse no parlatório do Palácio do Planalto, desta vez numa referência aos apoiadores mais radicais de Bolsonaro.
Posse de Lula transcorreu sem problemas
Fora dos discursos, o roteiro da posse seguiu estrita e pontualmente o roteiro previsto e preparado pela equipe de transição e sob a coordenação de Rosângela Silva, a Janja, esposa do presidente e nova primeira-dama do Brasil. Apesar das preocupações com a segurança, a cerimônia ocorreu tranquilamente, sem maiores sustos.
Lula chegou por volta de 14h30 à Catedral de Brasília, de onde desfilou em carro aberto – o conhecido Rolls Royce presidencial – até o Congresso. A novidade foi que além de Lula e Janja, também subiram no veículo o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e sua esposa, Maria Lúcia, Lu Alckmin.
Lula foi recebido no Congresso pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP). Também o aguardavam na entrada o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, e o vice, Ricardo Lewandowski. Os únicos ex-presidentes presentes na solenidade foram José Sarney e Dilma Rousseff.
No Congresso, entre os chefes de Estado estrangeiros, estiveram presentes os presidentes de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa; da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier; da Argentina, Alberto Fernández; do Chile, Gabriel Borić, entre outros.
Em seguida, Lula se dirigiu ao Palácio do Planalto para subir a rampa e receber a faixa presidencial – como Bolsonaro, que viajou para os Estados Unidos, se recusou a participar desse ato simbólico e tradicional, a indumentária foi vestida em Lula por um grupo de oito pessoas escolhidas para representar a população: um menino negro 10 anos, uma mãe catadora de recicláveis, o cacique Raoni, um metalúrgico do ABC, um professor de português, uma cozinheira, um jovem com paralisia e representante de pessoas com deficiência e um artesão.
Em seguida, Lula e Alckmin receberam os cumprimentos de chefes de Estado e representantes de delegações estrangeiras. Depois, foram assinados os termos de posse dos novos 37 ministros. e alguns decretos e medidas provisórias que inauguraram oficialmente o novo governo. O dia da posse terminou com um coquetel no Palácio do Itamaraty, outra tradição das cerimônias de troca de governo.