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A sanção, pelo presidente Jair Bolsonaro, do projeto que garante apoio financeiro a estados e municípios consolida uma sequência de dias mais pacíficos entre o Palácio do Planalto e os prefeitos e governadores. O período de relativa calmaria se iniciou no dia 21, quando Bolsonaro fez uma reunião virtual com governadores, cuja pauta foi o combate ao coronavírus, e o clima permaneceu sereno durante todo o encontro.
O quadro atual em nada se compara com o visto nas semanas anteriores. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir aos estados e municípios o direito de regularem o isolamento social em seus territórios motivou uma série de trocas públicas de farpas entre Bolsonaro e gestores estaduais e municipais.
A relação entre Bolsonaro e alguns governadores é, habitualmente, de atritos. Mas a situação se agravou com a acentuação dos problemas causados pela Covid-19. Os governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ) passaram a figurar quase que diariamente entre os alvos do presidente — o paulista chegou a ser atacado publicamente em uma reunião institucional.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), foi de aliado a adversário por discordar das políticas de Bolsonaro para o combate à pandemia. E mesmo o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), se tornou alvo: ele foi chamado de "bosta" por Bolsonaro na reunião ministerial de 22 de abril.
Os sinais ora positivos, ora pacíficos de Bolsonaro em relação aos governadores e prefeitos tornam difícil traçar uma expectativa sobre o futuro da parceria entre o Palácio do Planalto e as gestões estaduais e municipais.
Descentralização era programa de governo, mas mote "Mais Brasil, menos Brasília" pouco avançou
A expressão “Mais Brasil, menos Brasília” é citada três vezes no programa de governo que o então candidato Jair Bolsonaro apresentou durante as eleições de 2018. "Nas últimas décadas, o Governo Federal concentrou a arrecadação de tributos, criando burocracia e ineficiência para controlar os entes federados. Queremos uma Federação de verdade. Os recursos devem estar próximos das pessoas: serão liberados automaticamente e sem intermediários para os prefeitos e governadores. As obras e serviços públicos serão mais baratos e com maior controle social", diz um trecho do texto.
A Gazeta do Povo questionou o governo federal para verificar o que foi feito, ao longo do pouco mais de um ano e meio de mandato, para efetivar a proposta do “Mais Brasil, menos Brasília”. A reportagem consultou as assessorias de comunicação da Casa Civil e da Presidência da República, e recebeu a resposta de que o órgão responsável seria a Secretaria de Governo. Fez então contato com o órgão, de quem não recebeu retorno.
Para representantes de diferentes correntes políticas, a implementação do “Mais Brasil, menos Brasília” tem sido questionável. A vice-governadora de Pernambuco, Luciana Santos (PCdoB), avalia que "o slogan da campanha de Bolsonaro nunca se sustentou".
"Essa descentralização que o slogan poderia sugerir nunca houve. Menos Brasília e mais Brasil significa compartilhar o poder de decisão do governo federal e dar mais autonomia a estados e municípios, bem como melhor distribuir os recursos entre os entes federativos. Então é algo que não combina com o projeto autoritário de Bolsonaro. Ele quer mais poder, não menos", afirmou.
Luciana Santos acredita que a situação se agravou durante a crise causada pela Covid-19. "Estados e municípios estão tendo que enfrentar sozinhos a pandemia, já que o governo federal se desobrigou dessa tarefa", destacou. Segundo a vice-governadora pernambucana, o presidente trata os governadores "como inimigos".
Vice-presidente do Senado e ex-governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia (PSD) é da opinião que, "pessoalmente, o presidente não precisa gostar do governador ou do prefeito e vice-versa. Mas é preciso que cada qual respeite o cargo que o outro ocupa, como representantes populares que são. Depois, mais do que discurso, são necessárias ações efetivas que comecem a descentralizar responsabilidades e recursos, com o devido acompanhamento dos órgãos de controle, como deve ser".
O parlamentar cita também que o Legislativo pode apresentar respostas ao problema, por meio da apreciação de projetos como as propostas de emenda à Constituição (PECs) do Pacto Federativo e da Federação — ambas concedem mais poder a estados e municípios. A PEC do Pacto Federativo foi proposta no ano passado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, dentro de uma série de iniciativas apresentadas pelo governo Bolsonaro para o setor.
Ideologia, a pedra no sapato
Anastasia pede que os agentes políticos parem "de perder tempo com questões comezinhas para focarmos nas agendas estruturantes, como é o caso da questão federativa".
Opinião semelhante tem o deputado Toninho Wandscheer (Pros-PR): "houve um confronto desnecessário do presidente com governadores, como vimos com os de São Paulo e do Rio de Janeiro. Instalou-se uma questão política que tirou do debate o que era mais importante".
O "mais importante", para o deputado, é a consolidação da reforma tributária, cujo debate foi afetado pela pandemia de coronavírus. Sem a reforma e com o modelo atual, para Wandscheer, os governadores e, principalmente, os prefeitos acabam sendo dependentes da atuação dos parlamentares, que se mobilizam em busca de emendas no Orçamento federal que beneficiam suas regiões. "O que não pode ser confundido com 'toma-lá-dá-cá'", disse.
Vice-líder do governo na Câmara, Evair Vieira de Melo (PP-ES) acredita que a gestão Bolsonaro "empodera" as administrações municipais e estaduais. "Ele chama para o debate, coordena, faz a política, mas em momento nenhum faz intervenções", disse. Para Melo, o modelo de relação estabelecido entre Bolsonaro e o Congresso é também um exemplo deste empoderamento: "ao fortalecer os deputados, ele fortalece os estados e municípios, porque são os representantes".
O deputado disse ainda que parte dos problemas identificados que estados e municípios enfrentam por conta da pandemia de coronavírus se deve ao fato de que seus gestores "não estavam preparados para terem essa autonomia". "Eles começaram a perceber agora que a responsabilidade é deles. Por muito tempo esperaram que o governo federal baixasse uma lei nacional resolvendo tudo", declarou.
Histórico atribulado
Bolsonaro já vivia problemas com os governadores bem antes da chegada da pandemia de coronavírus. Em julho do ano passado, houve o "episódio paraíba": o presidente teve uma conversa sua com o então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, em que ele dizia "daqueles governadores da 'paraíba', o pior é o do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara".
A palavra 'paraíba', neste contexto, é uma expressão pejorativa que alguns moradores do Sudeste usam para se referir à Região Nordeste como um todo. O gestor do Maranhão citado por Bolsonaro é Flávio Dino (PCdoB), opositor declarado do governo federal e apontado como possível presidenciável em 2022.
Também em julho do ano passado, Bolsonaro viveu uma controvérsia ao inaugurar um aeroporto na Bahia, estado governado por Rui Costa (PT). O petista se recusou a comparecer à solenidade após o presidente se queixar de uma suposta recusa, por parte do governador, de fornecer homens da Polícia Militar para fazer a segurança do evento. Costa alegou que a área estava cercada pelo Exército e que a PM nem sequer teria acesso ao local. O episódio foi recordado recentemente por Bolsonaro, em uma das suas "lives" semanais, quando ele citou problemas de segurança que viveu em estados governados por adversários políticos.
O mesmo período do ano passado viu também a ascensão do Consórcio Nordeste, que uniu os nove governadores da região para o debate de políticas públicas — e também para marcar posição contra a gestão Bolsonaro. O Nordeste foi a única região do país em que Bolsonaro não foi o mais votado em 2018. Além disso, o PT governa quatro estados da região — Ceará, com Camilo Santana; Piauí, com Wellington Dias; Rio Grande do Norte, com Fátima Bezerra; e a já mencionada Bahia.
Mesmo com Doria e Witzel, seus aliados durante a campanha de 2018, o rompimento se deu ainda antes da pandemia de coronavírus. O afastamento com o governador paulista se iniciou pouco após o período eleitoral e começou a se consolidar em julho do ano passado, quando Doria criticou declarações de Bolsonaro em defesa da ditadura instalada no Brasil em 1964.
Já com Witzel o ponto de partida do afastamento foram declarações dadas pelo governador em setembro do ano passado: ele disse que gostaria de ser presidente da República e que não atribuía a sua vitória eleitoral a Bolsonaro.