Manifestantes que pedem intervenção das Forças Armadas para reverter o resultado da eleição presidencial podem ser processados? Esta é uma discussão que passou a ser feita, no mundo jurídico, desde que eclodiram os atos populares contra a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na última terça-feira (15), feriado da Proclamação da República, milhares de pessoas participaram de manifestações em frente a quartéis na maioria das capitais e das grandes cidades do país.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), já determinou que as polícias identifiquem os organizadores e financiadores do que chama de “atos antidemocráticos”. As Forças Armadas, por outro lado, defenderam, em nota, os direitos constitucionais à livre manifestação do pensamento e à liberdade de reunião, desde que realizada pacificamente.
Para entender, afinal, quais os limites dessas manifestações, e em que medida seus participantes podem ou não ser punidos, a Gazeta do Povo consultou a legislação aplicável, o atual entendimento jurídico em torno dos direitos envolvidos, e um jurista estudioso do tema.
O direito de realizar manifestações está garantido pelo inciso XVI, do artigo 5º da Constituição, que diz que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Qual é a jurisprudência do STF sobre o direito a manifestações
No STF, os julgamentos mais relevantes sobre o tema, no período recente, foram realizados em 2011, quando os ministros consideraram válidas as chamadas marchas da maconha. Na época, discutia-se se eram constitucionais um dispositivo da lei antidrogas que penalizava o ato de “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga” e outro do Código Penal que criminalizava o ato de “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”.
Os ministros consideraram que, no caso das marchas da maconha, esses crimes não ocorriam, por entenderem que nessas manifestações, não havia estímulo a um ato criminoso – venda ou consumo de drogas –, mas uma defesa da legalização ou descriminalização dessas condutas.
Na época, firmou-se o entendimento de que o direito de reunir-se para realizar manifestações é um meio para a livre expressão do pensamento. “O direito à livre manifestação do pensamento: núcleo de que se irradiam os direitos de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias”, diz a ementa do julgamento.
A discussão sobre a legalização das drogas, afirmaram os ministros, “deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis”.
Outra compreensão, formalizada na decisão, foi a de que “nenhuma lei, seja ela civil ou penal, pode blindar-se contra a discussão do seu próprio conteúdo”. “Nem mesmo a Constituição está a salvo da ampla, livre e aberta discussão dos seus defeitos e das suas virtudes, desde que sejam obedecidas as condicionantes ao direito constitucional de reunião, tal como a prévia comunicação às autoridades competentes”. Só no estado de defesa e no estado de sítio, o direito de reunião, e, portanto, de realizar manifestações, ficaria limitado.
Marcha da maconha pode; intervenção militar, não
Se o STF considera válido fazer uma manifestação em favor da possibilidade de fazer algo hoje considerado ilegal – venda e uso de drogas ilícitas – estariam os manifestantes que participam dos atos em frente aos quartéis exercendo seu legítimo direito de reunião, sobretudo se considerarmos que os atos são pacíficos e que, agora, não atrapalham o direito de ir e vir?
Para o procurador regional da República Bruno Calabrich, mestre e professor em Direito Penal, depende muito do tipo de manifestação realizada. Para ele, o Código Penal deixa claro que é crime pedir algo como a intervenção das Forças Armadas para impedir a posse de um presidente eleito pelo voto popular. Uma ação militar desse tipo, ainda que não tivesse êxito e fosse uma mera tentativa, estaria enquadrada no artigos 359-L, que define o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, e 359-M, que classifica o delito de golpe de Estado.
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Ambos foram introduzidos no ano passado no Código Penal para substituir a antiga Lei de Segurança Nacional. O artigo 359-L caracteriza-se por “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” – a pena é de 4 a 8 anos de prisão, além daquela correspondente à violência do ato. O artigo 359-M, com pena de 4 a 12 anos, é definido pelo ato de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
São crimes que dificilmente seriam cometidos por populares que estão nas ruas, pois é mais provável que fossem executados por militares armados. Ainda assim, os cidadãos comuns poderiam ser responsabilizados por incitar as Forças Armadas a agir assim. Trata-se do crime previsto no parágrafo único do artigo 286, também introduzido na nova lei de crimes contra o Estado Democrático de Direito e que consiste em incitar, publicamente, “animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”. A pena, no entanto, é bem menor: detenção, de três a seis meses, ou multa.
Trata-se de um crime de menor potencial ofensivo, que não leva efetivamente a pessoa para a prisão – a pena costuma se limitar a pagamento da multa, prestação de serviços à comunidade e limitações que impeçam a pessoa de reincidir. A mesma pena – ou talvez ainda menor – poderia ser aplicada a quem participa dos atos, com base no artigo 29 do CP, que diz que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Pedido de intervenção militar é inconstitucional
Calabrich, no entanto, faz várias observações. Em primeiro lugar, ele rebate o argumento de que se é constitucional pedir a legalização da maconha, seria também a intervenção. “É diferente: quando faz marcha do aborto ou da maconha, não está se dizendo para as pessoas fumarem maconha ou praticarem aborto. Os ativistas vão lá para pedir legalização da maconha ou do aborto. Não é ‘pratique um crime, mas legalize’”.
No caso da intervenção, ele entende que é algo impossível de ser legalizado ou constitucionalizado no atual ordenamento jurídico. “Não existe nenhuma possibilidade de uma emenda constitucional para prever que o Exército vai tomar conta do país. Isso é uma impossibilidade absoluta em nossa Constituição. A única chance disso ocorrer seria por meio de uma revolução para abolir a Constituição, abolindo um fundamento de nossa República.”
Por outro lado, ele não entende ser crime quando os manifestantes se limitam a criticar a atuação do STF ou de seus ministros, bem como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a forma como conduziu o processo eleitoral, inclusive em relação às urnas eletrônicas – vários manifestantes estão indignados porque queriam mais transparência do sistema, suspeitam de fraude na votação, entendem que não houve imparcialidade, de modo a favorecer o presidente eleito Lula e prejudicar o candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) na disputa.
Mas, ainda que os manifestantes insistam num clamor pela intervenção, não necessariamente todos seriam processados. Por duas razões: uma de razoabilidade jurídica e outra de inviabilidade prática. No primeiro caso, o Ministério Público poderia entender que muitas dessas pessoas estão iludidas ou enganadas ao considerarem que isso é algo lícito, provavelmente por uma compreensão heterodoxa e atualmente considerada equivocada do artigo 142 da Constituição, que diz que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Predomina no Judiciário e na academia o entendimento de que tal dispositivo serve, no limite, para garantir a segurança externa e interna quando todos os outros meios falham. Não seria uma permissão tácita para os militares agirem quando um dos poderes requisita uma intervenção em outro que estaria ameaçando suas competências, como muitos acreditam.
“Existem muitas pessoas que estão lá iludidas com a premissa de que isso é possível. Ou por ignorância, ingenuidade, acreditam que isso é constitucionalmente viável. Não sabem dessa impossibilidade. E aí o MP tem que avaliar: será que elas têm condições de compreender que estão sendo como usadas como massa de manobra. Talvez essas pessoas sejam vítimas e estejam sendo usadas”, diz ele. Nesse caso, seria mais adequado ao Ministério Público denunciar financiadores e organizadores que estão provocando essa agitação com fins políticos ilegítimos – é o caminho já adotado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.
Por outro lado, ficaria também difícil denunciar caso a investigação conclua que as manifestações não são orquestradas de cima para baixo, de que não há líderes e que toda a estrutura e financiamento vêm de voluntários, pessoas comuns que sinceramente acreditam na causa.
Assim como participantes comuns, alguns ativistas que colaboram voluntariamente com comida, carro de som, faixas, etc, não teriam outros interesses que não o de expressar uma revolta difusa e despropositada. Seria algo a ser esclarecido caso a caso, dentro do processo judicial.
A última dificuldade em processar todos os participantes é de ordem prática. Seria impossível ao MP ajuizar ações contra milhares de pessoas, de uma só vez, com uma enorme sobrecarga a um Judiciário já abarrotado de processos, sobretudo considerando as baixíssimas penas para o crime de incitação. “Não existem pernas dos órgãos para processar. Mas pelo menos devem ser investigados e processados os líderes”, ressalva Calabrich.
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