Nos últimos meses, o funcionamento da democracia virou um tema central de várias manifestações de rua no Brasil. Há grupos que pedem o impeachment do presidente, outros que clamam por uma intervenção militar e ainda aqueles que, como o do protesto do último domingo (31) em Brasília, pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional.
Gilmar Mendes, ministro do STF, classificou essas últimas manifestações como “inconstitucionais” e “criminosas”, em uma entrevista concedida à GloboNews, e disse que elas “têm que ser repudiadas e punidas”.
“Já tive até oportunidade de dizer ao próprio presidente da República que me parecia extremamente inadequado ele participar de manifestações que clamavam pelo fechamento do Congresso, do STF e por qualquer medida antidemocrática”, disse Mendes ao canal.
E há ainda os atos que descambam para a violência física e a depredação de patrimônios público e privado, como os que ocorreram em São Paulo, no domingo, e em Curitiba, na segunda-feira (1º), que transitam perigosamente entre a legitimidade do ato e a prática de crimes, com desvios de comportamento que beiram a desobediência civil. Estes atos também miram as instituições democráticas, com ataques ao poder Executivo e Judiciário, como aconteceu na capital paranaense.
Mas, se a Constituição garante a liberdade de expressão a todos os cidadãos, quando um protesto pode ser considerado antidemocrático? Ou mesmo um ato pró-democracia?
O que diz a Constituição
Em seu artigo 5º, a Constituição diz que “é livre a manifestação do pensamento”. Além disso, afirma que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”, com a ressalva de que é necessário “prévio aviso à autoridade competente” sobre a manifestação.
Em contrapartida, as leis civis e penais valem no contexto das manifestações como em qualquer outra circunstância, e quem incorre em um crime durante uma manifestação pode responder por ele.
“As pessoas, a depender do teor dessa manifestação, podem ser responsabilizadas civilmente ou penalmente”, explica Acácio Miranda, especialista em Direito Constitucional.
Luís André Negrelli, professor de Direito do Ibmec SP, diz que “o direito de protestar, de organizar manifestações, não é ilimitado”. “É um direito sagrado, pela Constituição, um direito relevante em qualquer democracia do mundo, um direito essencial da cidadania. Mas está sujeito a limites”, afirma.
Segundo ele, há dois tipos de limites: em relação à liberdade de expressão, que não é total, e em relação à conduta das pessoas que protestam, o que envolve questões como o horário determinado, o local e o caráter pacífico das manifestações.
Em uma manifestação a favor do impeachment do presidente da República, por exemplo, uma calúnia contra o chefe da nação poderia ser considerada um crime como em qualquer outro contexto. Nesse caso, o direito à liberdade de expressão não poderia se sobrepor à conduta criminosa.
“Eu posso dizer, por exemplo, que o presidente precisa ser ‘impichado’. Mas eu não posso dizer que o presidente é um estuprador, é um assassino, porque aí eu estou cometendo uma calúnia, estou imputando um crime a alguém. Isso é um crime por si só”, explica Negrelli.
Manifestações que questionam o Estado de Direito têm limites?
Segundo juristas consultados pela Gazeta do Povo, manifestações que questionam o Estado de Direito podem ser consideradas ilegais. “Uma manifestação, seja ela racista, seja ela contrária ao Estado Democrático de Direito, admite um tipo de punição”, diz Miranda.
O próprio STF já determinou que protestos que coloquem em risco o Estado Democrático de Direito podem ser punidos, quando considerou constitucional a Lei de Segurança Nacional de 1983. Miranda explica que há uma tipificação de crime nessa lei, que se aplica “a quem atente ou ponha em perigo o Estado Democrático de Direito e a legitimidade das instituições”.
“O Supremo Tribunal Federal já entendeu que manifestações dessa ordem configuram, em tese, são crimes políticos. Há uma lei, a Lei de Segurança Nacional… Houve um debate sobre a constitucionalidade dela, e o Supremo entendeu que ela permanece válida”, afirma.
Em relação aos protestos dos últimos dias, uma eventual punição dependeria da forma como essa interpretação pudesse ser aplicada ao caso.
“Para a configuração de um crime político, é necessário um ato que exponha a perigo ou reverbere um perigo direto ao Estado Democrático de Direito. Nós precisaríamos avaliar se a manifestação expõe ou não expõe o Estado Democrático de Direito a risco. Aí é uma análise mais subjetiva”, pondera Miranda.
Para Negrelli, protestos que apoiem abertamente uma intervenção militar são necessariamente criminosos. "Uma manifestação que defenda uma intervenção militar faz apologia ao crime. É absolutamente ilegal. Se alguém vai à rua para defender golpe militar, está agindo contra a lei. Não tem meio termo aí", diz.
Manifestações a favor de algo ilegal são sempre ilícitas?
Os juristas explicam que nem todas as manifestações a favor de algo ilegal são consideradas ilícitas. Há, nesse sentido, o exemplo da Marcha da Maconha, que, em 2011, foi considerada legal pelo STF.
O tribunal entendeu que a manifestação favorável à legalização da droga é válida porque sustenta um ponto de vista sobre a mudança da lei, e não uma apologia ao uso da substância. A mesma interpretação também poderia valer para uma marcha a favor da legalização do aborto.
“Outra coisa seria defender o tráfico de drogas, que é uma atividade ilícita”, diz Negrelli. “O que o pessoal estava propondo era uma mudança nas leis, que as leis passem a descriminalizar o porte, ou o próprio consumo. Isso é lícito, é o direito de expressão do cidadão.”
Mas, nesse caso, uma manifestação favorável a leis racistas poderia ser considerada legítima? Os juristas afirmam que não.
“O racismo acontece quando você externa uma opinião racista. O crime relacionado ao aborto não acontece quando você externa uma opinião favorável ao aborto”, explica Miranda, fazendo a ressalva de que “a bem da verdade, é uma linha muito tênue”.
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