O Marco Civil da Internet completa nesta quarta-feira (24) uma década de vigência, num momento em que está sob ataque dos Três Poderes. Seja por meio de decisões judiciais ou de propostas legislativas em tramitação com respaldo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o foco principal de investidas contra a Lei 12.965/2014 está no seu artigo 19, que estabelece as condições para a remoção imediata de conteúdo das redes sociais.
De acordo com analistas consultados pela Gazeta do Povo, as pressões, motivadas pela disputa política, afetam alguns pontos cruciais do arcabouço legal e alcançam até mesmo princípios fundamentais das liberdades democráticas e de expressão.
“O Marco Civil da Internet tem falhas, como qualquer lei, e merece aperfeiçoamento e modernização. Apesar disso, ela já dá conta de boa parte das questões do ambiente digital e traz como princípio, nos seus artigos 18 e 19, uma proteção à liberdade de expressão mais potente do que a maioria das demais leis infraconstitucionais. Infelizmente, são exatamente esses artigos que tanto incomodam as autoridades atualmente”, comentou André Marsiglia, advogado especializado em liberdade de expressão.
Ao longo dos últimos 10 anos, a legislação brasileira destinada a regular os direitos e responsabilidades dos usuários, provedores de conexão e aplicativos online tornou-se referência global. Mas agora ela também serve de sustentação para uma polêmica internacional acerca da regulação das plataformas digitais.
O debate sobre esse tema está em curso na Câmara e deverá prosseguir na forma de um grupo de trabalho de deputados dedicado a propor texto alternativo ao Projeto de Lei 2630/2020, chamado de PL das Fake News ou da Censura, apoiado pelo Planalto e por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas sem consenso para avançar.
A revisão do artigo 19 do Marco Civil da Internet também pode ocorrer via STF. O ministro Dias Toffoli é relator de uma ação que trata da constitucionalidade desse trecho da lei e disse que até final de junho liberará o processo para julgamento. Caberá, então, ao presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, marcar uma data para a análise da questão.
Violações ao Marco Civil reveladas por Elon Musk
De toda forma, os efeitos de uma regulamentação das mídias sociais já se desenrolam na prática, por meio de decisões de tribunais superiores. A votação do chamado PL da Censura continua incerta na Câmara e o STF ainda não julgou o artigo 19, mas se evidenciam atropelos ao Marco Civil da Internet revelados pelo Twitter Files Brasil.
Conforme a Gazeta do Povo reportou, e-mails internos de funcionários do X (antigo Twitter), trocados entre 2020 e 2022, mostraram que autoridades brasileiras insistiam em obter acesso a dados não coletados pelo Twitter e não previstos pelo Marco Civil. Um exemplo foi o caso de uma ordem judicial, expedida durante investigações da Justiça Eleitoral, determinando a coleta de dados em massa de usuários da rede social que postaram as hashtags #Barrosonacadeia, #VotoDemocráticoAuditável e #VotoImpressoNão no período que antecedeu as eleições de 2022 no Brasil.
Essas violações contra uma grande maioria de usuários conservadores, mas que também atingiram figuras de esquerda, foram expostas globalmente pela resposta de Elon Musk, proprietário da plataforma X, que criticou diretamente as decisões do ministro Alexandre de Moraes, do STF, e pelo debate sobre um relatório parcial elaborado por congressistas americanos a partir de intimações e processos sigilosos da Justiça brasileira fornecidos pelo X.
Resoluções e órgãos do TSE avançam sobre a lei
Além disso, a criação de novas resoluções e órgãos do TSE para regular as redes durante as eleições sugere um aumento do controle que, segundo críticos, viola os princípios estabelecidos na legislação e na liberdade de expressão protegida pela Constituição.
Uma resolução aprovada em janeiro pelo TSE sobre propaganda eleitoral, válida para as eleições municipais de 2024, foi vista como um claro desrespeito ao Marco Civil. Um dos trechos da norma diz que as plataformas de internet serão "solidariamente responsáveis", civil e administrativamente, por conteúdos publicados durante o período eleitoral. A Corte eleitoral, que já contava com uma assessoria especial de "combate à desinformação", também anunciou, no começo do ano, a criação de um centro avançado para identificar e derrubar notícias consideradas falsas, em parceria com outras entidades.
Essa situação tem gerado protestos frequentes de Musk e de cidadãos afetados por bloqueios. Eles argumentam que a mudança na responsabilização das plataformas pode levar à autocensura e aprofundamento dos mecanismos de moderação de conteúdo já utilizados por elas.
O receio dos idealizadores do Marco Civil é que, em nome de estabelecer novas regras regulatórias, pontos centrais que garantem a liberdade de expressão sejam suprimidos. Portanto, a regularidade das normas editadas pelo TSE é questionada por defensores do Marco Civil e advogados especializados em tecnologia.
Por outro lado, o questionamento sobre a capacidade do Marco Civil em lidar com desafios como desinformação em massa e discurso de ódio tem sido constante. O ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta, argumenta que a lei não é mais adequada para a realidade das mídias sociais atuais.
STF pode julgar item da lei que impede censura
A campanha do Executivo, de parte do Legislativo e do Judiciário em favor da derrubada de normas previstas no Marco Civil da Internet também inclui a possibilidade de mudanças impostas pelo STF.
O principal processo em tramitação no Supremo sobre o tema trata de um caso específico de remoção de um perfil do Facebook, mas sua decisão terá impacto em todas as ações similares no Brasil. Há várias partes interessadas no processo, incluindo Google, TikTok e X, além de instituições como o Instituto de Advogados de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a Confederação Israelita do Brasil (Conib).
Na Suprema Corte há uma divisão sobre o tema, o que pode resultar em novo adiamento do julgamento até que haja consenso.
Para especialista, briga política força mudanças
Segundo o professor e advogado especializado em direito digital Hélio Moraes, as recentes contestações ao artigo 19 do Marco Civil da Internet por parte do TSE, do STF e outras instâncias geram sérias preocupações na sociedade. Ele destaca que esse questionamento é resultado de uma série de ações de diferentes atores, todos buscando alterar um marco regulatório que está em vigor há uma década, um período considerado curto para uma lei que se espera ter longa duração.
Para o especialista, além das questões tecnológicas, essas movimentações envolvem premissas fundamentais que foram amplamente debatidas. Ele observa que as ordens judiciais sumárias, comumente utilizadas em casos de violação de direitos de propriedade intelectual, não foram adotadas para não comprometer a liberdade de expressão. No entanto, nos últimos anos, o país foi tomado por uma crescente polarização política, influenciando o debate sobre o Marco Civil e resultando na proposição de mudanças que ele considera perigosas, especialmente aquelas que atribuem responsabilidade às plataformas pelo conteúdo publicado.
Hélio Moraes lamenta que, devido à dificuldade de estabelecer verdades inequívocas em questões políticas, as redes sociais estejam buscando se proteger e, consequentemente, sacrificando a liberdade de expressão. Ele observa que, diante da impossibilidade do Judiciário lidar com o grande volume de postagens, há uma tendência de promover a autocensura por parte das empresas.
Novo Código Civil pode ferir item do Marco Civil
O advogado também levanta questões sensíveis sobre o melhor foro para debater mudanças diretas no Marco Civil, ao invés de fazê-lo de forma indireta. Ele ressalta que as decisões recentes não alteram a lei, mas a confrontam na prática e em casos específicos.
Hélio Moraes também expressa preocupação com a possibilidade de o projeto do novo Código Civil, especialmente em seu capítulo sobre direito digital, modificar o artigo 19 do Marco Civil e afetar a proteção de dados. Ele critica a elaboração apressada desse projeto, dada sua amplitude de temas e implicações.
O professor e advogado alerta para o perigo de se invadir leis específicas por meio de uma nova lei ordinária, destacando que isso pode gerar contradições, embora a lei mais recente, abrangendo diversas questões, sobreponha-se à anterior não por questões hierárquicas, mas simplesmente por sua posterioridade.
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