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Os deputados federais devem votar, nesta terça-feira (30), um projeto de lei que estabelece o ano de 1988 como o marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil. A votação é uma articulação da bancada do agronegócio para marcar a posição do Congresso sobre o tema, já que na próxima semana a constitucionalidade do marco temporal será analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Na semana passada, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) mostrou que é capaz de mobilizar a Câmara dos Deputados em torno do projeto de lei do marco temporal (PL 490/2007): 324 deputados da oposição e do Centrão votaram pela aceleração do trâmite da proposta na Casa; e 131 parlamentares, de partidos de esquerda, votaram contra.
Na votação desta terça, serão necessários 257 votos para a aprovação do mérito do projeto de lei – maioria simples. Passando na Câmara dos Deputados, a proposta irá ao Senado, onde também já há uma articulação para que ela caminhe mais rapidamente.
Se houver a aprovação dos deputados, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) sinalizou que, assim que o texto chegar ao Senado, ele vai apresentar um requerimento de urgência para que a votação do marco temporal seja feita diretamente no plenário da Casa. São necessárias 27 assinaturas de senadores para que a urgência seja pautada. A votação da urgência deve ser simbólica, ou seja, não será possível verificar quem votou contra e a favor da aceleração da tramitação.
A bancada do agro acredita que o projeto dará segurança jurídica aos agricultores e promoverá a paz no campo, estabelecendo critérios mais claros para a demarcação de terras indígenas. Organizações ligadas à causa indígena, por outro lado, entendem que a aceleração da tramitação do PL do marco temporal às vésperas do julgamento no STF desrespeita a Suprema Corte e as instituições democráticas.
Proposta pretende tornar lei decisão do STF
O PL do marco temporal está em discussão no Congresso desde 2007. Originalmente, ele pretendia transferir do Poder Executivo para o Legislativo a competência para realizar demarcações de terras indígenas. Após alterações propostas por meio de textos substitutivos, o projeto passou a tratar também do marco temporal.
Atualmente, o texto apresentado pelo relator do PL 490, deputado Arthur Maia (União-BA), reforça a aplicação das 19 condicionantes que foram apresentadas pelo STF em 2009 durante o julgamento sobre a reserva indígena Raposa Serra do Sol (PET 3388/RR), confrontando a ideia de que o marco temporal resultaria em prejuízo ou retirada de direitos conquistados pelos povos indígenas.
Na percepção da bancada do agro, o STF, naquela ocasião, declarou o balizamento do procedimento de demarcação de terra indígena considerando o marco temporal de 05/10/1988 e as 19 condicionantes.
Dentre essas condicionantes estão pontos como a proibição da ampliação das áreas já demarcadas e a possibilidade de a União decidir sobre o uso das riquezas sempre que houver interesse público. Consta ainda que a União pode instalar entradas, redes de comunicação e serviços para saúde e educação nas áreas demarcadas. Além disso, há a previsão de que as terras indígenas não possam ser arrendadas e a proibição da realização de negócios que restrinjam os direitos indígenas. Todos estes pontos foram considerados no substitutivo apresentado pelo relator do PL do marco temporal, deputado Arthur Maia.
Para a FPA, setores do Ministério Público Federal (MPF) buscam relativizar o marco temporal, algo que traz grande insegurança jurídica ao tema.
Bancada do agro quer “esvaziar” julgamento do STF sobre o marco temporal
A votação do mérito do projeto deve acontecer na semana que antecede a retomada do julgamento no STF. No entendimento da FPA, a aprovação do PL do marco temporal “esvazia” o julgamento, já que a proposta regulamenta o disposto na Constituição Federal.
“Faz 16 anos que ele está tramitando, o PL 490 [do marco temporal], e acredito que com essa aprovação a gente consiga sustar essa iniciativa do Supremo Tribunal Federal que vai gerar uma crise gigantesca no nosso setor, insegurança jurídica para nossos produtores", disse o presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR) em entrevista para o Canal Rural. "Estamos falando da possibilidade de 22% de demarcação indígena do território nacional e nós temos que garantir o direito de propriedade daqueles que realmente têm o título da terra e hoje estão fadados a não ter sequer indenização dessas áreas”, alertou.
No entanto, não há garantia de que, mesmo o projeto sendo aprovado, a Suprema Corte deixará de julgar a ação do marco temporal, que tem repercussão geral, ou seja, passará a valer para todas as demarcações de terras indígenas no Brasil.
O julgamento em pauta no STF trata de um recurso apresentado pelo governo de Santa Catarina que aborda a demarcação da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, habitada por povos Guarani, Guarani Mbya, Guarani Ñandeva, Kaingang e Xokleng. A área indígena está entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux, e Vitor Meireles. O STF já adiou por sete vezes esse julgamento. A última vez ocorreu em junho de 2022 por “consenso entre os ministros”.
De acordo com um estudo apresentado pelo Observatório Jurídico do Agro (OJA) - ligado ao Instituto Pensar Agropecuária (IPA), que presta assessoria para a FPA -, o impacto econômico estimado com a demarcação de novas terras indígenas pode chegar na geração de empregos: 1,5 milhão a menos, segundo estimativa. Na avaliação do OJA, é possível ainda que se tenha um aumento significativo no preço dos alimentos.
Organizações indígenas consideram a proposta um ataque ao STF
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Instituto Socioambiental (ISA), duas das principais organizações que atuam em defesa dos povos indígenas, manifestaram-se contra a atuação do Congresso na pauta do marco temporal.
Para o ISA, trata-se de uma afronta, especialmente por parte do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que vem acelerando a tramitação do PL do marco temporal.
“Lira afronta os outros poderes e busca intimidar o STF, imitando as crises institucionais forjadas por Bolsonaro, ao colocar o PL 490 na pauta. A questão é constitucional, será judicializada e só irá gerar mais violência, conflitos no campo e insegurança jurídica, criando falsas expectativas de anulação das demarcações”, alerta a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
Cleber Buzatto, integrante do Cimi Regional Sul, afirmou que a votação na Câmara é “um indicador bastante objetivo de que os inimigos dos povos indígenas estão preocupados com o que pode acontecer no julgamento do Supremo Tribunal Federal”.
Em uma nota coletiva, um conjunto de organizações pastorais lideradas pelo Cimi também falou sobre "desrespeito" ao STF. “A aprovação da urgência em sua tramitação acontece nas vésperas do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do famigerado marco temporal. Isso significa, por parte da Câmara dos Deputados e do presidente da Casa, Arthur Lira (PP/AL), um enorme desrespeito à Suprema Corte do Brasil e às demais instituições democráticas”, diz um trecho da nota publicada pelo Cimi.
Em outra frente de oposição ao projeto, a Defensoria Pública da União (DPU) defendeu, em uma nota técnica, a rejeição integral do projeto de lei sobre o marco temporal na demarcação de terras indígenas. O documento foi enviado pelo defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro Junior, na última sexta-feira (26), a Arthur Lira.