O calhamaço da Polícia Federal (PF) sobre o indiciamento de Jair Bolsonaro (PL) e outros 36 investigados por uma suposta tentativa de golpe de Estado no fim de 2022 — que incluiria um plano para assassinar autoridades — alimenta duas narrativas opostas em torno do ex-presidente, empregadas, respectivamente, por adversários e apoiadores.
De um lado, a PF aponta Bolsonaro como figura central de um esquema criminoso, atuando direta e efetivamente. Do outro, seus aliados destacam inconsistências e contradições que, ao contrário, servem para caracterizá-lo como um decisivo obstáculo para a trama golpista. Essa narrativa parte da percepção de que haveria reiterada resistência dele a ações de força ou inconstitucionais, apesar de sofrer forte pressão.
Entre as duas versões sobre mesma investigação, sobressaem ainda dúvidas sobre o nível de participação de Bolsonaro nas diferentes etapas do planejamento da suposta tentativa de golpe, considerada pela PF como importante. O ex-presidente só admite ter participado de discussões de eventual decretação de estado de sítio.
A PF concluiu que o ex-presidente “planejou, dirigiu e liderou” ações com "plena consciência" para consumar o golpe de Estado, frustrado pela negativa do dos comandantes do Exército e da Aeronáutica em apoiá-lo. O relatório teve o seu sigilo tirado e foi enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) nesta terça-feira (26).
Relatório da PF sustenta que Bolsonaro já atuava na perspectiva de golpe desde 2019
Ao longo de suas quase 900 páginas, o relatório da PF acusa Bolsonaro e os demais indiciados de integrarem organização criminosa e de buscarem a abolição do regime democrático. A corporação destacou que Bolsonaro vinha difundindo falsas suspeitas de fraude eleitoral desde 2019, para justificar medidas após a derrota em 2022.
Diz o relatório da PF que os elementos de prova obtidos ao longo da investigação “demonstram de forma inequívoca que o então presidente da República planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito, fato que não se consumou em razão de circunstâncias alheias à sua vontade”.
“O arcabouço probatório indica que o grupo investigado, liderado por Jair Bolsonaro, criou, desenvolveu e disseminou a narrativa falsa da existência de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação desde 2019, com o objetivo de sedimentar na população a falsa realidade de fraude eleitoral para posteriormente a narrativa atingir dois objetivos: primeiro, não ser interpretada como possível ato casuístico em caso de derrota eleitoral e, segundo e mais relevante, ser utilizada como fundamento para os atos que se sucederam após a derrota do então candidato”, acrescenta a PF.
Segundo a narrativa da PF, Bolsonaro teria pressionado chefes militares e promovido atos de desinformação para desacreditar as urnas eletrônicas. Entre provas citadas estão reuniões com ministros para difundir teses pró-golpe e a elaboração e revisão de um decreto de estado de defesa para refazer as eleições.
O relatório aponta ainda apoio da gestão Bolsonaro a manifestações em frente a quartéis e envolvimento no 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas. Por fim, a PF afirma que o ex-presidente sabia e deu anuência ao plano para executar Lula, Alckmin e Moraes.
Bolsonaro vê perseguição no inquérito que o aponta como o mentor de golpe
Aliados do ex-presidente contestam as conclusões da PF. “Tenta-se construir uma narrativa a partir de mentiras para tentar imputar a Bolsonaro uma tentativa de golpe que nunca houve. O que está em jogo a partir do que tentam fazer com o ex-presidente é a liberdade de todos e o Estado de Direito no país”, disse o senador Márcio Bittar (União Brasil-AC).
O ex-presidente alega “perseguição”, que remonta à sua primeira disputa pela presidência da República, em 2018.
As investigações da corporação indicaram que o general da reserva Mário Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, esteve à frente do plano. “Vai dar golpe com um general da reserva e quatro oficiais superiores? Cadê as Forças Armadas?”, questionou Bolsonaro. Para ele, o relatório está repleto de "criatividade" e sofreu diversos ajustes nos últimos dias.
Reação semelhante teve nesta segunda-feira (25) o ex-presidente Michel Temer (MDB). Segundo ele, não houve grande risco de assassinato de Lula e outras autoridades porque as tentativas não iriam adiante. “Se as Forças Armadas não estiverem dispostas a fazê-lo, não há golpe possível no país”, afirmou.
Áudio sugeriria que postura "democrata" de Bolsonaro conteve a trama golpista
Para aliados próximos de Jair Bolsonaro, as mensagens captadas pela PF depõem a favor do ex-presidente. A prova disso, segundo eles, seria o momento que o coronel Reginaldo Vieira de Abreu reagiu com xingamentos às “quatro linhas da Constituição”, em conversa com o general Mario Fernandes.
A crítica de Abreu, então chefe de gabinete do general Fernandes, faz alusão à expressão “jogar dentro das quatro linhas da Constituição”, usada com frequência por Bolsonaro em 2022. Para aliados, essa defesa da obediência à Carta Magna sugere que o ex-presidente impediu a ruptura da ordem democrática.
O inquérito revelou 55 áudios trocados entre militares de alta patente que discutiam a possibilidade de um golpe de Estado, com a eliminação de Lula, Alckmin e Moraes como ponto de partida. As mensagens foram divulgadas de forma antecipada no programa Fantástico, da TV Globo, no domingo (24).
Em uma dessas conversas, Mário Fernandes disse: “O presidente tem que decidir e assinar essa…”. O interlocutor retrucou: “Vai esperar virar Venezuela para reagir?”. O plano, batizado de “Punhal Verde e Amarelo”, estaria programado para 15 de dezembro de 2022. Delegados da PF afirmam que os envolvidos usaram elevado conhecimento técnico-militar para organizar o plano, tocado em novembro e dezembro.
Deputado vê narrativa de golpe como justificativa para escalar arbitrariedades
Para o deputado Zé Trovão (PL-SC), a acusação de tentativa de golpe perde credibilidade diante dos áudios que revelam insatisfação dos supostos executores do plano com Jair Bolsonaro. Segundo ele, a prisão de indivíduos acusados de planejar atos violentos contra autoridades teve como objetivo “construir uma imagem de insurreição promovida por opositores do governo atual, alegadamente interessados em desestabilizar o país”.
O parlamentar argumenta que, em um cenário onde instituições públicas estão cada vez mais aparelhadas, tais acusações servem para fomentar um clima de insegurança e ampliar a polarização política. Isso, segundo ele, dificulta a distinção entre ações legítimas de resistência e supostos planos de subversão.
“O fortalecimento dessa narrativa de golpe não apenas encobre problemas internos, como a crise econômica, mas também busca justificar a repressão a críticas e o endurecimento do controle social, deslegitimando vozes dissidentes”, afirmou.
No domingo (24), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu uma nota manifestando preocupação com o respeito ao devido processo legal durante a investigação do suposto plano de assassinato de autoridades. A entidade destacou que "justiça não se faz com condenações sumárias" e alertou para a necessidade de garantir procedimentos adequados.
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