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A relação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a Argentina deve ser mais fria do que nunca após a vitória do libertário Javier Milei para a presidência do país. Após o governo do esquerdista Alberto Fernández, que deixou o país com 142% de inflação em 12 meses, reservas escassas e em um cenário de caos social, o país elegeu um candidato libertário e que promete romper com o passado da esquerda argentina.
Com a vitória de Milei, Lula deve ver naufragar seu plano de impor à América Latina pautas ideológicas de esquerda, como o apoio ao ditador da Venezuela Nicolás Maduro, o fortalecimento da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e a entrada da Argentina no bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Com Milei na Argentina, a América do Sul passa a ter quatro presidentes de direita, no Uruguai, no Paraguai e no Equador e nove de esquerda: no Brasil, na Bolívia, no Chile, no Peru, na Colômbia, na Venezuela, na Guiana, Suriname e na Guiana Francesa, que é subordinada à França por ser um departamento ultramarino.
Para especialistas, a relação entre os presidentes do Brasil e da Argentina deverá ser fria, assim como foi a relação entre Jair Bolsonaro e Alberto Fernández. "Certamente que se tivesse havido a vitória de Sergio Massa, a relação entre presidentes seria melhor, porque eles são mais alinhados em termos ideológicos. Mas isso não significa que o desalinhamento ideológico vai impactar, necessariamente, de forma negativa nas relações entre os países. O que prevalece nas relações entre os países e os Estados, é o pragmatismo", pontua o professor de Relações Internacionais do Ibmec Brasília, Ricardo Caichiolo.
O Palácio do Planalto e o Itamaraty preveem o mesmo cenário. Após o resultado da votação, o mandatário brasileiro não fez a típica ligação para parabenizar Milei pela vitória na Argentina e publicou uma tímida postagem em sua conta no X (antigo Twitter), sem mencionar Milei, desejando "boa sorte e êxito ao novo governo".
Bolsonaro publicou no X que o presidente eleito na Argentina telefonou para ele e o convidou para assistir à sua posse em dezembro. Lula, apurou a Gazeta do Povo com membros no Itamaraty, não espera pelo mesmo convite. A troca de visitas que existiu entre os dois países neste ano, inclusive, não será mais a mesma. Enquanto Fernández veio quatro vezes ao Brasil nos últimos 11 meses, Lula foi duas vezes à Argentina. Esse trânsito deve ser interrompido durante o mandato de Milei.
Em entrevista ao jornal O Globo, o assessor de assuntos especiais de Lula, Celso Amorim, revelou que o petista não irá à posse de Milei, marcada para o próximo dia 10 de dezembro. O Brasil, contudo, será representado por membros do governo, que serão escalados a depender do "tom" que Milei adotar com Lula nos próximos dias. O ex-presidente Bolsonaro deve ir com uma comitiva formada por cerca de dez pessoas.
Ruptura na relação econômica com o Brasil continua incerta
Alinhado com as ideias libertárias na área de economia, as propostas de campanha de Milei afrontam diretamente a esquerda, pois contrariam tudo o que os esquerdistas defendem ao promover ações que beneficiam o livre mercado, diminuição do tamanho e do peso do Estado, redução drástica de impostos, abrandamento das regulamentações para patamares mínimos e privatização do ensino e da saúde. Especialistas avaliam, contudo, que o pragmatismo deve ser mantido por ora na economia, para evitar danos imediatos com eventuais rupturas.
“A vitória de Milei na Argentina introduz incertezas, mas também oportunidades na relação com o Brasil, sobretudo no contexto do Mercosul e das relações comerciais bilaterais. A chave será a capacidade de adaptação e negociação para garantir o fortalecimento das relações econômicas e comerciais entre os dois países”, observou Eduardo Galvão, professor de relações governamentais do Ibmec-DF.
A Argentina é considerada a maior parceira comercial do Brasil na América do Sul. Assim, as duas nações têm uma codependência econômica. Para o doutor em ciências sociais e pesquisador da Fundação Araporã, Rogério Pereira de Campos, não seria benéfico para a Argentina o rompimento total das relações com o Brasil, um dos seus principais parceiros econômicos.
"A Argentina vive um momento complicado e não é o momento para bater o pé em algumas decisões, principalmente com o Brasil, que é seu principal parceiro econômico. Mudar drasticamente, como se propôs durante a eleição e rever algumas posições econômicas é muito complicado. Acredito que em um primeiro momento pouco deve mudar", avalia.
Segundo Campos, só vai ser possível ter noção de que rumo a relação com o Brasil vai tomar após as tomadas de decisões políticas feitas por Milei. Ele não deve descortinar toda a sua política antes de tomar posse para evitar ataques especulativos contra a moeda argentina.
"O discurso eleitoral é muito diferente do que é feito na prática. Além disso, ele não tem maioria no Congresso argentino e, por isso, é preciso aguardar seus próximos passos e ver como ele vai costurar sua base governista", pontua o pesquisador.
Esquerda enfraquece na América do Sul com Milei
Por outro lado, Lula pode perder espaço na América do Sul. Desde que assumiu para este terceiro mandato, o petista tem tentado a assumir a posição de líder sul-americano. Em maio deste ano, Lula reuniu todos os presidentes da América do Sul em Brasília com o intuito de tentar reativar a União das Nações Sul-Americanas, a Unasul, um bloco de esquerda desde sua concepção em 2008. A tentativa do brasileiro, contudo, foi frustrada por outros presidentes.
Luis Lacalle Pou, do Uruguai, se opôs ao bloco devido ao seu viés ideológico e criticou sua possível reativação. A presença do ditador venezuelano no evento, Nicolás Maduro, também não foi uma boa propaganda para Lula. Na cúpula, o petista alegou que o que acontece em termos de abusos de direitos humanos e crimes políticos na Venezuela não passa de uma "narrativa". Nem mesmo líderes de esquerda pouparam críticas ao mandatário brasileiro.
Com a eleição de Milei, quatro países sul-americanos passam a ser presididos por líderes de direita – três deles integrantes do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Sendo o único presidente de esquerda no bloco, Lula deve encontrar resistência para pautar temas com teor ideológico, como o seu interesse em reintegrar a Venezuela à organização.
A aproximação de Lula de ditaduras já causou atritos entre Lula e Pou. Durante cerimônia em que o mandatário brasileiro assumiu a presidência do Mercosul, o uruguaio se recusou a assinar a declaração conjunta e ameaçou deixar o bloco para fechar um acordo bilateral com a China – que, caso seja concretizado, pode colocar um fim no acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia.
Durante sua campanha, Milei se opôs ao bloco, mas moderou o discurso após ter sido eleito. Em entrevista à CNN Brasil, o embaixador do Brasil na Argentina, Julio Bitelli, disse "não há risco eminente" ao bloco. "Em declarações mais recentes, tanto ele quanto seu círculo mais próximo têm falado em modernizar o Mercosul e alterar sua forma de funcionamento, mas a partir de dentro do bloco", disse o embaixador.
Para os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, seria prejudicial para a Argentina deixar o bloco. Apesar da mudança de discurso, Rogério Pereira acredita que deve haver resistência em discussões no Mercosul. "É lógico que alinhamentos políticos semelhantes facilitam a comunicação, mas não quer dizer que posicionamentos diferentes impeçam a existência do bloco. Talvez criem um pouco mais de resistência e maior necessidade de alinhar pontos", pontua.
"O problema dessas tratativas é que elas envolvem muitos fatores, não é só o lado econômico ou político, existem parcerias, existem acordos comerciais bilaterais entre os países... e tudo isso interfere nessas negociações. Um país está sempre buscando o melhor para ele, e o melhor para ele não necessariamente é o melhor para o outro país", avalia o pesquisador da Fundação Araporã.
Na presidência do bloco, Lula tem corrido para fechar o acordo com a União Europeia antes que perca o apoio do países sul-americanos, principalmente do Uruguai, que tem ameaçado deixar o bloco. O receio do Itamaraty é que Milei encontre respaldo nas contestações de Pou e, juntos, desmembrem o Mercosul. Para Eduardo Galvão, contudo, a presença do libertário no grupo pode dar fôlego às negociações, já que sua ratificação seria benéfica para a produção agrícola argentina. “O Brasil pode trabalhar para manter o ritmo das negociações e buscar acordos que beneficiem ambas as partes”, aposta o diretor da BCW Brasil.
Milei deve rejeitar convite de Lula para integrar os Brics
Outra questão ainda incerta é a posição de Milei quanto aos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Em agosto, o bloco anunciou, após forte pressão da China e da Rússia, a sua expansão e convidou seis países para integrá-lo a partir do próximo ano. Com mais de 40 nações interessadas em ingressar o grupo, apenas seis foram convidadas pelos membros-fundadores.
A Argentina foi o nome indicado por Lula, ainda em uma de suas diversas tentativas do brasileiro em apoiar o então presidente do país e seu amigo, Alberto Fernández. À época, o peronista via sua popularidade despencar enquanto o país afundava em uma grave crise econômica. Com a derrota de Sergio Massa – ministro da Economia de Fernández e o candidato escolhido pelo peronismo – o convite para ingressar no Brics pode ser rejeitado por Milei.