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A Cúpula de Líderes do G20, sediada pelo Brasil nesta semana, colocará frente a frente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente da Argentina, Javier Milei, desafeto do petista. O encontro promete evidenciar as diferenças entre os dois líderes e testar o pragmatismo de Lula diante da resistência de Milei à agenda brasileira na presidência do G20.
À frente do bloco, o governo Lula propôs uma agenda baseada em três pilares: inclusão social com combate à fome e pobreza; transição energética e desenvolvimento sustentável; e reforma da governança global. Milei já mostrou não ter interesse em apoiar essas pautas.
Na semana passada, durante encontro de Parlamentares do bloco em Brasília, a Argentina foi o único país a não assinar a carta de recomendações que os congressistas produziram. A justificativa foi a agenda de Milei à frente da Casa Rosada, que antagoniza com as pautas globalistas abraçadas pelo governo Lula na presidência do G20.
"A melhor forma de reduzir a desigualdade econômica e a pobreza é promovendo o desenvolvimento econômico baseado no mercado livre, e não através da implementação de políticas coletivistas que, embora bem intencionadas, têm historicamente dado resultados contrários aos esperados", explicou Jorge Santiago Pauli, deputado argentino que representou o país no P20.
A tendência é que o desalinhamento ocorra também na declaração final da Cúpula do G20, ainda em elaboração.
Na avaliação do professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Feliú, a postura que o argentino deve adotar no G20 deve ser a de se opor a acordos globalistas e focados em soluções ambientais.
"A Argentina não vai se somar a iniciativas brasileiras [propostas no G20] e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos vai dar um enorme combustível para essas posições antiglobalistas do presidente Milei, já observadas anteriormente", avalia.
A política externa de Javier Milei deve se assimilar à que Trump deve adotar a partir de janeiro do ano que vem. "A política externa [de Trump] antes de assumir já anuncia alguns elementos importantes como a saída dos EUA do Acordo de Paris – uma pauta que é importante para o Brasil, que tenta capturar recursos internacionais para proteger florestas e evitar emissão de carbono, entre outros elementos", pontua Feliú ao explicar que decisões de Trump podem dar o tom a posicionamentos adotados por Milei.
Argentina já se opôs a resoluções em outras agendas do G20
A projeção feita por analistas de que a Argentina pode se opor a propostas apresentadas pelo governo brasileiro durante o G20 reflete posturas que o país já adotou em outras agendas do bloco realizadas pelo Brasil. A primeira demonstração foi em outubro, quando o Brasil presidiu o Grupo de Trabalho (GT) do Empoderamento Feminino do G20.
O encontro do P20 Mulheres aconteceu em Maceió e reuniu mais de 30 delegações de países para discutir a desigualdade de gênero e a inclusão de mulheres em cargos representativos. Em uma declaração final, congressistas pretendiam reconhecer que meninas e mulheres enfrentam desigualdades específicas em decorrência do gênero em todo o mundo. A Argentina, porém, não concordou em assinar o texto.
A reunião terminou sem um consenso dos países do G20. A informação que correu nos bastidores da negociação é que o veto teria vindo do próprio Javier Milei, após seus representantes escalarem até ele a negociação do apoio argentino à declaração.
Pouco mais de um mês após o ocorrido, a Argentina repetiu sua oposição a documentos em torno do bloco. Desta vez, membros do P20 se reuniram em Brasília e tentaram chegar uma declaração final.
O documento continha uma série de recomendações que deveriam ser entregues aos presidentes do bloco na próxima semana, no Rio de Janeiro, e possuía uma série de recomendações abordando medidas para alcançar os objetivos propostos pela presidência brasileira à frente do bloco, como o desenvolvimento sustentável e cooperação econômica mundial. A Argentina, contudo, se opôs à assinatura do documento.
O deputado Santiago Pauli, da base governista de Javier Milei, criticou o teor "globalista" do documento. "A melhor forma de remediar a falta de participação de certos grupos na política é incentivá-la com base no mérito individual. É por isso que, como membros do G20 e da comunidade internacional, convidamos outros países a repensar juntos uma agenda internacional baseada na liberdade", disse o parlamentar.
Javier Milei se identifica como um libertário e defende a intervenção mínima do estado em temas sociais e econômicos, posicionamento oposto ao de Lula, que tem sua agenda política centrada em programas de distribuição de renda. Essa diferença entre os dois líderes é o que os impede de uma aproximação e de um bom relacionamento. Situação que, conforme apontado por analistas, afasta o brasileiro do desejado posto de líder regional.
"Nesse cenário o Brasil vai ter baixa capacidade de influenciar e liderar, por meio da integração e do consenso regional, processos globais de maior envergadura, seja na América do Sul ou até mesmo na América Latina. Portanto [a possibilidade de] usar a América do Sul como um trampolim para ascensão global do Brasil, com o Milei, fica bem menos factível", avalia Feliú.
Lula e Milei têm apostado em pragmatismo para manter relação bilateral
Lula e Milei são antagônicos no espectro político e protagonizaram troca de farpas durante a campanha eleitoral do libertário para a presidência argentina. Ainda que o tom tenha baixado nos últimos meses e o ruído entre os líderes diminuído, nunca houve uma aproximação entre os dois presidentes. A adoção de uma relação pragmática, de acordo com analistas, ocorreu em prol da relação Brasil e Argentina, que formam a principal parceria comercial na América do Sul.
Nem mesmo durante o G20, os analistas avaliam que possa haver uma aproximação entre os dois presidentes. "A gente não deve ver nada muito amistoso, nem muito quente entre as duas partes", pontua Vito Villar, consultor de política internacional da BMJ Consultores Associados. Sem uma reunião bilateral prevista até o momento, a expectativa é que durante as agendas da próxima semana os dois tenham apenas "conversa de corredor".
Desde que assumiu a Casa Rosada, Lula e Milei ainda não tiveram agendas bilaterais, situação incomum entre presidentes do Brasil e Argentina. O líder argentino veio ao Brasil em julho e descartou um encontro com Lula e participou de um encontro com lideranças regionais de direita que ocorreu em Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Durante a visita, se reuniu com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Ainda ao longo deste ano, os dois presidentes tiveram poucas agendas em comum. Apesar de convidado pelo governo brasileiro para integrar as discussões do bloco, não há previsão de uma bilateral entre eles e, conforme apurou a Gazeta do Povo com membros do Itamaraty, o argentino não teria solicitado uma reunião com Lula. Os dois líderes já haviam se esbarrado na Cúpula de Líderes do G7, ocorrida em junho deste ano, na Itália, e também não houve reunião bilateral.
O distanciamento entre Lula e Milei, contudo, não afetou a relação entre Brasil e Argentina. O relacionamento entre as chancelarias de ambos os países se manteve próxima no último ano. O chanceler brasileiro, Mauro Vieira, e a então chanceler da Argentina, Diana Mondino, tiveram ao menos quatro encontros nos últimos meses para tratar a agenda bilateral na área do comércio e Defesa. Os dois ministros também trocaram visitar oficiais aos países para discutir essa agenda.
No final do último mês, Mondino foi afastada do cargo de chanceler após votar a favor do fim dos embargos contra Cuba, posicionamento que não agradou a Javier Milei. O governo argentino então anunciou que Gerardo Werthein, embaixador da Argentina nos Estados Unidos, assumiria a pasta das Relações Exteriores no país.
Apesar do temor levantado por especialistas de que a mudança poderia afetar a relação entre Brasil e Argentina, a troca de chanceleres não foi recebida com receio nos bastidores do Itamaraty. Conforme apurou a Gazeta do Povo com membros da pasta, Werthein já mantinha uma boa relação com a embaixada brasileira em Washington e a previsão é de que o bom relacionamento que havia com Mondino deve ser mantido com o novo chanceler.