A depredação das sedes dos três poderes em 8 de janeiro acentuou a desconfiança mútua entre militares e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que já vinha de antes da posse. Os atos de vandalismo em Brasília levaram oficiais das Forças Armadas a levantar a hipótese de uma "autossabotagem" do próprio governo para supostamente beneficiar Lula – suposição que também está sendo feita por políticos de direita. Por outro lado, o entorno do presidente levanta suspeitas sobre a atuação das Forças Armadas, que teriam favorecido o vandalismo em 8 de janeiro.
Militares da ativa e da reserva ouvidos pela Gazeta do Povo dizem repudiar os atos de vandalismo em Brasília em 8 de janeiro, mas desconfiam de uma autossabotagem do atual governo federal. Entre generais e oficiais superiores há uma interpretação de que integrantes da gestão de Lula tenham deliberadamente afrouxado o esquema de segurança para facilitar a invasão ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, o governo poderia se fazer de vítima, obter dividendos políticos e desgastar a direita.
Militares atribuem essa desconfiança a informações divulgadas pela imprensa, como a que revelou que o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República dispensou um pelotão de agentes de segurança 20 horas antes da invasão às sedes dos três poderes.
Também há a informação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) avisou sobre esse risco ao Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). A Abin é um órgão subordinado ao GSI, órgão responsável por coordenar as atividades de inteligência federal e que, historicamente, é chefiada por um militar. O atual ministro é o general Gonçalves Dias. O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que os órgãos informem se tinham conhecimento dos alertas.
Por outro lado, integrantes do governo desconfiam da atuação do GSI e das próprias Forças Armadas. Antes mesmo da posse de Lula, já havia sido definido que o GSI seria "desidratado" e não faria a segurança pessoal de Lula justamente por, no entender do entorno do presidente, haver muitos militares pró-Bolsonaro e antipetistas no órgão.
E essa desconfiança dentro do PT sobre parte dos militares também é reforçada pelas informações de que o Exército atuou para impedir a desmobilização das manifestações contra a eleição de Lula na frente dos quartéis. O governador afastado do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, afirmou à Polícia Federal que isso ocorreu em Brasília. E foi justamente no acampamento em frente do quartel-general do Exército em que se reuniram os manifestantes que, posteriormente, iriam depredar o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF.
Além disso, o próprio Lula deu declarações que mostram sua desconfiança em relação aos militares após o 8 de janeiro. Em um café da manhã com jornalistas na quinta-feira passada (12), o presidente disse que descartou a hipótese de assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para controlar a depredação em Brasília (optando pela intervenção na segurança pública do Distrito Federal) para não transferir seu poder de governar a "algum general". O decreto de GLO possibilita que os militares atuem com o objetivo de "preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições". Lula também disse que as Forças Armadas "não são Poder Moderador como pensam que são". Afirmou ainda que "perdeu a confiança" em parcela dos militares da ativa.
Nesta terça-feira (17), uma nova demonstração da desconfiança de Lula: foram dispensados 40 militares que trabalhavam na administração do Palácio da Alvorada – a residência oficial do presidente da República. Também houve a dispensa de três militares do GSI. Todas essas dispensas foram oficializadas na edição do Diário Oficial da União.
Em meio a esse clima de desconfiança mútua, há a previsão de que Lula e os comandantes das Forças Armadas se reúnam nesta semana. A reunião está sendo costurada pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que foi escolhido para o cargo justamente para apaziguar a tensa relação entre os militares e Lula.
O que dizem os militares que desconfiam do governo
O general reformado Maynard Santa Rosa diz entender que há "sérios indícios" de que houve, "no mínimo, uma omissão conivente" de integrantes do atual governo na proteção do patrimônio público no dia 8 de janeiro. O general Santa Rosa chefiou a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
"Se você vir as imagens internas [do Planalto em 8 de janeiro] vai confirmar que havia depredadores antes das entradas dos depredadores que vinham de fora. Provavelmente aproveitaram essa insensatez dos extremistas conservadores para poder usufruir dos efeitos ou então eles [esquerda e governo] próprios patrocinaram isso", diz Maynard Santa Rosa. Para o general, trata-se de um contexto de "guerra informacional". "Essa guerra informacional tem um viés psicológico. É uma operação psicológica aguda que está em pleno curso", destaca.
O general reformado Paulo Chagas define como "suspeitíssimas" as ações de proteção do patrimônio público e defende uma investigação rigorosa sobre os atos de vandalismo. "A Guarda do Palácio estava sem a tropa de reação. É preciso levantar todas as informações e alertas feitos para levantar as devidas responsabilidades", diz.
A Gazeta do Povo ouviu outros dois oficiais militares – estes da ativa – que disseram ter desconfiança de que a manifestação foi sabotada pelo governo. Eles pediram para não ter os nomes divulgados.
Os militares ouvidos pela reportagem usam diferentes argumentos para embasar suas desconfianças em relação à atuação do governo para conter as invasões às sedes dos três poderes.
O general Santa Rosa atribui a hipótese de autossabotagem a um suposto interesse do governo e da esquerda em criar circunstâncias que impeçam manifestações populares do movimento liberal-conservador contrário a Lula. Para o militar, a esquerda foi bem sucedida em sua proposta de tachar associar manifestações aos atos de vandalismo. "Hoje em dia poucos vão se atrever a promover manifestação correndo o risco de ficar com sua conta bancária zerada, sendo objeto de batida policial ou até de detenção. É essa a meta, pode acreditar que já foi alcançada", diz.
Santa Rosa acredita, porém, que a tentativa da esquerda de eliminar a oposição das ruas pode ser infrutífera. "Essas pressões funcionam como uma panela de pressão: vai chegar o momento que ela pode explodir. A queda da Bastilha [evento deflagrador da Revolução Francesa] não foi uma iniciativa de extremistas; foi uma explosão popular. Isso pode ocorrer, como já ocorreu alguns precedentes no Brasil, como na Cabanagem [a Guerra dos Cabanos, uma revolta popular ocorrida durante o Império]", diz. "É uma burrice você tentar impedir a válvula das manifestações de funcionar."
Já um oficial superior da ativa avalia que o intuito do governo é construir uma retórica para fragilizar a direita e construir condições para intervir nas Forças Armadas. "O mais urgente para eles é tentar derrubar a cúpula das Forças e substituir por gente alinhada. Essa sempre a foi a vontade deles. O PT acha que, se ele derrubar toda a cúpula [das Forças Armadas], ele resolve um problema, como fez o [Gustavo] Petros [presidente esquerdista da Colômbia, que promoveu mudanças nos comandos militares e policiais no país]", diz.
Esse oficial militar acha que o governo e a esquerda sairiam malsucedidos se esse for o objetivo. "É aí que se estrepariam. O problema [para a esquerda] não está na cúpula das Forças, está embaixo. Se eles tirarem os generais antigos para colocar generais mais modernos, é aí que eles não vão segurar a tropa", comenta o militar.
Segundo ele, as bases do Exército, da Marinha e da Aeronáutica estão em conflito com os Alto Comandos. "O pessoal [da cúpula] não representa o espírito da tropa. Hoje, existe uma diferença muito grande entre os generais e a tropa. Eles têm comando. Mas não têm liderança. A tropa não vê neles a estatura moral. A verdade é que a cúpula está de um lado e a tropa está do outro. Nunca vi isso acontecer em duas décadas. É inédito", diz o oficial.
Um segundo oficial superior avalia que, na tentativa de construir uma intervenção sobre as Forças Armadas, o governo poderia tentar promover uma integração militar dos países latino-americanos, ajustes na mudança na promoção de militares e reforma dos currículos nas Forças Armadas. Essas propostas são repudiadas por militares e defendidas entre lideranças do PT, como o ex-presidente do partido José Genoíno. "É algo que eles querem no médio e longo prazo", comenta.
Como os oficiais veem as críticas de Lula aos militares
Os militares também criticam as recentes declarações de Lula sobre militares – de que não assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para não transferir seu poder de governar a "algum general"; e de que Forças Armadas "não são Poder Moderador como pensam que são" e que "perdeu a confiança" em parte dos militares da ativa.
O general Paulo Chagas diz entender que as declarações de Lula são forma de desgastar e desprestigiar os militares. "As Forças Armadas saíram altamente prejudicadas [após os atos de vandalismo de 8 de janeiro] e essa esquerda está querendo aproveitar isso para tirar mais poder ainda porque têm medo do prestígio das Forças Armadas", diz.
Chagas afirma que a caserna sabe que não existe um Poder Moderador, assim como o STF também não é, ao contrário do que disse o ministro Dias Toffoli, da Suprema Corte, em 2021. "O próprio poder armado nunca se manifestou nessa direção, nem nesse sentido. Eles [a esquerda] têm muito receio do prestígio das Forças Armadas e querem explorar bastante isso em função do lado bolsonarista que queria golpe militar", comenta.
O general Santa Rosa interpreta as falas de Lula como uma tentativa de buscar governabilidade – que, para ele, não existe. "Ele está querendo construir um cenário antes do retorno do Legislativo para conseguir governar. Mas é uma governabilidade artificial. Como tem ocorrido tiros no pé, como o confinamento em massa e a imagem da criança no confinamento, pode invalidar toda a operação psicológica que estão construindo", diz Santa Rosa. O general se referia à foto de uma criança sendo revistada por um agente policial com um detector de metais durante prisões de suspeitos de cometer o vandalismo do dia 8 de janeiro – parte das pessoas que esteve no ato levou seus filhos ao acampamento na frente do quartel-general do Exército.
Oficiais condenam depredações, mas dizem que manifestações são legítimas
Os militares avaliam de forma crítica sobre a forma como as manifestações da direita foram conduzidas. O general Paulo Chagas diz que os atos de vandalismo foram um "tiro no pé" que deu "farta munição" para que a esquerda, em sua "infinita hipocrisia (...) se apresentasse agora coberta por uma fantasia de vidraça para tentar esconder a sua conhecida 'cara de pedra'." O general Santa Rosa diz que "não há como acobertar o vandalismo dos depredadores do patrimônio público". "A eles, todo o rigor da lei", afirma.
Os militares dizem, porém, que os atos de vandalismo não deslegitimam as manifestações e os conservadores. "A meta final da esquerda é inibir, impedir ou dificultar as manifestações, e isso que está sendo construído por essa narrativa da esquerda. Agora, se isso daí partiu da cabeça dos extremistas de direita ou se foi manipulado pela própria esquerda eu tenho dúvida", diz Santa Rosa.
Um oficial que pediu sigilo de seu nome entende que a invasão à sede dos três poderes "não ajuda" e apenas dá argumentos para a esquerda "atacar". "O que fizeram foi uma tremenda besteira, apesar de que mostrar que as pessoas não estão satisfeitas é um recado de que elas não irão se dobrar tão facilmente. Mas enfraquece o argumento que, na verdade, iguala de certa forma a direita a eles, que é tudo o que eles querem", diz. A fonte afirma, porém, que o 8 de janeiro não deslegitima as manifestações. "Até porque a esquerda sempre usou a violência. Não à toa que o Movimento sem Terra invadia e destruía empresas e órgãos públicos."
O que os militares acham das decisões de Alexandre de Moraes
Apesar das críticas feitas aos crimes e excessos cometidos na invasão à sede dos três poderes, militares entendem que os atos cometidos por alguns não justifica o que consideram se tratar de excessos e abuso de autoridade cometidos pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF – tal como a determinação da prisão de 1,5 mil pessoas, restrições a manifestações, o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), a prisão do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e a investigação contra Bolsonaro.
A detenção de manifestantes em um pátio na Academia Nacional de Polícia Federal é uma das medidas mais contestadas pelos militares. O general Santa Rosa compara o caso aos "campos de reeducação" instalados no Vietnã após o fim da guerra naquele país, em 1975, que abrigaram combatentes e civis a pretexto de ensinar sobre o novo governo. "É uma técnica psicológica terrorista de massa que está sendo adotada", diz.
Paulo Chagas classifica as decisões de Moraes como abuso de autoridade e avalia que a solução para "está na mão dos operadores do direito".
Santa Rosa diz considerar que o Executivo é ilegítimo, o Judiciário se coloca acima da lei e o Legislativo é omisso ou conivente. "Essas três condições não podem prosperar, se não vamos entrar em um emaranhado complicado que vai descambar para a escalada. Quando se extingue a força do direito é chegada a hora do direito da força", comenta.
Para um oficial militar da ativa, as decisões de Moraes contra os atos de vandalismo acentuam um regime de exceção sob um falso pretexto de preservar a democracia. "O Brasil já virou um Estado policial, que leva velho e crianças sem denúncia para uma espécie de campo de concentração", diz.
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