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Uma nova benesse para militares da reserva tem colocado em lados opostos o Ministério da Defesa e o da Economia. A pasta comandada pelo general Fernando Azevedo conseguiu aval para que integrantes das Forças Armadas com cargo no governo acumulem remunerações acima do teto do funcionalismo — R$ 39,3 mil —, mas a equipe de Paulo Guedes tenta barrar.
Em documento obtido pelo jornal O Estado de São Paulo, a área econômica alerta para o possível impacto nas contas que a mudança na regra pode causar e aponta que, desde 2018, o desconto feito no salário de servidores poupou R$ 518 milhões aos cofres públicos.
Previsto na Constituição, o chamado "abate-teto" é um mecanismo que inibe o recebimento de "supersalários" na administração pública. Na prática, ele funciona como uma linha de corte que reduz a remuneração de servidores para limitá-la ao valor máximo permitido, que equivale aos vencimentos de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Só algumas verbas escapam, os chamados penduricalhos, como os jetons por participação em conselhos de estatais, auxílio-moradia, entre outros.
Com o argumento de que corrigiria distorções de militares da reserva que exercem cargos no governo sem receber o salário ou em troca de apenas uma parte, o Ministério da Defesa fez uma consulta à Advocacia-Geral da União (AGU) se poderia aplicar um entendimento diferente para a regra. A pasta argumenta, com apoio dos comandos de Aeronáutica, Exército e Marinha, que o abate-teto deveria limitar cada salário isoladamente. Assim, caso nenhuma das remunerações atinja o teto, o militar poderia recebê-las integralmente.
O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, por exemplo, vem tendo o salário bruto do cargo, de R$ 30,9 mil, cortado mensalmente em R$ 14,7 mil por causa do abate-teto. Isso porque ele já recebe como tenente-coronel da reserva da Força Aérea Brasileira cerca de R$ 21 mil. Se o novo entendimento estivesse em vigor, Pontes poderia acumular as duas remunerações integralmente e, ao fim do mês, passaria a receber cerca de R$ 52 mil.
E ele nem é o que mais ganha. Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, poderá acumular quase R$ 65 mil brutos apenas com as remunerações básicas. O militar ainda faz parte dos conselhos de administração da Itaipu Binacional e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) — os jetons geram, respectivamente, mais R$ 14,9 mil e R$ 3,2 mil mensais.
AGU concordou com argumentos do Ministério da Defesa
Oficiais das Forças Armadas comandam nove ministérios e são maioria no Palácio do Planalto, de onde atuam nos bastidores na articulação com o Legislativo e o Judiciário, além dos órgãos de controle.
A AGU concordou com os argumentos da Defesa em abril. Em parecer o órgão jurídico do governo citou entendimentos do STF e do Tribunal de Contas da União sobre o abate-teto. O caso base foi o de dois servidores do Mato Grosso que acumulavam cargos e tiveram aval da Justiça para que o redutor fosse aplicado separadamente e não nos vencimentos acumulados.
Porém, a pasta da Economia diz que essas decisões não são aplicadas automaticamente a todo o funcionalismo federal. E também não serviria de base, pois os ministros julgaram casos específicos.
Por causa dos gastos com a pandemia da covid-19, que levou o presidente Jair Bolsonaro a decretar estado de calamidade pública, o aval da AGU dado em abril deste ano pelo então ministro André Mendonça, atual titular da Justiça e Segurança Pública, foi suspenso em maio pelo seu sucessor, o atual advogado-geral da União, José Levi. Mas, na prática, outros ministérios, como o da Cidadania, já formularam consultas ao órgão sobre como proceder os pagamentos. Isso porque o parecer da AGU beneficia não só os militares, mas todos os servidores do governo que recebem salários de duas fontes diferentes.
Agora, técnicos da Economia pressionam Levi para que reveja a autorização dada por Mendonça. Eles argumentam que "não se pode flexibilizar o 'teto' para atender uma pequena classe da sociedade brasileira". E alertam: "O já combalido Orçamento Público Federal terá de arcar com o aumento ilegal do pagamento de remunerações provenientes de acumulação de cargos, até mesmo em casos não permitidos pela Constituição".
Os técnicos ressaltam que não há dotação orçamentária específica para bancar esse aumento na despesa Orçamento de 2020 e que ela tampouco foi prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, dois impeditivos legais. A Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal pediu o "reexame" do parecer pela AGU. "O entendimento proposto pela Advocacia-Geral da União acarretará elevado impacto financeiro", diz o órgão. O governo divulgou nesta segunda-feira (31) a proposta orçamentária do ano que vem que será enviada ao Congresso Nacional.
Por enquanto, o abate-teto continua a descontar o somatório das remunerações de servidores quando há acúmulo de cargos, empregos pensões e funções.
Pastas da Defesa e da Economia não se pronunciam
A reportagem encaminhou perguntas por escrito aos órgãos envolvidos na discussão sobre as mudanças no abate-teto. O Ministério da Economia não respondeu aos questionamentos. Tampouco o Ministério da Defesa, que alegou ser competência da Advocacia-Geral da União (AGU) se pronunciar.
A AGU, por sua vez, disse apenas que o parecer que permite a aplicação do abate-teto separadamente em cada vencimento "segue suspenso".
Nenhum dos três órgãos deu esclarecimentos sobre impactos financeiros, quantidade de servidores civis ou militares beneficiados, nem justificativas para a mudança de entendimento da regra constitucional que evita o pagamento de "supersalários" a suspensão do parecer e previsão de quanto será retomado ou reavaliado.
Mourão diz ser contra benefício a militares por "uma questão ética e moral"
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, afirmou ser contra a possibilidade de militares com cargo no governo acumularem remunerações que ultrapassem o teto do funcionalismo por "uma questão ética e moral" devido ao momento que o país vive.
Mourão é general da reserva e poderia ser beneficiado pela medida. "Têm dois aspectos aí. Número um, já tem jurisprudência a respeito que os proventos de aposentadoria não acumulariam com a questão de abate-teto. Agora, número dois tem a questão ética e moral, que eu acho que não é o caso", disse ele, ao chegar no Palácio do Planalto.
"Eu claramente sou contra isso aí no momento que nós estamos vivendo. Se a gente estivesse vivendo uma situação normal, o país com recurso sobrando, tudo bem, mas não é o que está acontecendo", declarou o vice-presidente.
Cidadania quer explicações da AGU sobre remunerações para militares acima do teto
O líder do Cidadania na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (SP), quer que a Advocacia-Geral da União preste explicações sobre o parecer que permite a integrantes das Forças Armadas com cargo no governo acumularem remunerações acima do limite de R$ 39,3 mil.
No requerimento a ser protocolado nesta tarde, o deputado questiona qual é o entendimento da AGU quanto às regras de pagamento do limite remuneratório do funcionalismo público e pede a indicação de quais rubricas que não estariam sujeitas ao limite. Jardim quer saber ainda quantos servidores seriam beneficiados com a benesse.
Para Jardim, casos como esse reforçam a necessidade de o Congresso avançar em medidas como um projeto de lei que regulamenta o que é ou não um "penduricalho" e que daria ao governo mais instrumentos para barrar os supersalários. O projeto é relatado na Câmara pelo deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR).
"O momento exige cuidado redobrado com os gastos públicos e com ações efetivas para a superação da crise. Por esse motivo, é preciso que este Parlamento tenha conhecimento das medidas que estão sendo tomadas pelo Estado brasileiro em prol da retomada da economia e da diminuição do déficit fiscal, em que a diligente aplicação das regras contidas no art. 37 da Constituição Federal constituem parte significativa", diz Jardim no requerimento endereçado à AGU.