Militares da cúpula das Forças Armadas demonstraram surpresa e descontentamento velado com as críticas feitas pelo deputado Ricardo Salles (PL-SP) aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na semana passada. Em uma audiência na Câmara, Salles chegou a sugerir que não seria necessário investir na defesa da pátria porque o Brasil não teria inimigos.
As críticas foram interpretadas por parte dos militares como mais uma tentativa do deputado de ganhar relevância no cenário político nacional e conseguir apoio para concorrer à prefeitura de São Paulo no ano que vem. As afirmações foram dadas à Gazeta do Povo por oficiais ligados às cúpulas do Exército e da Marinha que pediram anonimato.
"Nós estamos gastando dinheiro com inimigos fictícios. Com míssil de não sei aonde. A bateria antiaérea. Para guerrear com quem? Com Argentina, que não tem nem doce de leite mais. Para quê?", disse Salles.
Mas a afirmação de Salles ocorre em um momento em que o mundo entra em uma nova corrida armamentista. Ela é motivada pelo crescimento das hostilidades entre o Ocidente e o eixo que começa a ser formado envolvendo Rússia, China, Irã e Coreia do Norte.
"A guerra na Ucrânia mostra-nos, pela enésima vez na história, que um país não pode acreditar que, por estar vivendo um momento de paz, estará livre da guerra para sempre”, afirmou o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em ciências militares e pela Escola de Comando e Estado Maior do Exército.
Investimentos militares do Brasil estão 50% abaixo da média mundial
Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica e o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, foram confrontados por Salles enquanto participaram de audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, no último dia 17. Eles haviam descrito um cenário preocupante de falta de verbas, que tem impedido o funcionamento adequado das Forças.
O comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, afirmou, por exemplo, que 40% da esquadra da Marinha de Guerra estará sucateada se não forem feitos investimentos até 2028. Em conjunto, os militares defenderam que os gastos com a defesa passem da proporção de 1,1% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2%.
“O material [bélico] tem uma vida, a partir de determinado momento ele passa a ser antieconômico”, disse Olsen. Ele disse que atualmente não há combustível, lubrificantes e munição suficientes para uma proteção adequada da costa brasileira. Como exemplo, o almirante afirmou que a Marinha precisa gastar R$ 74 milhões por ano com munições (que são produtos perecíveis), mas só recebeu R$ 6,8 milhões para esse fim.
Mesmo com a elevação proposta, os gastos brasileiros ainda ficariam abaixo da média mundial de 2,2% do PIB.
Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), o gasto militar global total aumentou 3,7% em termos reais em 2022, atingindo um novo recorde de US$ 2,240 trilhões.
Os gastos militares na Europa tiveram o maior aumento ano a ano em pelo menos 30 anos. Na avaliação do coronel Paulo Filho, isso reflete o aumento das tensões geopolíticas no mundo. O Brasil, na contramão, reduziu seus investimentos em defesa em 11% nos últimos anos.
Apesar das críticas, as Forças Armadas devem possuir as capacidades necessárias para cumprir sua tarefa constitucional de defender a pátria, segundo o coronel. “Essas capacidades não são facilmente adquiridas. Exigem pesado investimento, desenvolvimento autóctone de tecnologia, soldados habilitados e treinados para o cumprimento de suas missões.
“Um exército pode passar cem anos sem ser empregado, mas não pode passar um minuto sem estar preparado”, acrescentou ele, citando o diplomata Ruy Barbosa (1849 - 1923).
Salles acusou Forças Armadas de politização
O deputado Ricardo Salles foi ministro do Meio Ambiente durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Antes disso, ele já era um admirador do escritor Olavo de Carvalho (1947-2022), que influenciou diversos membros do governo anterior e costumava atacar as Forças Armadas, que considerava "comunistas".
Salles conseguiu uma vitória política recente ao ser nomeado relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das invasões de terras, a CPI do MST. Ele já havia anunciado também que tenta conseguir apoio político para concorrer à prefeitura de São Paulo em 2024.
Seu principal oponente no pleito pode ser o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP), que já o acusou de querer usar a CPI em proveito próprio para favorecer a possível candidatura. Salles nega o uso político da comissão.
Salles disse à reportagem estar "bastante magoado" com as Forças Armadas. Durante sua fala na Câmara, chegou a citar um episódio que teria ocorrido enquanto ainda era ministro. Nele, militares o levaram para voar de helicóptero sobre a região amazônica e depois teriam passado uma conta de mais de R$ 1 milhão pelo uso da aeronave para o seu ministério.
O deputado usou seu discurso ainda para apontar, sem apresentar evidências, para uma suposta “politização” das Forças Armadas. “Embora o discurso seja de despolitização das Forças Armadas, o que nós estamos vendo é uma tucanização das Forças Armadas. O General Arruda que o diga, quando foi surpreendido pelos discursos e falas que deram ensejo depois ao seu enfraquecimento à frente do Comando do Exército”.
O general Júlio César Arruda foi escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para comandar o Exército, mas foi substituído antes de completar um mês no cargo. Lula, que tinha escolhido pessoalmente o general, depois alegou desconfiança para justificar a troca.
Arruda foi substituído pelo general Tomás Ribeiro Paiva, que serviu no governo de Fernando Henrique Cardoso como ajudante de ordens. Mas o próprio Salles já atuou no PSDB, no início de sua carreira, no governo de São Paulo, na gestão de Geraldo Alckmin, atualmente vice-presidente da República.
O deputado afirmou que o comandante do Exército se esconde atrás de um discurso de despolitização, “mas valeu-se de suas relações com o tucanato paulista para assumir o posto. Vazou seu discurso enquanto Comandante do Sudeste para fazer gesto de agrado a Lula e consolidar seu nome como alternativa ao General Arruda”.
Salles não deu detalhes de nenhuma ligação atual efetiva de Paiva ao PSDB nem apresentou provas de politização no Exército.
Deputado criticou participação de Forças Armadas na segurança pública do país
Em seus ataques aos militares, Salles também criticou as chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), nas quais militares são usados em ações de segurança pública no território nacional. Ele se referiu especificamente a ações das Forças Armadas que ocorreram durante o governo Bolsonaro para coibir crimes na região de floresta amazônica.
Salles disse à reportagem: “são centenas de milhões de reais para operações que não deram um tiro sequer no combate ao crime organizado, garimpo ilegal etc. Eles fogem do enfrentamento como o diabo foge da cruz, tanto nas GLO’s quanto na fronteira”. Ele também questionou a Aeronáutica por não abater, em quantidade que consideraria suficiente, pequenas aeronaves que entram em território nacional carregadas de drogas.
A realização de operações de GLO também divide opiniões entre os próprios militares. O entendimento das Forças Armadas é de que não há embasamento legal que proteja os combatentes de processos judiciais, caso se envolvam em situações que envolvam mortes de civis durante as operações. Por isso, muitos militares também desaprovam sua realização nos moldes atuais.
Sistema de defesa das fronteiras pode ficar obsoleto antes de ser terminado
Durante a audiência da Câmara, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, também falou sobre as dificuldades orçamentárias para manter programas de proteção das fronteiras em funcionamento.
Segundo ele, o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) só recebeu até agora 20% da verba prevista e, como está atrasado, corre o risco de ficar obsoleto.
O sistema previa inicialmente investimentos de R$ 11,9 bilhões até 2022, mas foi prorrogado para 2039. “Ele corre um risco real de, quando a tecnologia chegar para todo mundo, essa tecnologia do começo do programa já estar obsoleta. O crime organizado, o crime transnacional, também vai se modernizando e vai usando tecnologia reversa contra a tropa e contra as agências de proteção e de segurança pública”, disse o general.
O SISFRON é uma programa estratégico do Exército. Salles aproveitou o discurso do comandante para criticar a vulnerabilidade das fronteiras. Também falou que o país não precisa do projeto da Marinha que tenta desenvolver um submarino de propulsão nuclear, com o objetivo de proteger o litoral. Ele deu a entender que a tecnologia poderia ser comprada no exterior, mas não mencionou que nenhum país vende esse tipo de tecnologia.
“As críticas de que, por exemplo, o programa do submarino nuclear se arrasta por décadas omitem as responsabilidades dos políticos que, por décadas, pouco fizeram para suprir o programa com os recursos previstos e necessários", afirmou Paulo Filho.
"Destaque-se que o programa brasileiro, se comparado por exemplo, ao recentemente anunciado pelo Aukus (pacto de defesa mútua que envolve Estados Unidos, Austrália e Grã-Bretanha), para suprir a Austrália de um submarino de propulsão nuclear, é muitíssimo mais barato”, completa.
Segundo o analista, que é autor do canal Paulo Filho no YouTube, o programa brasileiro tem um custo total estimado em torno de R$ 40 bilhões. O programa de submarinos do Aukus, gira em torno de US$ 245 bilhões, cerca de 30 vezes mais caro.
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