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A declaração do ex-presidente Jair Bolsonaro na avenida Paulista, neste domingo (25), questionando a acusação de que teria ocorrido tentativa de golpe de Estado em razão da existência de uma minuta para decretar um estado de defesa ou de sítio, traz à tona uma dúvida que terá de ser elucidada pela Polícia Federal na investigação sobre o caso. Segundo analistas, uma minuta não configura golpe isoladamente, mas pode ser usada pela Justiça para criar um cenário desfavorável a Bolsonaro.
O argumento de Bolsonaro é que o decreto de estado de defesa ou de sítio está previsto na Constituição e, para se manter válido, deve passar pela aprovação do Congresso. Assim, mesmo se ele tivesse assinado um ato do tipo, não haveria crime contra o Estado Democrático de Direito. “Golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa? Golpe usando a Constituição? Tenham santa paciência”, disse o ex-presidente na manifestação.
Desde o ano passado, a PF investiga a elaboração de textos de decretos presidenciais, porém não assinados nem publicados, que teriam sido esboçados no entorno de Bolsonaro com o propósito anular o resultado da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022.
No início de 2023, a PF encontrou na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres minuta de um decreto para instituir um estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o que permitiria uma revisão da apuração dos votos feitos pela corte. Neste mês, na Operação Tempus Veritatis, que mirou militares supostamente envolvidos na preparação de um golpe de Estado, a PF fez menção a uma minuta de decreto que anularia as eleições e levaria Moraes à prisão.
Em seu discurso no domingo, Bolsonaro deixou subentendido que alguma minuta de fato existiu, mas que, se fosse levada adiante, não seria golpista, em razão de sua previsão constitucional. “É o Parlamento quem decide se o presidente pode ou não editar um decreto de estado de sítio. O estado de defesa é semelhante. Ou seja, agora querem entubar a todos nós que um golpe usando dispositivos da Constituição, cuja palavra final quem dá é o Parlamento brasileiro, estava em gestação”, defendeu-se Bolsonaro.
Para decretar um estado de sítio ou defesa, explicou o ex-presidente, ele deveria ter consultado o Conselho da República (formado por vice-presidente, presidentes da Câmara e Senado, ministro da Justiça e cidadãos indicados pelo Congresso) e o Conselho de Defesa Nacional (no qual também participam comandantes das Forças Armadas, e ministros da Defesa, Planejamento e Relações Exteriores). Isso não ocorreu, tampouco o passo seguinte, de submeter os decretos para deliberação no Congresso.
Minuta dificilmente passaria no Congresso, mas não pode ser entendida como crime
Criminalistas consultados pela Gazeta do Povo concordam que um decreto do tipo, no entanto, não atenderia os requisitos constitucionais, em razão de seu teor. Segundo a Constituição, o estado de defesa serve para “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.
“Ele poderia ser decretado num local restrito, como um estado ou uma cidade, mas não num tribunal. A intervenção num tribunal não pode existir porque feriria um dos núcleos mais importantes da Constituição, que é a separação de Poderes, que não permite um poder se imiscuir em outro. Quem elaborou não tem a menor noção de direito, porque também não passaria no Congresso. Se chegasse aquilo, seria um crime de responsabilidade, daria impeachment”, diz o César Dario Mariano, procurador de Justiça de São Paulo, especialista em Direito Penal.
“O estado de sítio é um passo posterior ao estado de defesa, nos termos da Constituição Federal. Na minha opinião, não estavam presentes sequer os requisitos para o estado de defesa. De toda sorte, o estado de sítio não autorizaria nem a intervenção no Judiciário, tampouco a remoção de um ministro”, concorda Davi Tangerino, que é professor da UERJ, advogado criminalista e doutor em Direito Penal pela USP.
Para Mariano, no entanto, a confirmação de que uma ou mais minutas existiram e passaram por Bolsonaro, por si só, não configura o crime de tentativa de golpe de Estado. Ele explica que a tentativa, no caso, pressupõe o início da execução de um ato, ainda que não concluído, para depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.
Da mesma forma, não teria ocorrido nenhum ato concreto para iniciar uma ação que impedisse ou restringisse o exercício dos poderes constitucionais, elemento necessário para configurar uma abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
“Pensar e preparar, no direito, não é nada”, diz Mariano. “Em nosso país não se pune a mera cogitação, primeira fase do ‘iter criminis’ (caminho do crime), que se compõe da cogitação, preparação, execução e consumação”, escreveu o procurador num artigo publicado no ano passado, quando foi encontrada na casa de Anderson Torres a primeira minuta de decreto.
“Não foi colocado em prática. Ali há uma cogitação e uma preparação, no máximo. Mas não se sabe quem fez, pois o documento é apócrifo. Segundo, não foi colocado no Diário Oficial. E só se fala em tentativa de cometer o crime se houver início da execução, no caso de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito, com violência e grave ameaça”, completa. Tangerino, por sua vez, entende que a minuta de decreto “é um componente em um vasto mosaico”.
"Se fosse para tomar uma medida legal, por que seria necessário fazer uma pressão sobre o comandante do Exército? Por que o general Freire Gomes resistiria a uma medida legal, que passaria pelo Parlamento? Penso que esse discurso de Bolsonaro está longe de resolver a questão. Entendo que o golpe não era nem só a minuta, nem só o 8 de janeiro. Como pode acontecer em eventos complexos e profundos como um golpe, é preciso uma miríade de ações”, diz o advogado e professor.
Uma possibilidade é que a minuta seja usada pela PF como um indício da eventual participação de Bolsonaro numa trama maior, que teria levado manifestantes revoltados com a eleição de Lula a invadir e depredar as sedes dos Poderes no dia 8 de janeiro do ano passado.
Todos eles foram acusados e estão sendo condenados no STF pelo mesmo delito, acrescido do crime de tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito. A investigação da PF poderia concluir que Bolsonaro, ao discutir internamente um estado de defesa para rever o resultado as eleições, teria induzido aquelas pessoas a invadir o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF, na expectativa de que haveria uma tomada do poder, com apoio das Forças Armadas.