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Um novo programa de reforma agrária é uma das principais promessas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O petista ainda não apresentou seu plano, mas terá que adaptá-lo às exigências feitas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que identificou ao longo dos últimos anos uma série de irregularidades nos programas de reforma agrária de governos anteriores do PT, como a falta de transparência e critérios claros na seleção dos beneficiários dos assentamentos, que acabavam privilegiando pessoas ligadas ao MST e outros movimentos agrários.
Com a vitória de Lula nas eleições de 2022, a expectativa pelo fortalecimento do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) foi ampliada. Enquanto no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) o foco foi na titulação de proprietários de terras, agora a perspectiva é que haja mais desapropriações e criação de novos assentamentos. Neste contexto, a escolha dos beneficiários pode ser um dos principais desafios, tendo em vista as orientações do TCU a serem seguidas.
No entanto, após quase seis meses de governo, Lula ainda não anunciou o seu PNRA. Prometido em abril, havia a expectativa que o Programa fosse lançado em maio. Porém, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), comandado pelo ministro Paulo Teixeira, principal ministério ligado à reforma agrária, tem focado esforços na elaboração do Plano Safra para a Agricultura Familiar e na promoção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
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TCU preconiza a transparência nas normas de seleção de beneficiários da Reforma Agrária
A falta de transparência no processo da reforma agrária tem sido um dos principais temas de fiscalizações e auditorias promovidas pelo TCU sobre o tema. Em análise de uma fiscalização de 2017, o ministro relator, Augusto Sherman, destacou os problemas relacionados à seleção de beneficiários e à concessão de lotes nos assentamentos dos projetos de reforma agrária pelo país.
As fiscalizações do tribunal constataram, entre outras irregularidades, a existência de beneficiários contemplados mais de uma vez no programa, em projetos de assentamentos diferentes; não atendimento do requisito de idade mínima (18 anos) ou máxima (60 anos) dos beneficiários; existência de beneficiários constando como proprietários de imóvel rural com área superior a um módulo rural no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR); além do registro de beneficiários ocupantes de cargos públicos, por exemplo. Neste último caso, em deliberação realizada em 2015, foram verificados 144.621 servidores públicos beneficiados pela reforma agrária no Brasil.
Atualmente, o cadastro e a seleção de candidatos ao Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) são realizados por meio de editais de seleção por assentamento por município, em conformidade com o Decreto nº 9.311 de 2018 e a Instrução Normativa Incra nº 98 de 2019. As regras atendem a recomendação do TCU, que julgou desproporcional a atribuição de pontos concedida a candidatos integrantes dos acampamentos comandados por movimentos sociais, como o MST.
Em 2020, já no governo Bolsonaro, o ministro Augusto Sherman ponderou os avanços na seleção de beneficiários. “Verifica-se que o Incra vem dando cumprimento aos itens da deliberação no que tange ao marco legal que propiciará a realização de seleções de beneficiários de forma pública, transparente e obedecendo aos critérios legais”, disse o ministro do TCU.
Seleção se tornou pública no governo Bolsonaro
Apesar de ter suspendido ações do programa de reforma agrária logo no início de seu governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) implementou dispositivos que fizeram com que seu governo alcançasse a marca de mais de 450 mil títulos de propriedade de terra distribuídos. O número supera os 99 mil emitidos nos dois mandatos de Lula e os 166 mil no governo Dilma, de 2011 a 2016.
Dentre os avanços promovidos nos últimos anoso destaca-se a publicação de uma instrução normativa, que definiu que os candidatos às terras de reforma agrária se submetessem a processo de seleção pública, convocado por edital, com transparência e publicidade dos critérios para aprovação. As normas, em vigor desde 2019, já renderam 66 editais publicados e 3.580 vagas para lotes de reforma agrária em 19 estados.
Até o momento, a instrução normativa editada no governo Bolsonaro segue em vigor no governo Lula e já foi utilizada para o lançamento de pelo menos três editais para assentamentos no Oeste do Pará e um na Paraíba.
TCU aponta avanços na transformação digital do Incra
O Tribunal de Contas da União (TCU) também apontou efeitos positivos das transformações digitais implementadas no Incra nos últimos anos, após uma auditoria operacional feita pelo órgão de controle.
Um dos pontos centrais refere-se à Plataforma de Governança Territorial (PGT), criada em 2021 junto com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). A partir da ferramenta é possível, por exemplo, solicitar e emitir títulos de terra, consultar e validar documentos ou realizar o pré-cadastro para se candidatar ao Programa Nacional de Reforma Agrária.
Em reunião realizada no final de 2022, entre o TCU e o Grupo Técnico (GT) de Agricultura, Pecuária e Abastecimento da equipe de transição de Lula, o ministro do TCU, Bruno Dantas, citou a transformação digital promovida pelo Incra.
Dantas destacou que o TCU realizou auditoria com o objetivo de avaliar a estrutura e as práticas de governança e gestão na área de Tecnologia da Informação e Comunicação do Instituto. A auditoria encontrou um cenário bastante diferente do apontado em trabalhos anteriores, com uma relevante transformação digital em andamento na instituição. Contudo, o TCU apontou também que ainda são necessárias ações para aumentar a maturidade do Incra no que diz respeito à governança e à gestão de tecnologia da informação e comunicação.
Governo Lula também concede títulos provisórios
Nas reuniões da CPI do MST, deputados da base governista têm criticado com frequência a política de titulação adotada por Bolsonaro. O deputado Bohn Gass (PT-RS) chegou a dizer que se tratava de uma titulação “fake”, por se tratar de uma maioria de títulos chamados de provisórios. No governo Bolsonaro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concedeu 360 mil Contratos de Concessão de Uso (CCU), os chamados títulos provisórios, e mais de 83 mil títulos definitivos.
No entanto, o governo Lula manteve a estratégia do antecessor. A mais recente entrega de títulos, publicada em matéria divulgada no site do Incra no dia 6 de junho, beneficiou 75 famílias com a assinatura de títulos provisórios. Na publicação, o governo afirmou que “o documento antecede o Título de Domínio (TD), que é a titulação definitiva da área”, e ao mesmo tempo enfatizou que “ambos garantem acesso a políticas públicas destinadas à agricultura familiar”.
É importante destacar que a Lei da Reforma Agrária determina que a distribuição das terras ocorre por meio de:
- Contratos de concessão de uso (autorização provisória para o uso e exploração);
- Títulos de domínio (transfere gratuitamente e de forma definitiva, parcela ou lote da reforma agrária ao beneficiário pelo prazo de 10 anos);
- Concessões de direito real de uso (transfere, de forma gratuita, definitiva e de forma individual ou coletiva, o direito de uso do imóvel da reforma agrária ao beneficiário, condicionado à exploração rural).
CPI do MST busca dados do TCU para subsidiar discussões
Os dados já elaborados e a capacidade de gerar de forma competente novos dados para análise durante dos debates da CPI do MST fazem com que o TCU seja mencionado por depoentes e solicitado por meio de requerimento de deputados no colegiado.
Essa prática já foi verificada na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou o MST em 2010. Na época, a comissão pediu informações sobre todas as auditorias do controle externo do Executivo que tivessem apontado irregularidades em convênios de órgãos federais com entidades que atuam na questão agrária. Técnicos do TCU que analisaram a aplicação de recursos federais por entidades ligadas ao campo e à reforma agrária também foram chamados para ajudar a CPMI a encontrar irregularidades.
Na terça-feira (13), em audiência pública da CPI do MST na Câmara, o ex-presidente do Incra Francisco Graziano Neto mencionou as fiscalizações realizadas pelo TCU, citando a existência de beneficiados que não atendem os pré-requisitos do programa e até mesmo concentração de terras dentro dos assentamentos.
"Há estudos que demonstram inúmeras irregularidades nas áreas ocupadas”, disse o ex-presidente do Incra. Em sua explanação, Graziano defendeu ainda a suspensão do programa de reforma agrária até que se regularize a situação dos assentamentos atuais.
O deputado Lucas Redecker (PSDB-RS), por sua vez, apresentou requerimento solicitando ao presidente do Tribunal de Contas da União uma auditoria no Plano Nacional de Reforma Agrária. O requerimento prevê que a fiscalização seja feita desde a implantação da sua primeira edição em 1985.
“Há de se recorrer ao Tribunal de Contas da União para que conduza uma competente auditoria nas diferentes edições do Plano Nacional de Reforma Agrária para que se possa dispor de resultados confiáveis quanto aos princípios da eficácia, eficiência, efetividade e economicidade e, particularmente, sob o ângulo de quanto já custou para o país a execução das suas diferentes edições”, pontuou o deputado Redecker em seu requerimento.