Discussão sobre unificar o câmbio dos países do Mercosul é antiga, mas exige uma convergência econômica difícil de ser alcançada em curto prazo.| Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A viagem do presidente Jair Bolsonaro à Argentina terminou com uma surpresa: a proposta de criar uma moeda única entre os dois países ou entre os membros do Mercosul, uma discussão que estava adormecida e que voltou à pauta. É, nas palavras do próprio Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, um “sonho” e um “primeiro passo” para um projeto de longo prazo.

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Bolsonaro e Guedes conversaram sobre o tema com Maurício Macri e Nicolas Dujovne, presidente e ministro da Fazenda da Argentina, respectivamente, na última quinta-feira (6), em Buenos Aires. O tema também foi tratado com empresários argentinos e, nas reuniões, até um nome para a possível moeda foi dado: “peso real”.

“O que Paulo Guedes nada mais fez foi dar o primeiro passo para um sonho de uma moeda única na região do Mercosul. Como aconteceu o euro lá trás, pode acontecer o peso real aqui. Pode acontecer. É um primeiro passo”, afirmou Bolsonaro ainda em Buenos Aires. “Isso é algo que poderia acontecer em um prazo de 20 anos”, explicou Guedes.

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A ideia é defendida principalmente pelo ministro da Economia e tem suas vantagens econômicas e riscos. Entretanto, caso venha a ser levada adiante, é um sonho distante. A proposta levaria anos de implementação (a Europa, por exemplo, demorou quase 30 anos para conseguir adotar o euro após a Segunda Guerra Mundial) e seriam necessários anos de convergência macroeconômica, o que ainda não há entre Brasil e Argentina.

Vantagens e desvantagens da moeda única

A ideia em si de criar uma moeda única tem vantagens e desvantagens, segundo especialistas consultados pela reportagem. Os dois principais benefícios seriam, se tudo desse certo, a criação de uma moeda forte e o estabelecimento de metas e critérios para o equilíbrio das contas públicas dos países membros, o que obrigaria as nações a fazer reformas e ajustes fiscais, normalmente impopulares.

Outras vantagens seriam um Banco Central supranacional independente e autônomo; facilitação da integração regional; diminuição dos riscos monetários e das vulnerabilidades fiscais; maior previsibilidade; possibilidade de acelerar o crescimento econômico; e facilidade de negócios entre países e empresas na região, pois você criaria um espaço econômico com livre atuação.

Mas há também desvantagens e, em especial, riscos atrelados a esse processo. A principal é a perda de autonomia do país, já que teria de seguir as decisões monetárias e fiscais de acordo com o estabelecido pelo Banco Central da região.

Já na área de riscos, haveria de ter um alinhamento nunca antes visto na América Latina entre os governos dos países que vierem a adotar essa moeda única, pois o fracasso de uma moeda única (ainda não visto no mundo) tende a ser mais devastador do que de uma moeda nacional.

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Outro risco é algum país do acordo entrar em crise financeira, obrigando os demais a arcar com os custos dessa crise, caso que já aconteceu na União Europeia, com a colapso da Grécia.

Peso real é um sonho muito distante

Independentemente das vantagens e riscos, a ideia de criar um peso real ou uma moeda única para o Mercosul ainda é um sonho bem distante. O coordenador-geral do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint/USP), Alberto Pfeifer, diz que só é possível ter moeda única quando houver convergência macroeconômica entre os países.

“Isso quer dizer que os países que adotem essa moeda vão compartilhar metas e critérios quanto às suas contas públicas, quanto ao seu endividamento, gastos, déficit fiscal, como ocorre na União Europeia. É um grande processo de harmonização de prática financeiras, monetárias e bancárias”, relata o especialista. “Mas hoje não há convergência macroeconômica entre Brasil e Argentina”, completa.

Ele explica que depois da grande crise argentina, em 2001, o país abandonou a paridade cambial e vieram os governos populistas, com uma política nacionalista que praticamente levou a Argentina a um novo caos financeiro. “A partir dessa época, parou-se de falar de convergência, de harmonização entre os países da região. A Argentina se retirou dos mercados financeiros internacionais.”

O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oliver Della Costa Stuenkel, diz que processos como esse “só avançam quando existe consenso em todas as partes". "Na Europa isso funcionou porque havia tanto entre governos de esquerda e de direita a certeza de que isso era importante.”

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No caso de Brasil e Argentina, Stuenkel diz que não é impossível, mas que “não existe em nenhum dos dois países debate para aproximação estrutural”. “Moeda única é o passo final de uma integração, e ela requer muitos passos pequenos que não estão sendo discutidos neste momento.”

E faz sentido falar em moeda única?

Para Pfeifer, dos pontos de vista econômico e geoestratégico, faz sentido falar em moeda única entre Brasil e Argentina. Mas ele alerta: “é um processo delicado, complexo e que exigiria muito trabalho técnico das autoridades monetárias e agências reguladoras e trabalho político. Tende a ser algo bom, mas tudo tem que ser muito bem construído. Do contrário, o custo do fracasso pode ser muito elevado”.

Stuenkel avalia que a ideia está sendo ventilada para passar uma impressão de convergência entre os dois países, o que não existe de fato. “Neste caso específico, não me parece ser uma questão séria. Não é algo que se inicia antes de uma eleição. Ofusca outros debates sérios que precisam acontecer.”

O professor da FGV acrescenta que seria preciso discutir melhor com a sociedade se o governo brasileiro aceitaria e teria vantagens em ser a âncora da moeda, já que o real tem maior estabilidade que o peso argentino. “Na Europa, a Alemanha é quem banca a conta de estabilizar o euro. Mas para ela compensa economicamente.”

Stuenkel ressalta, ainda, que a ideia de Paulo Guedes vai contra o que prega o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, que defende maior soberania nacional e uma política externa voltada a relações com as nações mais ricas do mundo.

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Por outro lado, Pfeifer acredita que uma moeda única na região facilitaria a entrada de Brasil e Argentina na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos países ricos. Tanto brasileiros quanto argentinos estão em processo de acessão à OCDE.

Ideia não é nova – e já faz a cabeça de Guedes há um tempo

A ideia de criar uma moeda única entre Brasil e Argentina não é nova. A discussão já aconteceu no fim da década de 1990, mas não foi levada adiante porque a Argentina entrou em crise.

Mas o ministro Paulo Guedes parece não ter esquecido esse projeto. Em artigo publicado na revista Época, em 2008, ele afirmou que a crise financeira mundial daquele ano era a chance para o real virar uma moeda forte. “O real deveria se consolidar como a âncora de uma nova moeda da América Latina: o peso-real”, trazia o artigo escrito pelo hoje ministro.

Guedes na época explicou que o peso-real seria a forma de o Brasil caminhar para resolver seu problema fiscal e fazer as reformas estruturais. “Finalmente, o mais importante para o Brasil seria romper a inércia nas reformas estruturais. A flexibilização da legislação trabalhista, a reforma da Previdência, a reforma fiscal e a reforma tributária seriam deflagradas para assegurar uma convergência rumo às melhores práticas institucionais em busca de uma integração competitiva à nova economia global.”

A solução da crise fiscal brasileira é o principal objetivo do ministro. Para isso, o governo Bolsonaro deu o primeiro passo e encaminhou a reforma da Previdência ao Congresso.

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