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No primeiro julgamento de um réu preso no 8 de janeiro, uma questão crucial dividiu os ministros Alexandre de Moraes e Kassio Nunes Marques: a invasão e depredação dos edifícios do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso e do Palácio do Planalto configuraram ou não uma tentativa de golpe de Estado e de impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais?
Para Moraes, relator do caso, o objetivo da multidão era depor o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por meio de uma intervenção militar conduzida pelas Forças Armadas, com o objetivo de instalar um regime autoritário. Para Nunes Marques, revisor da ação penal, não havia qualquer chance disso se concretizar, e com isso, os invasores deveriam ser condenados apenas por causar danos e deteriorar o patrimônio público.
A diferença na gravidade da conduta se expressou nas punições propostas. Moraes defendeu pena de 17 anos de prisão em regime inicialmente fechado para o técnico de saneamento Aécio Lúcio Costa Pereira, mais pagamento de R$ 30 milhões (junto com outros condenados, para reparar os prejuízos causados), além de multa de R$ 44 mil pelos delitos imputados, que incluiria associação criminosa. Já Nunes Marques propôs 2 anos e 6 meses no regime aberto e R$ 2.640 de multa.
O julgamento continuará nesta quinta-feira (14), com os votos dos ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. A decisão depende da maioria de 6 votos entre os 11 ministros, que poderão ainda julgar outros três réus denunciados pelos mesmos crimes. No total, 232 pessoas foram acusadas da mesma forma, em denúncias com um texto padrão.
Na sessão desta quarta, Moraes acolheu integralmente as acusações da Procuradoria-Geral da República (PGR), que invocou a tese do “crime multitudinário”. A ideia é que não seria necessário detalhar, na denúncia apresentada, cada ato da pessoa presa em flagrante dentro dos prédios invadidos. Bastaria levar em conta o resultado da conduta praticada por ele junto da “turba”: a suposta tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, premissa da denúncia.
“Está comprovado nos autos, tanto pelos depoimentos de testemunhas arroladas pelo Ministério Público Federal, quanto pelas conclusões do interventor federal, que Aécio Lúcio Costa Pereira, como participante e integrante das caravanas que estavam no acampamento do QG do Exército naquele fim de semana e invasor de prédios públicos na Praça dos Três Poderes, com emprego de violência ou grave ameaça, tentou depor o governo legitimamente constituído, por meio da depredação e ocupação dos edifícios-sede dos Três Poderes da República”, afirmou Alexandre de Moraes.
Durante a leitura do voto, ele ainda exibiu vídeos de Aécio Pereira dentro do plenário do Senado, onde foi preso, e na rampa do Congresso, comemorando a invasão. “Amigos da Sabesp, quem não acreditou, tamo aqui, quem não acreditou, tô aqui por vocês também, p..., olha aonde eu estou, na mesa do presidente”, disse o técnico de saneamento, usando camiseta com a frase “intervenção militar federal”.
Para provar que haveria uma tentativa de golpe, Alexandre de Moraes destacou o fato de vários manifestantes fazerem vídeos do momento da invasão. “Por que eles mesmos se filmam e colocam nas redes sociais? Porque tinham a certeza que conseguiriam um golpe de Estado. O sentimento de impunidade era tão grande que filmaram, para depois poderem dizer que participaram do golpe de Estado, tinham certeza de que haveria adesão das Forças Armadas e que a polícia não iria retirá-los, e acabaram se autoincriminando”, disse.
O ministro ainda citou trechos do depoimento de Aécio Pereira, em que ele admitiu que partiu de São Paulo com o objetivo de “lutar pela liberdade”. Questionado sobre isso pela polícia, ele respondeu que não sabia “dizer se o procedimento para alcançar tal liberdade seria depondo o presidente eleito”.
Nunes Marques diz que condenação deveria ser por dano ao patrimônio
Nunes Marques, por sua vez, argumentou que o invasor deveria ser condenado apenas por dano aos bens públicos e deterioração do patrimônio porque não haveria potencial para um efetivo golpe de Estado, ainda que houvesse tentativa.
Argumentou que a lei de 2021, que criou os crimes contra a democracia, deve ser interpretada pelo “potencial de produzir no plano concreto” a abolição do Estado Democrático de Direito. “Embora não ocorra a abolição do Estado de Direito, o que poderia se consumar, em regra, por força de um verdadeiro golpe de Estado ou de uma revolução, é necessário, conforme exige a norma penal que um dos Poderes da República, em razão da violência e grave ameaça, seja impedido ou tenha restringido o regular exercício de suas atribuições em intensidade suficiente para abolir o Estado Democrático de Direito”, disse Nunes Marques.
Ou seja, sem um efetivo impedimento ou restrição do exercício dos poderes, não estaria configurado o crime. “A verdade é que a depredação dos prédios que são sede dos Poderes da República em nenhum momento chegou a ameaçar a autoridade dos dignatários de cada um dos Poderes, tão pouco ao estado Democrático de Direito que se encontra há muito consolidada em nosso país desde a Constituição de 1988”, afirmou o ministro revisor.
“Tampouco há elemento indiciário, por menor que seja da prática de qualquer ato de violência e grave ameaça contra algum agente político, representantes de um dos Poderes da República, nem mesmo servidores”, acrescentou.
O ministro também descartou o crime de associação criminosa. “Nesse caso, não se pode presumir que todos os acusados presos nos prédios invadidos ou nas imediações deles manifestassem indistintamente tal vínculo associativo com certa estabilidade e com objetivo de praticar delitos indeterminados”, ressaltou.
Nunes Marques também não aderiu à tese do “crime multitudinário”, o que prejudicaria a denúncia apresentada pela PGR, que considerou genérica. A acusação, afirmou ele, deveria ter demonstrado com detalhes as condutas de cada um dos réus. “Era dever da acusação ter esmiuçado as condutas de cada acusado, o que na verdade não fez, visto que a denúncia é completamente indeterminada em relação aos dados circunstanciais da conduta do acusado em relação aos crimes em análise”.
O que disse a PGR sobre o réu
Responsável pela acusação, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ainda pediu a condenação ao pagamento de multa de R$ 100 milhões, para cobrir prejuízos aos edifícios depredados, avaliados em R$ 25 milhões, e danos morais coletivos, por atentado à democracia.
Ao defender a condenação, o subprocurador Carlos Frederico disse, durante a sustentação oral, que era “perceptível o deleite do imputado com os atos violentos praticados”. “Sua adesão subjetiva à intenção golpista da horda antidemocrática é incontestável”, disse.
A denúncia contra o técnico não detalha que objetos ele teria depredado, mas para o Ministério Público Federal, isso não seria necessário. O órgão sustentou que houve um “crime multitudinário”, praticado por uma turba de pessoas, importando, no caso, o resultado, que seria a tentativa de dar um golpe de Estado para destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O que disse a defesa do réu no STF
Em defesa de Aécio Pereira, o advogado e desembargador aposentado Sebastião Coelho da Silva iniciou a sustentação oral afirmando que o cliente estava sendo submetido a um “julgamento político”, o que seria comprovado por críticas aos manifestantes feitas, fora do processo, por Moraes e Carlos Frederico, e pelo fato de ele não ter foro privilegiado para ser julgado no STF.
“A nossa Constituição diz que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, com os recursos inerentes. Não haverá juízo de exceção, e aqui temos o elenco das pessoas que podem ser julgadas por esse tribunal, e no caso concretos que estamos a examinar, inequivocamente, a competência para o julgamento é do juízo federal de primeira instância”, afirmou o advogado.
Ao longo de uma hora, ele e outra advogada rebateram a denúncia, reiterando que foi genérica, sem provas de atos individuais de Aécio Pereira que pudessem certificar que ele seria capaz, junto com outros manifestantes, de dar um golpe de Estado, nem mesmo de que teria cometido vandalismo e violência no dia da invasão.
“Alguém trouxe um fuzil para Brasília? Naquele povo que estava ali no dia 8 de janeiro, não houve. Houve impedimento de funcionamento dos Poderes? Qual Poder deixou de funcionar por conta da ação que houve nesse prédio e demais prédios? Este Supremo Tribunal Federal estava em recesso, o Congresso estava em recesso. O presidente da República, no dia seguinte fez reunião com Vossas Excelências, lá no Palácio do Planalto, e caminharam para cá. Houve um só dia em que os Poderes não funcionaram? Nem um só dia”, afirmou. Ele admitiu que houve dano aos edifícios, mas reiterou que não havia ministros no STF.
No final da sustentação oral, dirigindo-se aos ministros, Sebastião Coelho afirmou eles “são as pessoas mais odiadas nesse país”. Vossas excelências têm que ter a consciência que são as pessoas mais odiadas desse país”. Depois, manifestou solidariedade à Polícia Militar do Distrito Federal, inclusive policiais presos. “Presos e sem salário. Isso é tortura! Tirar o salário de um homem, ministro Alexandre de Moraes, sem que haja uma condenação! Isso não pode acontecer, essas famílias estão desesperadas e torturadas!”
Moraes rebateu a declaração. Afirmou que “extremistas que não gostam do Supremo Tribunal Federal são a minoria da população”. “Isso ficou demonstrado nas urnas e nos atos golpistas, que uma minoria praticou. Isso foi repudiado pela população brasileira, que é séria, ordeira, digna, e que ficou aviltada com o que se fez aqui na Praça dos Três Poderes”, afirmou.
O que o invasor disse no processo
No momento em que foi preso, dentro do Senado, Aécio Pereira afirmou aos policiais que havia chegado em Brasília pela manhã, vindo de São Paulo junto com amigos do grupo “Patriotas” – existem dezenas do tipo espalhados pelo país, que se caracterizam pela simpatia com os militares e apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
No interrogatório, ele afirmou que seu objetivo era “lutar pela liberdade”, mas que não sabia dizer se o procedimento para alcançar isso seria depondo Lula. Ele disse que não danificou nada no Congresso e que, ao tentar sair das galerias, havia várias pessoas quebrando vidros. Teria decidido, então, retornar e permanecer no local, sendo depois preso pela Polícia Legislativa.
Seus advogados disseram que, ante de se dirigir para o Congresso, Aécio Pereira foi revistado perto da Catedral de Brasília, quando teria sido comprovado que ele não portava qualquer objeto que oferecesse risco à integridade física de outras pessoas ou aos prédios públicos. “Sua entrada no plenário foi em busca de segurança”, disse a defesa, acrescentando que ele “se preocupou pedindo que as pessoas descessem dali”.