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Entrevista exclusiva

Moro culpa Bolsonaro por retrocesso no combate à corrupção, e fala do livro que vai lançar

O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro
O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro. (Foto: Rodrigo Sierpinski/Gazeta do Povo)

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O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, em entrevista à Gazeta do Povo, afirma que os recentes retrocessos no combate à corrupção não podem ser atribuídos somente ao Supremo Tribunal Federal (STF) ou ao Congresso. O STF acabou com a prisão em segunda instância e anulou condenações da Operação Lava Jato; e os parlamentares aprovaram novas leis que inibem ou enfraquecem a atuação de policiais, procuradores e juízes. Mas, segundo Moro, há uma "responsabilidade compartilhada" do presidente Jair Bolsonaro no enfraquecimento do combate à corrupção.

"A responsabilidade maior, na minha opinião, é da liderança. Quem lidera o país? Nós estamos num regime presidencialista. Tem uma liderança política no país, tem uma liderança executiva", disse Sergio Moro na entrevista, concedida à Gazeta do Povo para divulgar seu novo livro: Contra o sistema da corrupção (editora Sextante, 288 páginas), que será lançado nesta semana.

Na obra, Moro relata o início de sua trajetória como juiz no Paraná; narra como passou a atuar em casos de lavagem de dinheiro, no escândalo do Banestado; sintetiza como foi possível, pela primeira vez, punir em larga extensão a grande corrupção, na Lava Jato; e acusa Bolsonaro de trair a promessa de campanha de aprofundar o enfrentamento dos desvios de recursos públicos no país.

"O que se viu foi um governo eleito com a promessa de combater a corrupção, que não fez isso e atuou para enfraquecer. Nisso, contou com aqueles que sempre foram contra o combate à corrupção. Se você tivesse uma liderança diferente, o resultado certamente seria diferente", afirma Moro. No livro, o ex-juiz conta que percebeu a falta de apoio do presidente para essa missão já o início do governo.

Ele se queixa, por exemplo, que, em 2019, Bolsonaro não tentou influenciar o STF para manter a prisão após a condenação em segunda instância judicial. E, depois que a prisão em segunda instância acabou, o presidente não se empenhou para aprovar no Congresso as propostas que garantiriam a volta da medida. "Não fez nada. Quem fez alguma coisa foi o Ministério da Justiça", disse, referindo-se a si mesmo (Moro foi ministro da Justiça de Bolsonaro).

Novas frustrações de Moro com Bolsonaro viriam na falta de apoio para o pacote anticrime; na retirada do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) de sua pasta e na dispensa de quem ele havia escolhido para comandar o órgão; e, por fim, na tentativa de trocar o diretor-geral da Polícia Federal (PF) e do superintendente da corporação no Rio de Janeiro sem explicações convincentes – a gota d'água para seu rompimento com o presidente.

Moro, que é pré-candidato à Presidência da República pelo Podemos, diz que, com "bons projetos" e "incentivos corretos", é possível ao chefe do Executivo conseguir maioria no Congresso não apenas para avançar na legislação anticorrupção, mas também para implementar as reformas necessárias ao país. O que falta, insiste ele, é "liderança" e "vontade institucional". A governabilidade baseada em emendas parlamentares e cargos, afirma Moro, decorre da falta desses elementos – e, tanto no período do PT quanto no atual governo, legou ao país recessão ou estagnação econômica e inflação elevada.

"Em 2018, tinha uma energia cívica no ar. Ocorreu uma renovação enorme no Congresso; tinha um espaço enorme para reformas. Não só para melhorar o combate à corrupção. Tinha espaço enorme para a reforma da Previdência, para reforma administrativa, para reforma tributária. Havia possibilidade de se avançar muito. Isso foi desperdiçado. Seria possível, na base do diálogo, fundado num projeto de princípios e valores, nós avançarmos", afirma Moro.

Capa do livro que Moro vai lançar. Crédito da imagem: divulgação

O livro Contra o sistema da corrupção terá seu primeiro evento de lançamento em Curitiba, na próxima quinta-feira (2), às 19h, no Teatro Positivo (Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300, Campo Comprido), onde Sergio Moro fará uma palestra.

Leia, abaixo, a íntegra da entrevista, concedida na última sexta-feira (26) por videoconferência (a editora não permitiu a gravação e publicação em vídeo e condicionou a realização a perguntas relacionadas apenas sobre assuntos abordados por Moro no livro).

Gazeta do Povo - O livro se chama Contra o sistema da corrupção. A gente sabe o que é corrupção – pagamento de propina, desvio de recursos públicos, etc. Mas existe um 'sistema de corrupção' no Brasil? O que é isso?

Sergio Moro – A Operação Lava Jato revelou aquilo que já sabíamos. Nós já tínhamos uma impressão, uma percepção de que a corrupção era endêmica entre nós. No entanto, algo é a percepção; e uma coisa muito diferente, inclusive mais assustadora, é você ter os fatos e as provas em toda a sua inteireza. Então, o que foi revelado nas investigações foi um verdadeiro sistema da corrupção, na qual ela está organizada como um verdadeiro modelo de governo e também, de certa maneira, um modelo de negócios, afetando tanto o setor público quanto o setor privado.

Quando a Petrobras celebrava um contrato com um fornecedor, de obras ou serviços, havia quase uma regra da necessidade de pagamento de suborno, que era dirigido, em parte, aos diretores e gerentes da Petrobras, e outra parte para aquelas pessoas responsáveis pela nomeação dos dirigentes daqueles setores da Petrobras, ou seja, os padrinhos políticos. Era o loteamento político e o patrimonialismo na sua forma mais degenerada, que é a forma do suborno. Isso não aconteceu uma vez, duas vezes. Isso aconteceu centenas de vezes, por anos. É isso que a gente chama sistema de corrupção: quando você tem uma espécie de naturalização da corrupção, uma prática, um hábito de vida e não só um evento isolado.

Claro que não tem como uma empresa estatal ser eficiente dessa forma. A Petrobras quase quebrou, não só porque foi saqueada, mas igualmente porque foram tomadas decisões econômicas equivocadas. Porque a preocupação dos gestores era ter oportunidade de receber propina e não necessariamente fazer um bom negócio. E aí você encontra aquelas obras, refinaria X ou Y, com preço muito maior de construção do que um custo normal.

Gazeta do Povo - Em várias partes do livro, o sr. se queixa da falta de efetividade da Justiça brasileira em casos de corrupção, em geral, por formalismos processuais, recursos infindáveis e falta de empenho. No caso da Lava Jato, mesmo após resultados contundentes, o STF foi o maior responsável pelas reviravoltas. O sr. acha que é preciso reformar o poder do tribunal, mudar a legislação ou apenas uma renovação da atual composição da Corte bastaria para dar mais efetividade?

Sergio Moro - Tem uma indústria da impunidade. Para você romper com a grande corrupção, com esse sistema da corrupção, você precisa ter uma grande vontade institucional. Você teve isso no processo do mensalão, liderado pelo ministro Joaquim Barbosa [do STF]. Você teve isso na Operação Lava Jato, que foi uma conquista das instituições, com seus membros individuais, e um resultado da própria pressão da sociedade brasileira. Milhões de brasileiros foram às ruas protestar. Nós tínhamos nos acostumado com o errado. Quem cometia crime, quem roubava a Petrobras, quem roubava em outros setores ficava impune.

Isso mudou. Pessoas foram julgadas, foram condenadas e cumpriram tempo de prisão. O Supremo participou desse processo. Foi o Supremo, por exemplo, que autorizou a prisão do ex-presidente Lula em março de 2018.

Dito isso, houve de fato reveses contra o combate à corrupção. E há uma responsabilidade compartilhada. No STF, a maioria dos ministros tomou a decisões que enfraqueceu [o combate à corrupção]. O Congresso aprovou legislação que, igualmente, não ajudou – por exemplo, a lei de abuso de autoridade, que tem um efeito que intimida a atuação de procuradores, policiais e juízes.

E a responsabilidade maior, na minha opinião, é da liderança. Quem lidera o país? Nós estamos num regime presidencialista. Tem uma liderança política no país, tem uma liderança executiva. Claro que num cenário de separação dos poderes, esse poder não é absoluto. Mas o presidente da República pode muito.

Gazeta do Povo - Mas o presidente pode influenciar o Supremo?

Sergio Moro - Pode influenciar tanto positivamente quanto negativamente. O que se viu foi um governo eleito com a promessa de combater a corrupção, que não fez isso e atuou para enfraquecer. Nisso, contou com aqueles que sempre foram contra o combate à corrupção. Se você tivesse uma liderança diferente, o resultado certamente seria diferente.

Por exemplo, quando o Supremo reviu a prisão em segunda instância, caberia ao presidente da República liderar o processo de mudança da Constituição ou a mudança da lei para retomar a execução [da pena após condenação] em segunda instância. E, na verdade, nosso presidente não fez nada. Quem fez alguma coisa foi o Ministério da Justiça. Eu me manifestei publicamente; eu defendi junto ao Congresso a aprovação dessa legislação, tanto a PEC na Câmara quanto o projeto de lei na Câmara.

Ou seja, há uma responsabilidade comum. Nós temos que respeitar as instituições: a Presidência, o Congresso e o Supremo. Mas, infelizmente, a gente tem que reconhecer esses reveses. Mas isso também nos ilustra que podemos retomar isso, desde que tenhamos a vontade política necessária e a liderança que tenha compromisso com esses princípios. Hoje, não temos.

Gazeta do Povo - No livro, o sr. conta que Bolsonaro cogitou cancelar a transferência de líderes do PCC para presídios federais, pediu para que o sr. não tentasse reverter a liminar de Dias Toffoli [ministro do STF] que paralisou todas as investigações de lavagem de dinheiro do país baseadas em dados do Coaf (que incluída o caso da "rachadinha" de Flávio Bolsonaro), além da falta de empenho em favor da prisão em segunda instância. Para o sr., Bolsonaro é conivente com o crime?

Sergio Moro - Não quero tratar isso do lado pessoal.

Gazeta do Povo - Mas isso é institucional, porque são atos públicos.

Sergio Moro - O que nós tínhamos muito claramente era um governo que foi eleito com discurso anticrime, inclusive anticorrupção. O convite que me foi feito e que aceitei foi baseado nessa premissa, e isso não foi concretizado. O Ministério da Justiça tem um papel relevante e eu também era uma liderança como ministro. E é natural que eu encontrasse oposição em alguns setores, no Congresso e no próprio Supremo. Porque as pessoas pensam diferente, nem todo mundo tem um compromisso com essa pauta, embora também tenha gente no Congresso e dentro do Supremo com forte compromisso contra a corrupção. Mas o problema é que, sem o apoio do Planalto, realmente não era possível avançar. E, quando o Planalto também começa a sabotar esse projeto, aí fica inviável nós irmos para frente.

O que eu diria é que o Planalto, que o presidente da República não tem o compromisso sério com o combate ao crime e o combate à corrupção. Se tivesse, estaria hoje defendendo a execução da prisão em segunda instância, o fim do foro privilegiado, a autonomia dos órgãos de controle.

Vamos falar sinceramente. Respeitamos os policiais, os delegados, agentes e servidores. Mas a Polícia Federal hoje é uma sombra da época da Operação Lava Jato. Não tem o mesmo vigor.

Não temos que ficar lamentando. Temos que recuperar o combate à corrupção. Isso passa, entre outras medidas, por fortalecer a Polícia Federal, para que possa fortalecer o seu trabalho e retomar os bons tempos do combate à corrupção da Lava Jato e do combate ao crime organizado. Isso é plenamente factível, porque os profissionais são muito bons.

Gazeta do Povo - Se fosse o sr. o presidente da República nestes momentos-chave, em que o combate à corrupção esteve sob risco, como teria agido? Teria conseguido êxito com o Congresso e com o STF que estão aí?

Sergio Moro - Em 2018, tinha uma energia cívica no ar, ocorreu uma renovação enorme no Congresso, tinha um espaço enorme para reformas. Não só para melhorar o combate à corrupção. Tinha espaço enorme para a reforma da Previdência, para reforma administrativa, para reforma tributária. Havia possibilidade de se avançar muito. Isso foi desperdiçado.

O Congresso reage bem quando você tem projeto e os incentivos corretos. Quando você não tem, a tendência é as coisas não evoluírem. Então, sim, seria possível, na base do diálogo, fundado num projeto de princípios e valores, nós avançarmos. Tenho certeza que, se tivesse havido o apoio do Palácio do Planalto, não tinha caído [no julgamento do STF] a execução em segunda instância.

Gazeta do Povo - O sr. critica Bolsonaro por não ter projeto e por manter uma relação com o Legislativo com base em cargos e verbas. Diz que é possível conquistar apoio com bons projetos e incentivos. Que incentivos são esses? Não é ingênuo acreditar que o sr. poderia obter uma maioria apenas com afinidades programáticas e no convencimento a partir de bons projetos?

Sergio Moro - Vou te colocar um exemplo. Em 1994, vínhamos num período de hiperinflação. Havia uma desilusão quanto à possibilidade de controlar a inflação. Houve um plano, o Plano Real, que levou à estabilização da economia. Ele tem uma parte técnica, que foi muito bem elaborada. Mas teve também uma parte política, que envolveu um pacto entre os três dos maiores partidos da época – o PSDB, o PFL e o PMDB –, que fizeram um pacto pela estabilização econômica. Isso envolveu não só aquele período imediato do Plano Real, mas tudo que veio depois. Os programas, por exemplo, que impediram a quebradeira financeira dos bancos, além da responsabilidade fiscal.

Ou seja, é possível sim construir em cima de um projeto. E esse diálogo pode ser feito com parlamentares. O que a gente sente, muitas vezes, é que os parlamentares querem se sentir parte do projeto. Se você não tiver um projeto, como no governo atual, é impossível você avançar. Você vai degenerando cada vez mais nessa política paroquial, de emendas e de cargos.

Agora, o diálogo é fundamental em cima desses projetos, você trazer o parlamentar para ele se sentir um partícipe da gestão do governo. Porque o parlamentar, muitas vezes, e isso é natural, está preocupado com sua sobrevivência política, com sua reeleição. Se ele tem condições de também receber parte do mérito por um projeto bem sucedido, isso acontece. O grande problema é que, a pretexto de garantir governabilidade, foram feitas concessões à ética, no passado.

Tivemos o caso do mensalão, que foi reconhecido no Supremo como um esquema de compra de voto, em favor do governo federal, do Partido dos Trabalhadores. Tivemos depois o petrolão, que é o loteamento político das estatais, igualmente por agentes políticos e partidos, em apoio ao governo federal. Ou seja, dois modelos gerados durante o governo do Partido dos Trabalhadores. E o que o governo do PT entregou ao final? A recessão de 2014 a 2016. Além do início dessa política do "nós contra eles".

E o que o governo atual tem? Desmantelou o combate à corrupção. Governa hoje com base num orçamento chamado de secreto, mas que envolve as chamadas emendas de relator, de pouca transparência. E o que nos entrega? Uma estagnação econômica, inflação elevada e uma perspectiva de recessão, o que significa diminuição de emprego e de renda. Ou seja, se é necessário fazer tantas concessões em prol da governabilidade, eu diria que o trabalho que está sendo feito é muito ruim. Porque os resultados não são bons. Então, não é esse o caminho a ser percorrido.

Gazeta do Povo - Num dos capítulos do livro, o sr. admite o incômodo pessoal que passou por conta das medidas de investigação que autorizou contra Lula, como a condução coercitiva e a interceptação telefônica. A acusação de intenção política até hoje prejudica a Lava Jato. O sr. teme que, no ano vem, quando Lula estiver em campanha, esses ataques se intensifiquem e causem ainda maiores retrocessos ao combate à corrupção? E se ele ganhar, a vingança contra os que o investigaram não pode ser ainda maior?

Sergio Moro - Nunca houve intenção política na Operação Lava Jato. O que houve foram algumas narrativas que não se baseiam em fatos. Falou-se, por exemplo, em criminalização da política. Todo mundo que foi investigado, acusado, condenado e preso foi porque pagou suborno ou recebeu. As decisões foram tomadas não só por mim, mas também pelo tribunal de apelação federal [TRF4] lá em Porto Alegre, por magistrados profissionais; pelo Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, magistrados profissionais. E mesmo o STF proferiu diversas decisões favoráveis à pura aplicação da lei.

É inegável o fato de que a Petrobras foi saqueada. Isso é um fato histórico. Podem construir qualquer narrativa, mas os fatos e as provas estão lá. A Petrobras reconheceu perda de R$ 6 bilhões em suborno. Criminosos confessaram seus crimes e devolveram milhões de dólares que mantinham em contas na Suíça, por exemplo. De onde veio esse dinheiro? Então, busca-se criar uma ficção, com base numa narrativa eleitoral, que não tem correspondência com a realidade. As pessoas sabem a verdade. E uma das funções do livro é relembrar a verdade às pessoas.

Gazeta do Povo - Mas essa mentira causou muitos prejuízos. O sr. não teme que ela prevaleça e cause ainda mais prejuízos? E a gente vê uma postura não só de anular condenações e zerar os processos, mas também de vingança, como a tentativa de cercear o Ministério Público, a lei de abuso de autoridade, a nova lei de improbidade, além dos processos disciplinares…

Sergio Moro - O que causa o retrocesso é a reação do sistema da corrupção, que ainda tem apoio, infelizmente, de pessoas poderosas espalhadas pelo país. A mentira é só um subterfúgio.

Gazeta do Povo - Mas é um argumento, ainda que falacioso. E isso não vai se intensificar? Se o Lula ganhar, pode se agravar. O sr. não teme isso?

Sergio Moro - Por isso é necessário que a verdade seja dita. Por isso esse livro é necessário. As pessoas sabem a verdade. Ela não está lá fora, mas dentro das pessoas, que acompanharam esse processo e que sabem o que aconteceu, que sabem do modelo de corrupção que existiu. Quem diz hoje que foi condenado por questões políticas, não é isso. Você tem investigação e fatos e provas muito concretas.

Infelizmente nós temos parcelas do Judiciário que cometem erros. Erros judiciais também acontecem, numa Justiça muito apegada a formalismos. O que acontece é que a população brasileira não pode cair nesse conto do vigário, porque sabe o que aconteceu no passado. Então precisamos resgatar esses fatos, resgatar essa memória, caso contrário a gente corre o risco de repetir essa mesma história. É o velho ditado: quem não conhece a história corre o risco de repeti-la. Embora seja um chavão, é o que a gente tem visto. Quando vimos escândalos de corrupção no passado, sem que houvesse alguma reação institucional da sociedade, eles simplesmente se intensificaram. Assim você tem, por exemplo, mensalão que vira petrolão no próprio governo do Partido dos Trabalhadores. Então, não podemos repetir esses erros históricos.

Gazeta do Povo - Em determinado trecho do livro, o sr. expressa repúdio a ataques sistemáticos feitos por militantes do PT contra o sr. e a Justiça, por causa dos processos contra Lula. E equipara isso ao que ocorre hoje contra o STF, por parte de apoiadores de Bolsonaro. Como o Estado deve lidar com isso?

Sergio Moro - Primeiro, toda autoridade pública está sujeita a crítica. Isso faz parte da democracia, do debate democrático. Quando essas críticas desbancam para ameaças, ofensas ou até mesmo incitação à violência, alguns limites da liberdade de expressão foram ultrapassados. Sem ainda ignorar a utilização daquilo que a gente chama de "fake news", fatos alternativos. Então essa tentativa de reconstrução histórica, feito pelo Partido dos Trabalhadores, sobre o que aconteceu, ou mesmo essa tentativa do presidente atual de caracterizar minha saída como algo errado da minha parte – quando, na verdade, eu estava apenas fazendo a coisa certa, porque ele havia abandonado o projeto de combate à corrupção – , são reprováveis.

O Estado tem que lidar com essas situações quando há infração da lei – no caso, por exemplo, de ameaças ou incitação à violência. E, aí não é papel do Estado, mas das pessoas em geral, trabalhar com a verdade. A verdade é um valor fundamental. Isso é o que temos que resgatar um pouco na nossa sociedade. Claro que a gente não está falando aqui de uma verdade absoluta, de uma revelação divina propriamente dita. Mas o relativismo, que é muito característico da sociedade do nosso tempo, não significa autorizar a afirmação de que todo fato pode ser verdadeiro. Existe a verdade e existe o falso.

Gazeta do Povo - No final do livro, você diz que a corrupção é consequência de fraqueza institucional e que, com vontade política, é possível vencê-la. Mas a sociedade também não deve mudar para encampar essa luta de maneira mais vigorosa?

Sergio Moro - Certamente. Um dos equívocos, por exemplo, foi pensar que o combate à corrupção era uma empreitada individual, minha ou de algum outro indivíduo. No fundo, ela é uma conquista institucional e pertence à sociedade. Sempre vai existir, no setor privado ou no setor público, quem se beneficia da corrupção e da impunidade.

O "combate ao combate à corrupção" acaba sendo um mecanismo contramajoritário, que impede as reformas necessárias para que avancemos. Porque, quando você combate a corrupção, você torna o Estado mais eficiente. É mais do que uma mera questão de justiça. A maior eficiência do Estado vai resultar em melhores serviços de educação, de saúde, de segurança. Assim como o setor privado, que vai se preocupar em investir em inovação e tecnologia, e não se aproximar de políticos. Então, é uma conquista importante da sociedade. Por isso as pessoas têm que se levantar e defender esses princípios e valores.

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