Apesar de o presidente Jair Bolsonaro (PSL) ter vencido o segundo turno das eleições de outubro com relativa facilidade e de a direita viver seu maior momento na política nacional desde a redemocratização, o Palácio do Planalto patina na articulação com o Congresso e, como resultado, sofre derrotas e tem metas futuras sob ameaça. “O governo é o lobo do governo”, disse um deputado do PSL, em referência aos problemas de diálogo entre Legislativo e Executivo.
O quadro ficou evidente após as derrotas em série desta quinta-feira (9), quando o Congresso rejeitou a manutenção do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) no Ministério da Justiça e indicou que a demarcação de terras indígenas deve ficar com a Fundação Nacional do Índio (Funai), entre outros pontos.
Além disso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), viu fracassar a tentativa de pautar a votação em plenário da medida provisória (MP) da reforma ministerial. Como resultado, a MP pode cair e a gestão Bolsonaro retroceder a uma composição ministerial similar à criada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB).
Além da reforma da previdência, a principal pauta econômica de 2019, temas como a ampliação no direito ao porte de armas também entraram em cheque. A opinião de parlamentares governistas e de centro é de que a base do presidente Jair Bolsonaro terá que ampliar os canais de negociação para obter sucesso no Congresso.
Origens da crise
A derrota do governo na votação sobre o Coaf indica que a rejeição às propostas de Bolsonaro não se explica por questões unicamente partidárias. Três partidos – PSDB, PSD e MDB – tiveram parlamentares votando contra e a favor da sugestão do Planalto. Além disso, um dos discursos mais enfáticos em rejeição à ideia veio por parte do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), cujo partido tem três ministérios na Esplanada.
O quadro remete a uma das principais diretrizes apresentadas por Bolsonaro à época da montagem de seu governo, a de colocar em segundo plano a conversa com os partidos e privilegiar o diálogo com as chamadas “bancadas temáticas”, grupos de políticos unidos de acordo com temas de interesse comum. Além disso, durante o período eleitoral e mesmo já no mandato, Bolsonaro e seus aliados repetiram em diversas ocasiões o lema da “nova política”, que representaria uma ruptura com grupos presentes no poder em gestões anteriores.
Ao longo desses cinco meses de governo, Rodrigo Maia tem sido um dos principais críticos do discurso da “nova política” e nesta quinta-feira (9) chegou até a citar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como referência de governante que tinha boa relação com o Congresso.
“Já vi governo com bom diálogo votar 30 medidas provisórias num dia: o governo do PT, do [ex] presidente Lula", declarou. O DEM foi uma das principais forças de oposição aos governos petistas, a ponto de em 2010 o ex-presidente ter dito que “precisamos extirpar o DEM da política brasileira”.
Na avaliação do deputado Márcio Labre (PSL-RJ), as votações desta quinta foram um “recado expresso” dos partidos de centro ao governo Bolsonaro. “Acredito, mais do que um dia de derrota, foi um dia de chantagem. A relação entre o Congresso e o governo estava caminhando para uma certa normalidade, mas então surgiu um movimento que ninguém esperava e que até agora estamos querendo entender de onde veio”, declarou. A possibilidade de criação de novos ministérios poderia figurar entre as motivações dos partidos de centro, disse o parlamentar.
Mas para outro deputado do PSL, que conversou em off com a Gazeta do Povo, as críticas não podem ser restringidas ao chamado Centrão – o próprio Palácio do Planalto tem um bom grau de responsabilidade. “Eles [governo] fazem os acordos e não nos comunicam. Ficamos sem saber quem combinou o que, o que deve ser realizado, qual encaminhamento a bancada deve tomar. Assim a articulação só se dificulta”, destacou.
“É óbvio que o governo tem problemas de articulação com a sua própria base. As votações demonstram isso”, declarou o líder do Cidadania na Câmara, Daniel Coelho (PE). Para um deputado de centro que está em seu primeiro mandato, uma das maiores dificuldades do trabalho na Câmara está em identificar quais realmente são as propostas lideradas pelo governo. “Em muitos momentos não conseguimos saber direito quem é governo e quem é oposição, tamanha a confusão que se instalou aqui”, disse.
Como resolver o problema?
O quadro instalado demanda uma solução de simples descrição e de difícil execução, na opinião dos deputados – diálogo.
“O governo precisa sentar para conversar e ver o que pode ser construído. Sem trazer de volta o toma-lá-dá-cá, mas atuando de modo a evitar que a situação fique irredutível”, afirmou Labre, que é também um dos vice-líderes do PSL na Câmara.
Oposição se aproveita
Em meio aos ruídos do governo com sua base e com o centro, a oposição, minoritária no Congresso, aproveita para mostrar força. As votações desta quinta-feira foram celebradas por membros de diferentes partidos. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) declarou que a decisão sobre as demarcações de terras indígenas é “fundamental para reduzir a grilagem de terras e a violência no campo e para preservar as florestas e os direitos dos povos indígenas”.
Já o deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) disse que a atitude do governo com o Congresso é de “chantagem para a aprovação da reforma da previdência”, e que as votações desta quinta mostram que “a gestão Bolsonaro não tem projeto para o país”.
Próximos passos
A próxima dor de cabeça na relação entre governo e Congresso pode se dar por conta do decreto assinado por Bolsonaro na terça-feira (7), que expandiu a possibilidade de porte de armas. A medida é uma das prioridades do governo Bolsonaro e é rotineiramente citada pela sua base como parte da política para a segurança pública.
O presidente da Câmara sugeriu questões jurídicas que podem levar ao impedimento da norma por parte do Congresso Nacional. "Nós já encontramos – ainda não terminamos, porque é muito grande – algumas inconstitucionalidades, e eu tenho conversado com o ministro Onyx [Lorenzoni, da Casa Civil]", disse Maia em entrevista coletiva na tarde desta quinta.
Segundo ele, o governo pode ter invadido competências do Poder Legislativo ao editar o decreto.
A medida que caduca
O impasse que levou à não votação da MP sobre a reestruturação da estrutura ministerial abriu a possibilidade de que a MP deixe de ter validade, o que seria um problema para o governo Bolsonaro.
A tramitação de uma MP se dá da seguinte forma: após o Planalto editar uma medida, o Congresso tem um prazo de 60 dias para analisar o texto. Esse prazo pode ser prorrogado por mais 60. Nesse período, os deputados e senadores podem aprovar, rejeitar ou propor um projeto de lei derivado da MP. Caso não haja a apreciação, a MP “caduca”–- ou seja, se torna sem valor, e a situação jurídica se torna igual à existente antes da norma.
No caso específico da MP sobre os ministérios, a falta de apreciação pode levar o governo Bolsonaro a ser obrigado a repetir a estrutura da Esplanada vigente na gestão Temer. Isso inclui, por exemplo, a recriação do Ministério do Trabalho e Emprego. O prazo final para a análise do Congresso é 3 de junho.